Não cabem honorários por equidade em causas tributárias de alto valor
Igor Mauler Santiago; Ives Gandra da Silva Martins; Marcelo Magalhães Peixoto
A Corte Especial do STJ retoma nesta quarta-feira (16/2) o julgamento do Tema 1.076 dos recursos repetitivos. A discussão suscita especial interesse no campo tributário, onde tem sido frequente a fixação equitativa de honorários sucumbenciais em causas de elevado valor. Tratando-se de matéria afeta à Corte Especial e também versada na ADC 71, proposta no STF pelo CFOAB, revela-se cabível a sua análise sob as perspectivas legal e constitucional.
Em tese, o sistema jurídico poderia prescindir dos honorários de sucumbência, concentrando a remuneração do advogado nos honorários contratuais. Mas essa não é a opção do legislador brasileiro — que, no particular, está em sintonia com a tendência internacional. De fato, a maioria dos países ocidentais segue a chamada English rule, pela qual “loser pays”. Mesmo a American rule, segundo a qual cabe a cada parte remunerar com exclusividade os seus advogados, conhece várias exceções, admitindo honorários de sucumbência nas hipóteses previstas em leis federais ou estaduais1.
Além da função remuneratória, de resto qualificada pela natureza alimentar que lhes reconhece a Súmula Vinculante 47 do STF, os honorários de sucumbência servem também como punição aos litígios frívolos ou irresponsáveis e como barreira aos desnecessários, que poderiam ser solucionados pelos métodos alternativos tão em voga atualmente. Provam-no o parágrafo 11 do artigo 85 do CPC, que prevê a sua majoração pela interposição de recursos infrutíferos, e o parágrafo 6º do mesmo artigo, segundo o qual “os limites e critérios previstos nos §§ 2º e 3º aplicam-se independentemente de qual seja o conteúdo da decisão, inclusive aos casos de improcedência ou de sentença sem resolução de mérito” — a reforçar que o volume e a complexidade do trabalho do advogado distam de ser os únicos parâmetros valorizados pela lei.
O parágrafo 8º do artigo 85 do CPC é claro: a verba só pode ser fixada por equidade quando o proveito econômico da causa for inestimável (o que não é sinônimo de excessivo) ou irrisório, ou quando o valor da causa for muito baixo. As decisões judiciais que o estendem a situações colhidas pelo parágrafo 3º, ao argumento de que os valores daí resultantes seriam irrazoáveis, mais do que interpretarem os comandos, declaram tacitamente a inconstitucionalidade deste último (em clara ofensa à Súmula Vinculante 10 do STF), aplicando no vácuo assim formado os critérios do primeiro.
Importa, então, perquirir se o artigo 85, parágrafo 3º, do CPC é constitucional. Ofensa à isonomia claramente não há, pois a regra cuida de todas as “causas em que a Fazenda Pública for parte”, disciplinando tanto os honorários em que esta é condenada quando vencida, quanto aqueles devidos pelo particular aos seus procuradores, quando vencedora — muito embora na prática não se vejam decisões flexibilizando a verba quando destinada a estes últimos, os únicos que têm remuneração mensal garantida pelo Erário.
Já a pecha de excessividade deve ser analisada à luz de cada uma das duas funções desempenhadas pelos honorários de sucumbência. Do ponto de vista remuneratório, as censuras são no sentido de que (i) “não é justo e razoável que o ganho econômico em apenas um processo a título de honorários supere a renda da maioria da população, em especial dos profissionais com curso superior, cujo trabalho pode legitimamente ser comparado ao trabalho desenvolvido por um advogado” (manifestação do Estado de São Paulo citada no acórdão de afetação do REsp. 1.850.512/SP); e de que (ii) a aplicação estrita da regra favorece a advocacia privada “com a percepção de honorários milionários através de ações sem qualquer complexidade, com significativo impacto no orçamento dos entes públicos”, dando ensejo ao “enriquecimento sem causa dos patronos beneficiados” (petição do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal no REsp. 1.850.512/SP).
As críticas não procedem. Quanto à primeira, cabe observar que os honorários de sucumbência remuneram um trabalho de longo prazo, devendo ser divididos pelo número de meses de tramitação do feito para propiciar uma comparação minimamente aceitável com os rendimentos de outras categorias. E ainda que não são inteiramente apropriados pelo advogado que despacha com os juízes ou produz a sustentação oral, como o é o salário de um alto dirigente de empresa, v.g., sendo destinados a custear a estrutura física de seu escritório e a remunerar os respectivos membros: outros sócios, advogados empregados, estagiários e corpo administrativo.
