Legitimidade da concessão de benefícios fiscais face à repartição de receitas

Lucas Menezes de Souza

Cuida-se de análise jurídica acerca da possibilidade de a União conceder benefícios e isenções fiscais de tributos destinados à repartição, tendo em vista as drásticas reduções causadas na receitas dos demais entes.

1.0 INTRODUÇÃO

Há crescente insatisfação dos Municípios, que buscam, mercê do Poder Judiciário, compensações de valores que esperam receber do Fundo de Participação dos Municípios, mas frequentemente têm a expectativa frustrada em decorrência de política fiscal da União, que reduz consideravelmente a arrecadação dos impostos repassados[1].

Assim, procede-se à análise jurídica acerca da concessão de benefícios e isenções fiscais pela União no que toca ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e ao Imposto de Renda (IR), dos quais 48% da arrecadação federal[2] são destinados a compor os Fundos de Participação Estadual, Municipal e de Desenvolvimento Regional, consoante à previsão da Constituição Federal em seu Art. 159, I, ainda que haja decréscimo reflexo na receita dos Municípios, e. g.

2.0 DESENVOLVIMENTO

2.1 DA FORMA FEDERATIVA DE ESTADO

A federação pressupõe um pacto entre Estados, que abrem mão de sua soberania em favor de um ente central, resguardando cada um apenas a autonomia. Esta autonomia se expressa em diversas facetas, a saber: autogoverno, auto-organização, autoadministração e autolegislação.

Calha pinçar, entretanto, que o federalismo pátrio foge a qualquer tradição. A uma porque não se deu de forma centrípeta, mas centrífuga. Isto é, não haviam Estados soberanos avençando abrir mão de sua soberania em prol de um ente central, mas um ente central que decidiu cindir-se em Estados autônomos, mantendo sua soberania. A duas pois abandonou a forma clássica de federalismo, partindo ao que se convencionou chamar de federalismo trino ou mesmo quaternário.

Ora, usualmente somente gozam de autonomia o ente central e os Estados a ele vinculados. Entretanto, em nosso ordenamento, gozam também de autonomia, erigindo-se à categoria de entes federados, os Municípios e o Distrito Federal.

Ocorre que, para usufruir da autonomia outorgada pela Constituição Federal, os entes federados necessitam gozar de autonomia financeira. Nesse sentido, o constituinte originário utilizou-se de duas técnicas de repartição de rendas.

2.2 DA REPARTIÇÃO DE RECEITAS

A primeira de repartição de receitas é a discriminação por competência ou por fonte, em que se atribui a competência tributária a determinados entes. A segunda é a discriminação por produto, na qual se outorga aos entes menores o direito a parte do que for arrecadado pelos entes maiores. A discriminação por produto pode dar-se de forma direta ou indireta, esta por meio de fundos financeiros[3].

Nesse sentido, o texto da Carta Magna traz a seguinte disposição:

Art. 159. A União entregará:

I – do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma:

a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal;

b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;

c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;

d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano; […]

Assim, temos que 48% dos valores naqueles termos arrecadados pela União deverão ser destinados aos Fundos Públicos Financeiros. Cumpre destacar a esse ponto que os valores a que fazem jus os demais entes, mercê dessa participação na receita da União, foram estabelecidos pelo constituinte em termos relativos. Isto é, não importa se serão arrecadados um milhão ou um bilhão de reais, 48% destes deverão ser destinados aos Fundos de Participação.

2.3 DA RENÚNCIA DE VALORES REPARTIDOS

Por óbvio, a opção do constituinte em utilizar valores relativos não foi em vão. A mesma Carta Maior outorgou ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) uma série de prerrogativas devido à sua função predominantemente extrafiscal, tais como a não sujeição ao princípio da anterioridade e a relativização da legalidade, uma vez que suas alíquotas podem ser alteradas por Decreto do chefe do Poder Executivo.

Assim, os mais comezinhos princípios de hermenêutica nos levam a crer que não há contradição entre as regras acima apresentadas. Ou seja, ciente da função extrafiscal exercida pelo IPI e sua clara volatilidade, o constituinte estabeleceu a repartição de tais receitas em números relativos, de forma que sua variação é inevitável.

Desta forma, é certo que não pode haver expectativa frustrada dos Municípios, posto que sequer poderiam estes criar expectativas sobre um valor de tamanha volatilidade quanto este ora em baila.

