Incidência cumulativa do IBS/CBS em serviços viola neutralidade tributária
Por Deonísio Koch
29/12/2025 12:00 am
Embora haja motivos para otimismo moderado com relação à reforma tributária da EC nº 132/2023, que terá sua implantação em forma de teste já no ano de 2026, há questões pontuais que parece não ter merecidas a devida atenção da equipe técnica responsável pela concepção e elaboração do projeto reformista, que causarão pesadas distorções no sistema, caso não sejam solucionadas.
É digno se ser lembrado que no novo sistema tributário é caracterizado por uma maior simplicidade se comparado com o sistema atual, em razão da uniformidade da legislação. Afinal, uma única lei complementar, a de nº 214/2025, substitui todas as 27 legislações do ICMS de todos os estados e do Distrito Federal, substitui as 5.570 legislações municipais do ISS, além de toda normatização do PIS/Cofins. A uniformidade da alíquota do IBS/CBS, a vedação de concessão de benefícios fiscais e de regimes tributários diferenciados pelos entes tributantes, além daqueles previstos na referida lei complementar e autorizados pela Constituição, também contribuem para a mesma solução simplificadora.
Há, no entanto, pontos sensíveis que afloram à medida em que se avança nos estudos e debates do novo modelo tributário, o que nos parece compreensível, se considerada a amplitude e abrangência da reforma, afinal, todo o sistema jurídico tende a ser imperfeito por sua natureza.
Inúmeras destas inconsistências haverão de surgir, principalmente, durante a fase de transição, desafiando não só a equipe responsável direta para estruturar todo o arcabouço normativo do novo modelo de tributação sobre o consumo, mas também aqueles que se dedicam a compreender o sistema e se habilitarem para a aplicação da norma no mundo concreto.
Princípio da não cumulatividade tributária
O foco da reflexão de hoje é o princípio da não cumulatividade [1] do IBS/CBS, concebida com maior abrangência, adotando a técnica do crédito financeiro [2], como vetor principal da neutralidade tributária referenciada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 [3] e a sua ineficácia como elemento desta neutralidade em setores da economia que não operam com operações de entrada com bens ou serviços geradoras de crédito dos novos tributos sobre o consumo.
Em uma atividade comercial, a não cumulatividade opera de forma plena, pois que os bens comercializados geram crédito nas operações de aquisição, sendo o débito registrado nas saídas pelas respectivas vendas, numa perfeita dinâmica da incidência sobre o valor agregado, como é o caso do IBS/CBS. O mesmo procedimento de apuração ocorre nas atividades industriais, em que o crédito decorre das aquisições de matéria-prima e demais insumos, e o débito com a venda do produto final.
Portanto, o princípio da não cumulatividade não é mero enunciado programático, mas é regra objetiva determinante na apuração do valor do tributo devido, e que por isso sua aplicação deve ser rigorosamente observada, em todas as formas de apuração do tributo regido por este mecanismo de compensação.
É de fácil percepção que este princípio não tem efetividade em setores econômicos que não operam com operações de aquisições de bens ou serviços ou outros insumos, responsáveis pela geração do crédito do tributo, de maneira que a incidência não é sobre o valor agregado, mas tem por base o faturamento da empresa, desvirtuando todo o arquétipo do tributo, fazendo uma exigência tributária expressivamente maior que o devido.
Neste contexto da inoperância, a não cumulatividade opera grande parte do setor dos serviços, que na maioria das situações não se beneficia do crédito do mesmo modo que uma empresa comercial ou industrial; o seu principal insumo, senão o único, é a mão de obra dos colaboradores, cujo custo não gera crédito compensatório com o débito. Não há operações de ingresso de bens, serviços, de matéria-prima, ou de outros insumos vinculados ao setor produtivo, geradoras de crédito, ressalvada algumas hipóteses específicas, como é o caso das transportadoras, que se apropriam do crédito relacionado à aquisição dos veículos, combustíveis e demais materiais intermediários.
Abordagem genérica da reforma tributária
Neste ponto, a reforma tributária adotou uma abordagem demasiadamente genérica, ao definir a materialidade de incidência sobre operações onerosas com bens e serviços [4], de forma igualitária, sem um tratamento específico com relação à não cumulatividade; haveria de ter sido criado um mecanismo compensatório para a incidência cumulativa nestes setores já mencionados. A distorção é evidente: enquanto os contribuintes comerciais e industriais serão tributados sobre o valor agregado, as atividades de serviços, que não registram crédito, suportarão uma carga tributária sobre o seu faturamento, violando o princípio da não cumulatividade.
Este argumento foi utilizado pelo setor, pressionando para uma solução que anulasse os efeitos danosos da não efetividade, ou da pouca efetividade, da não cumulatividade, o que resultou na redução de alíquota de 30% para determinados serviços e de 60% para outros, nos termos dos artigos 127 e 128, da Lei Complementar nº 214/2025, respectivamente.
Todavia, o problema foi apenas mitigado, mas não solucionado de forma conclusiva. Um cálculo simples demonstra que a redução de 30% da alíquota não é medida reparadora para os efeitos da cumulatividade; o setor de serviços que não se aproveita de créditos, ainda continua sendo onerado pelo IBS/CBS em valor superior aos demais contribuintes. Esta sobretaxa atinge, portanto, todas as pessoas que prestam serviços na condição de pessoa jurídica.
Reforma desalinhada com objetivos prévios
A reforma tributária, com seus fundamentos sustentados na simplicidade, neutralidade e não cumulatividade ampla, segue em desalinhamento com os seus objetivos, ao instituir os tributos IBS/CBS, concebidos para incidir sobre o valor agregado, mas que para determinados setores da economia irão incidir de forma cumulativa, violando, inclusive o princípio da neutralidade tributária.
A solução possível seria a concessão de crédito presumido para funcionar como moeda de compensação com o débito, respeitando o perfil não cumulativo dos novos tributos. A permanecer o cenário atual, espera-se que o custo desta tributação majorada seja transferido para o consumidor final, pela repercussão econômica própria dos tributos indiretos, podendo causar uma inflação setorial. Inicia-se, no dia primeiro de janeiro de 2026, a fase de transição da reforma tributária; o período é de teste, de adaptação, de ajuste do sistema; talvez esta matéria seja meritória de um reexame e os ajustes necessários.
[1] Conforme o art. 47, da Lei Complementar nº 214/2025:
“Art. 47. O contribuinte sujeito ao regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS quando ocorrer a extinção por qualquer das modalidades previstas no art. 27 dos débitos relativos às operações em que seja adquirente, excetuadas exclusivamente aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos do art. 57 desta Lei Complementar, e as demais hipóteses previstas nesta Lei Complementar.”
[2] O crédito financeiro consiste na permissão de apropriação dos créditos relacionados a todas as operações de entrada que representam insumos vinculados à atividade da empresa, em contrapartida com o crédito físico que se limita às operações de entrada de bens e mercadorias que são objeto dos negócios mercantis.
[3] “Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
(…)
§ 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte:”
[4] Segundo o art. 4º, da Lei Complementar nº 214/2025, “O IBS e a CBS incidem sobre operações onerosas com bens ou com serviços.”
Mini Curriculum
é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.
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