ITCMD: distribuição desproporcional de dividendos não é doação
Sandro Miguel Júnior
O Projeto de Lei Complementar (PLP nº 108/2024), segundo projeto a regulamentar a reforma tributária (EC nº 132/2023), veicula uma previsão no mínimo estranha em relação ao ITCMD. Trata-se da incidência desse imposto sobre a distribuição desproporcional de dividendos como se doação fosse, desde que tenha sido realizada “por liberalidade” e “sem justificativa negocial passível de comprovação”.
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A Constituição, em sua rígida repartição de competências tributárias, outorgou aos estados e ao Distrito Federal a competência para tributar via Impostos a Transmissão Causa Mortis e Doação, de quaisquer bens ou direitos (artigo 155, inciso I), o que resultou na sigla ITCMD para designar esse imposto.
A doação é um instituto de Direito Privado, sendo definido tanto no Código Civil vigente (artigo 538), quanto no Código Civil de 1916 (artigo 1.165), como um contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita.
Considerando que a lei tributária não pode alterar a definição dos institutos de Direito Privado utilizados na Constituição para definir competências tributárias, vedação positivada pelo artigo 110 do CTN, o fato gerador do ITCMD-Doação deverá ser, obrigatoriamente, a riqueza manifestada pelo ajuste de vontades em que uma pessoa, por liberalidade (animus donandi), transfere de seu patrimônio bens ou direitos para o de outra.
Esse fato não é verificado na distribuição desproporcional de dividendos
A distribuição desproporcional de dividendos, quando prevista no contrato social e deliberada em reunião, é um negócio jurídico entre os sócios e a sociedade. A decisão é societária. Não se trata de um ajuste civil em que a sociedade figura como doadora e os sócios como donatários. A sociedade não desfalca o seu patrimônio em favor dos sócios.
Spacca
Não há liberalidade. A distribuição de dividendos é uma forma de remunerar os sócios pelo capital investido na sociedade. Antes de receber os lucros do negócio, os sócios investiram capital para a criação e o desenvolvimento da atividade econômica da sociedade empresária.
Objetivo da distribuição desproporcional
Quando a distribuição de dividendos é feita de forma desproporcional à participação societária, o objetivo pode ser remunerar de forma equitativa cada sócio de acordo com seu engajamento na sociedade, de modo que aqueles sócios que, por exemplo, administram a sociedade ou captaram mais clientes e negócios, contribuindo significativamente para o faturamento da sociedade, recebam maiores dividendos, independentemente da participação no capital social, sendo certo que, no fim, todos os sócios saem ganhando.
Desta forma, distribuir dividendos desproporcionalmente não se trata de uma decisão irrefletida, com base em uma mera liberalidade. Há sempre fundamentos negociais (ainda que intrínsecos) para distribuir entre os sócios os lucros da sociedade de forma não proporcional à participação deles no capital social.
A despeito das justificativas negociais sempre presentes, o artigo 1.007 do Código Civil vigente, fundamento legal da distribuição desproporcional de lucros, não exige a demonstração de um propósito negocial para essa forma de distribuição. A cláusula inaugural do dispositivo (“Salvo estipulação em contrário”) revela a predominância da autonomia privada para a definição acerca da distribuição desproporcional de dividendos. Como já dito, é uma decisão dos sócios e da sociedade.
Em verdade, tendo em vista o direito assegurado pela lei civil, essa pretensa justificativa negocial se confunde com a própria decisão societária de distribuir os dividendos da sociedade de forma desproporcional à participação no capital social.
Diferença entre lucro e patrimônio
Outro ponto relevante é que a sociedade somente distribui os lucros por ela auferidos. Há uma diferença conceitual imensa entre lucro (dinâmico) e patrimônio (estático). A sociedade não desfalca o seu patrimônio em favor dos sócios. Ela distribui os lucros obtidos com o desenvolvimento de sua atividade econômica. O que é diferente da doação, em que o doador, por liberalidade, efetivamente, desfalca o seu patrimônio em favor do donatário.
Recapitulando
Portanto, na distribuição desproporcional de dividendos:
(1) não há liberalidade;
(2) há sempre um fundamento negocial governado pela autonomia da vontade;
(3) não há transferência do patrimônio da sociedade para os sócios;
(4) remunera-se equitativamente os sócios pelo engajamento na sociedade, para além de suas participações societárias.
Por essas razões, a distribuição desproporcional de dividendos não é doação e a ela não pode ser equiparada, muito menos para fins tributários.
Invasão de competências
No plano legal, tributar pelo ITCMD a distribuição desproporcional de dividendos como se doação fosse, implica em violação do artigo 110 do CTN, uma vez que a lei tributária estaria alterando a definição do instituto de direito privado “doação”, utilizado expressamente na Constituição para definir uma das competências tributárias outorgadas aos estados e Distrito Federal.
Já no plano constitucional, a cobrança do ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros viola a repartição de competências tributárias e, consequentemente, o pacto federativo.
A distribuição de dividendos pela sociedade importa em auferimento de renda pelos sócios, tendo em vista o acréscimo patrimonial dela resultante. Atualmente, os dividendos são isentos do imposto de renda pela União. A tributação deles por meio do ITCMD acarreta uma invasão da competência tributária conferida pela Constituição à União para tributar a renda e proventos de qualquer natureza.
Na prática, os estados e o Distrito Federal tributariam renda (e não doação) por meio ITCMD, o que é, a um só tempo, ilegal e inconstitucional.
Sandro Miguel Júnior
advogado tributarista no escritório Ernesto Borges Advogados, mestre e especialista em Direito Tributário pelo Ibet e professor em cursos de especialização em Direito Tributário.