Entretanto, respeitável doutrinador vem entendendo que ao discriminar as rendas por produto, a Constituição Federal está a determinar que as receitas transferidas pertencem ao ente que as receberá, de forma que o ente com a competência tributária para sua arrecadação não pode conceder benefícios e isenções fiscais, sob pena de vulnerar o pacto federativo e autonomia financeira dos entes menores[4].

Ocorre, entretanto, que o próprio autor supracitado reconhece não haver qualquer vedação no direito financeiro brasileiro à renúncia fiscal em relação a tributos que tenham suas receitas repartidas entre entes da Federação, ressaltando os potenciais efeitos maléficos:

“Trata-se de questão polêmica. A renúncia fiscal em relação a tributos que tenham suas receitas repartidas entre entes da Federação não é vedada pelo direito financeiro brasileiro. Contudo, a prática indiscriminada de concessão de incentivos fiscais que impliquem perda de receitas para outros entes pode efetivamente prejudicar a autonomia financeira destes entes e levar a preocupantes desequilíbrios federativos. ” [5]

Noutro sentido entendeu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 572762/SC[6], embora se estivesse a tratar do repasse dos valores arrecadados pelos Estados a título de ICMS e sua retenção desmotivada, afirmou que não gozava o Estado de disponibilidade sobre a quota da receita a que fazem jus os Municípios. Afirmou o Ministro relator Ricardo Lewandowski:

“O que ocorre, no caso, é que o Estado está fazendo cortesia com o chapéu alheio, na verdade”. E complementou: “Ninguém duvida que os Estados possam, mediante lei complementar, conceder incentivos ou benefícios ficais – quaisquer que sejam eles –, desde que acordados comumente. Não se admite é que instituam benefícios ou se concedam isenções ou estabeleçam programas para auxiliar empresas com a parcela de tributo pertencente ao Município”.

Não obstante, sob pretexto de proteger a autonomia e o dever de lealdade federativa, o entendimento acima exposto acaba por quase criar precedente hábil a vulnerar ainda mais a federação. Isto é, aquela Colenda Corte, na tentativa de exarar alvissareira decisão, olvidou-se do princípio da prevalência do interesse nacional sobre o regional/local.

É certo que quando a União se utiliza da função extrafiscal do IPI, e. g., está defendendo os interesses da Nação em sua inteireza, inclusive dos Estados e Municípios. Logo, não poderiam os Municípios em disparatado solipsismo engessar prerrogativas atribuídas à União pelo legislador constituinte. Isto sim, por óbvio, constituiria tresloucado acinte ao princípio federativo e seu dever de lealdade.

Assim, cumpre gizar que o referido julgado tratou, a bem da verdade, com maior ênfase da impossibilidade de retenção das receitas transferidas obrigatórias, situação vedada pela Carta Maior[7], às devidas exceções. Entretanto, pode-se afirmar sem embargos que a Suprema Corte deverá muito em breve assentar entendimento com maior concretude acerca da constitucionalidade do decréscimo reflexo na receita dos Municípios em decorrência de desonerações feitas pela União.

3.0 CONCLUSÃO

Ante o exposto, conclui-se ser perfeitamente possível à União utilizar-se integralmente da extrafiscalidade do Imposto sobre Produtos Industrializados, ainda que isto ocasione decréscimo nos valores repassados aos Fundos Públicos Financeiros.

4.0 REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário: completo. 6ª edição revista, atualizada e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 19ª edição, revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.

NOTAS

[1] ALESSANDRO CRISTO, Municípios vão à Justiça contra isenções fiscais. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-out-02/decisao-stf-leva-municipios-justica-reducao-ipi-ir. Acesso em 15.05.2014.

[2] Ressalte-se que o cálculo é efetuado sobre a arrecadação federal, uma vez que a arrecadação nacional do Imposto de Renda alcançaria também os valores retidos pelos Estados, Municípios e Distrito Federal quando do pagamento de seus servidores, de suas autarquias e fundações.

[3] ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.

[4] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[5] Idem, p. 48.

[6] RE 572762/SC, DJe de 05.09.2008, Tribunal Pleno, Relator Ministro Ricardo Lewandowski.

[7] Art. 160: É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.

Lucas Menezes de Souza

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