Intervenções pontuais podem trazer mais racionalidade à carga tributária
Júlio Marcelo de Oliveira
Em nossa última participação nesta coluna, falamos de várias medidas de corte de despesas que poderiam auxiliar e muito o ajuste fiscal do país, mas que não são implementadas devido a resistências dos grupos organizados que delas se beneficiam.
No campo das receitas, há também muito o que pode ser feito, especialmente em termos de racionalização e justiça fiscal. A correção de várias distorções requer igualmente vontade política para fazer os enfrentamentos necessários, afinal quem hoje paga menos imposto que a média de seus congêneres também não quer perder os privilégios e tem pronto um longo discurso de justificação do tratamento diferenciado.
Recentemente, o governo federal ensaiou aumentar o Imposto de Renda da Pessoa Física, com a criação de nova alíquota para faixas de renda mais elevadas, acentuando a progressividade desse imposto, característica que o preside na grande maioria dos países desenvolvidos. A reação da sociedade foi imediata, e a forte rejeição manifestada em ano pré-eleitoral levou lideranças políticas do Congresso Nacional a afirmar que uma tal proposta não seria aprovada.
Seria ótimo se a crise fiscal pudesse ser superada sem aumento de impostos, mas realmente isso não parece ser possível em face do desafio de transformar um déficit primário anual de cerca de R$ 170 bilhões em um superávit primário de valor equivalente, necessário para estabilizar o crescimento da dívida pública. Trata-se de um desafio de R$ 340 bilhões, portanto. Certamente, após as eleições de 2018, medidas de aumento de alguns impostos serão adotadas. O que não faz sentido, daí a forte reação da sociedade, é propor aumentos de impostos sem antes promover todos os cortes e racionalizações possíveis.
Uma medida extremamente racional seria a tributação de dividendos em alíquota que igualasse essa forma de percepção de renda com as demais recebidas pelas pessoas físicas de modo que a tributação já sofrida pela pessoa jurídica, complementada pela tributação de dividendos, tornasse indiferente receber renda como pessoa física ou por meio de pessoa jurídica. No Brasil hoje, virtualmente todos os grandes salários do setor privado são pagos como prestação de serviço a pessoas jurídicas titularizadas pelos destinatários da renda, muito embora presentes todos os elementos caracterizadores de uma relação de emprego, como pessoalidade, habitualidade e subordinação.
Assim são pagos os salários de apresentadores de televisão, atletas, advogados bem remunerados, cirurgiões etc., que sofrem a tributação de pessoa jurídica, sensivelmente menor que a incidente sobre rendimentos auferidos pela pessoa física, e depois recebem o restante a título de dividendos.
Distorção semelhante ocorre com o recebimento de aluguéis por pessoas que têm vários imóveis. Criam-se empresas administradoras de patrimônio cuja única atividade e fonte de renda é a locação dos bens imóveis, tributada em alíquota bem menor que a incidente sobre os aluguéis recebidos de pessoa física. É o fenômeno da “pejotização”, pessoas físicas travestidas de pessoas jurídicas para pagar menos imposto. Essas pessoas não fazem nada de ilegal. O sistema legal é que é irracional por permitir e induzir esse fenômeno. O racional é que as formas jurídicas sejam neutras, que os dividendos pagos sejam tributados em alíquota que torne indiferente receber rendimentos como pessoa jurídica ou pessoa física e que, portanto, não haja incentivo a essa prática. Racional e justo, porque estariam todos suportando a mesma carga tributária. O sistema atual cobra menos imposto justamente de quem ganha mais, ao contrário do que faz o restante do mundo.
A progressividade do Imposto de Renda deve ser estimulada, assim como o aumento da participação desse imposto como fonte da receita pública. Entre os países da OCDE, o Imposto de Renda da Pessoa Física responde, em média, por metade da arrecadação total, enquanto no Brasil ele corresponde apenas à metade da receita de impostos. Já o imposto sobre o consumo é muito elevado entre nós, aproximadamente 40% da receita total, acentuando a regressividade da carga tributária, o que, além de injusto, induz o brasileiro mais abonado a gastar muito no exterior, onde encontra produtos muito mais baratos exatamente porque neles incidem tributação muito menor. Vale dizer, reequilibrar o peso dos impostos na carga tributária, aumentando o imposto de renda e reduzindo o imposto sobre consumo, torna mais justa a carga tributária e estimula a indústria e o comércio locais.
Há ainda o caso de isenções fiscais e desoneração da folha de pagamentos, concedidas a alguns segmentos arbitrariamente escolhidos pelo governo. Evidentemente, cada setor beneficiado quer manter seu privilégio, e quem não é privilegiado também tem pronto um discurso para passar a ser. Muito melhor que todos paguem alíquotas equivalentes. Isso simplifica a arrecadação e a fiscalização, implanta justiça fiscal e reduz espaços de corrupção, já que, algumas vezes, desonerações e isenções fiscais são obtidas mediante pagamento de propinas aos agentes políticos decisores, como bem nos tem revelado a operação “lava jato”.
Outro ponto a merecer bastante atenção é o Simples. O valor para enquadramento no sistema tem sido aumentado muito acima da inflação ano a ano. Neste ano, o valor de corte é de R$ 3,6 milhões. Para o ano que vem, já está aprovado o valor de R$ 4,8 milhões. Tamanha generosidade não encontra paralelo no mundo e causa tremenda perda de arrecadação para estados com economia pouco desenvolvida, em que a maior parte da arrecadação deveria provir dessas empresas, agravando sua crise fiscal. Se o objetivo é incentivar a formalização de pequenas empresas e aliviar sua carga tributária no período inicial de sua vida, tal valor não deveria passar de algo entre R$ 600 mil a R$ 1 milhão. Um faturamento anual de R$ 3,6 milhões não é faturamento de empresa que precise de proteção tributária. Além disso, as empresas são induzidas a não crescer, e o empresário é incentivado a criar várias empresas pequenas para explorar o mesmo ramo, em vez de uma só empresa, com as filiais que se mostrassem úteis, interessantes e necessárias.
Por fim, há que se falar do imposto sobre transmissão causa mortis e doações. O Brasil está entre os países que menos tributam heranças no mundo. Curiosamente, sempre se fala de imposto sobre grandes fortunas. A elevação de alíquotas sobre a transmissão de patrimônio a título de herança poderia contribuir significativamente para o financiamento dos estados. A alíquota média cobrada pelos estados no país é de apenas 3,86% sobre o valor herdado, bem menor que a taxa na Inglaterra (40%) e no Chile (13%), para exemplificar com um país desenvolvido e outro em desenvolvimento.
Algumas intervenções pontuais, portanto, equilibradas e bem compensadas, podem trazer mais racionalidade, justiça e equilíbrio à carga tributária, contribuindo para o ajuste fiscal necessário.
Júlio Marcelo de Oliveira
Procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União.