Quanto à segunda crítica, cabe anotar que ações de elevadíssimo valor — pois é só nelas que os honorários de sucumbência podem atingir quantias vultosas — quase nunca são “destituídas de qualquer complexidade”, bastando considerar o redobrado denodo com que as procuradorias nelas atuam, e representam um desafio em si mesmas, dados os enormes riscos envolvidos numa atividade em que a responsabilidade é pessoal e ilimitada (Lei 8.906/94, artigo 17). Anote-se ainda que a proteção do Erário já é garantida pelo CPC, que reduz de forma significativa os honorários de sucumbência nas ações em que a Fazenda Pública é parte, dos 10% a 20% do parágrafo 2º para uma tabela regressiva que aplica esses porcentuais apenas sobre uma base de até 200 salários mínimos e os reduz fortemente nas faixas superiores, até chegar a 1% a 3% para o que exceder a 100.000 salários mínimos. E que as queixas de enriquecimento sem causa não costumam aparecer quando o contribuinte é que acaba condenado a pagar aos advogados públicos (CPC, artigo 85, parágrafo 19) os honorários do artigo 85, parágrafo 3º.
Do ponto de vista sancionador, diz-se que “a reprimenda deve ser proporcional ao ‘gravame’ causado”, sendo descabida “a imposição de elevados honorários advocatícios quando a solução judicial da questão foi relativamente simples e/ou rápida, sem maiores complexidades ou intercorrências” (petição da AGU no REsp. 1.850.512/SP). A segunda parte da crítica confunde a função dissuasório-punitiva dos honorários de sucumbência com a sua função remuneratória, pois é evidente que o critério da sanção não é o trabalho do advogado, mas o dano causado ao sistema judiciário pela litigância frívola, irresponsável ou desnecessária. E é sem nenhuma satisfação que verificamos que as Fazendas Públicas brasileiras não estão livres dessa mazela. Pensemos na inscrição automática de débitos em dívida ativa, não precedida de um verdadeiro controle de legalidade, que gera uma miríade de execuções fiscais insubsistentes; no redirecionamento aleatório de execuções fiscais; na execução de tributos declarados indevidos há décadas, como o ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular…
É fato que também as sanções por condutas ilícitas ou indesejáveis precisam ser razoáveis, incorrendo em inconstitucionalidade caso extrapolem a justa medida. Isso o que afirma o STF, por exemplo, quanto a multas fiscais de 200% e 500% (ADI 551/RJ) e de 300% (ADI-MC 1.075/DF). Mas certamente não é excessiva uma sanção que começa em 10% a 20% e decresce até 1% a 3%. Mitigar essa penalidade justamente nos casos em que ela faria sentir o seu rigor constitui, na verdade, um estímulo à manutenção das condutas que ela deveria reprimir. Aplica-se aqui, guardadas as devidas proporções, a lógica subjacente à tese há pouco fixada pelo STF no Tema 1.178 (constitucionalidade da sanção mínima de 500 dias-multa para o crime de tráfico de entorpecentes):
“A multa mínima prevista no artigo 33 da Lei 11.343/2006 é opção legislativa legítima para a quantificação da pena, não cabendo ao Poder Judiciário alterá-la com fundamento nos princípios da proporcionalidade, da isonomia e da individualização da pena.”
Um paralelo pode ser feito com as custas judiciais, que segundo o Ministro Dias Toffoli, então presidente do CNJ, “possuem dupla função”: “ser fonte de recursos financeiros destinados a custear a prestação de serviço jurisdicional” e “desempenhar papel educativo, na medida em que a cobrança, a depender dos valores, pode mitigar o abuso do direito de acesso ao Judiciário” — desde que, nesse último caso, não obstem essa garantia constitucional2. Pois bem: embora o STF proclame reiteradamente que as custas, ostentando a natureza de taxas, devem guardar razoável equivalência com os serviços que lhes servem de fato gerador, jamais se cogitou reduzi-las por equidade nas ações judiciais de baixa complexidade, relativas a questões apenas de direito ou extintas liminarmente, em que a atividade judicial é muito menor do que naquelas de igual valor, mas relativas a temas jurídicos sofisticados e/ou sujeitas a instrução árdua e demorada.
Por essas razões, que sustentamos em parecer concedido pro bono à Ordem dos Advogados do Brasil, confiamos que há de prevalecer o voto do Ministro Og Fernandes, já acompanhado pelos Ministros Mauro Campbell Marques e Jorge Mussi.
1 Servimo-nos aqui, embora com conclusão oposta à dos Autores, da pesquisa de MAX PASKIN NETO e FERNANDA MARIA POLTRONIERI no artigo Honorários advocatícios sucumbenciais à luz do Direito Comparado e seu papel como um dos fatores da jurisdicionalização excessiva dos conflitos no Brasil. https://maxpaskin.jusbrasil.com.br/artigos/118679456/honorarios-advocaticios-sucumbenciais-a-luz-do-direito-comparado-e-seu-papel-como-um-dos-fatores-da-jurisdicionalizacao-excessiva-dos-conflitos-no-brasil
2 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/11/relatorio_custas_processuais2019.pdf
Igor Mauler Santiago; Ives Gandra da Silva Martins; Marcelo Magalhães Peixoto
Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).
Ives Gandra da Silva Martins é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e professor emérito da Universidade Mackenzie, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) e Superior de Guerra (ESG).
Marcelo Magalhães Peixoto é presidente e fundador da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET).