ICMS não incide sobre o feeder (cabotagem) nas importações e exportações
Igor Mauler Santiago, Andréa Ferreira Bedran
Tributário
Os armadores (empresas de navegação) nacionais são contratados por seus homólogos estrangeiros para terminar ou iniciar os serviços de transporte de longo curso internacional a que estes se obrigaram perante os seus clientes: do porto brasileiro de chegada para outros portos nacionais, nas importações, ou destes para o porto brasileiro de saída, nas exportações. Isso porque, nos termos dos artigos 178, parágrafo único, da Constituição e 7º da Lei 9.432/97, a navegação de cabotagem — como tal entendida a que ocorre “entre portos ou pontos do território brasileiro, utilizando a via marítima ou esta e as vias navegáveis interiores” (Lei nº 9.432/87, artigo 2º, inciso IX) — só pode ser realizada por empresa nacional.
Spacca
Trata-se do chamado serviço feeder, definido pela Antaq como “operações de transbordo no porto concentrador, nos sentidos de exportação (alimentação das embarcações de longo curso com cargas provenientes da navegação de cabotagem) e de importação (distribuição das cargas provenientes da navegação de longo curso para embarcações de cabotagem)” [1]. Em nenhum dos dois sentidos o feeder é sujeito ao ICMS, embora por razões jurídicas distintas em cada caso.
Cuidemos primeiro das exportações. É verdade que o STF, no Tema 475 da repercussão geral, decidiu que o trecho do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a”, da Constituição que exclui o ICMS das “operações que destinem mercadorias ao exterior” não abrange as prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal dessas mesmas mercadorias até o porto de embarque. Isto é: a Constituição não proíbe, por si mesma, a cobrança do tributo aqui tratado.
Mas isso não esgota a questão, pois o artigo 3º, inciso II, da Lei Complementar 87/96 [2] — lastreado no artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “e”, da Constituição [3] — concede isenção heterônoma ao frete interno de bens destinados à exportação. Interpretando a regra, o STJ assentou que “não incide ICMS sobre o serviço de transporte interestadual de mercadorias destinadas ao exterior” (Súmula 649).
E não há contradição entre as orientações das duas Cortes Superiores: o Supremo afirma que os serviços em exame não são imunes, mas o STJ assevera que são isentos. Ainda que um e outro instituto levem ao mesmo resultado (a não incidência do ICMS), cada um opera em nível jurídico próprio (a Constituição e a lei), por isso mesmo recaindo na competência final de Cortes diferentes (o STF e o STJ).
Controvérsias
Por estranho que possa parecer, ainda hoje são frequentes as controvérsias na matéria, como se a orientação sumulada do STJ de nada valesse.
Quanto às importações, o fundamento é outro, repousando no trecho do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a”, da Constituição que afasta a incidência de ICMS “sobre serviços prestados a destinatários no exterior” (na situação em análise, os armadores estrangeiros que contratam as empresas de cabotagem brasileiras), vedação que é reiterada nos artigos 3º, inciso II, e 32, inciso I, da Lei Complementar 87/96.
Acrescente-se a isso que o transporte multimodal é considerado como prestação única, mesmo quando internacional e quando realizado parte por um prestador, parte por outro(s). É o que decorre, dentre outros, do artigo 2º, caput e parágrafo único, inciso II, da Lei 9.611/98, que “dispõe sobre o Transporte Multimodal de Cargas e dá outras providências” [4].
Anote-se que a competência para disciplinar os transportes em geral, e os transportes aquáticos em particular, é privativa da União (Constituição, artigos 22, incisos X e XI, e 178, caput), de sorte que a legislação por ela editada vincula a todos os entes políticos, não cabendo aos Estados disciplinar diferentemente a matéria, mesmo que para fins de ICMS.
Admiti-lo é o mesmo que aceitar que o Município, para efeito de IPTU, adote conceito de bem imóvel diverso do veiculado pela legislação civil — o que é incogitável. Nesse sentido, forte na redação do artigo 155, inciso II, da Constituição, que se refere apenas a “prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal”, mas não internacional, é a doutrina de Paulo de Barros Carvalho [5]:
“… sendo o alvo de tributação por via de ICMS apenas a prestação de serviço de transporte estritamente nacional (entre Estados ou Municípios), aquele serviço de transporte realizado em território nacional, mas com escopo de cumprir contrato de transporte internacional, fica fora do âmbito de incidência do citado imposto, por tratar-se de mera atividade-meio relativamente a um serviço não passível de imposição pelo ICMS. (…) Não teria fundamento, juridicamente, pretender desmembrar as várias atividades-meio necessárias à prestação em tela, como se fossem serviços de transportes ‘parciais’, pois o transporte praticado pela empresa contratada é mera ‘fase’ indispensável à consecução do contrato de transporte internacional.”
Essa é também a compreensão do Tribunal de Justiça de São Paulo, valendo notar, entretanto, que a matéria segue altamente controvertida neste e em outros estados da Federação:
“Empresa brasileira que realiza a etapa final do transporte, em águas nacionais, por exigência legal. (…) Não incidência de ICMS. (…)” (TJSP, 11ª Câmara de Direito Público, Apelação 1060778-27.2018.8.26.0053, Relator Desembargador Jarbas Gomes, DJe 08.10.2020)
“A subcontratação não pode ser vista como operação tributável autônoma, não há transporte interestadual ou intermunicipal autônomo, mas simplesmente um único serviço de transporte cuja execução, por imposição legal, se perfaz em etapas, sendo a operadora internacional de transporte multimodal obrigada a fragmentar o serviço, de modo que não se configura a hipótese prevista no inciso II, do art. 155, da Constituição Federal. (…)” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Público, Apelação 1058350-72.2018.8.26.0053, Relator Desembargador Des. Leonel Costa, DJe 22.03.2021)
Como se percebe, a visão arrecadatória e imediatista dos Fiscos — e não só os estaduais — refreia fortemente o esforço exportador de produtos e serviços brasileiros, em grave prejuízo à nossa inserção no cenário internacional e ao crescimento econômico a ela associado.
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[1] https://www.gov.br/antaq/pt-br/central-de-conteudos/estudos-e-pesquisas-da-antaq-1/Quantificacao_do_feeder.pdf
[2] “Art. 3º. O imposto não incide sobre:
(…)
II – operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semielaborados, ou serviços;”
[3] “Art. 155, § 2º, XII – cabe à lei complementar:
(…)
e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, ‘a’;”
[4] “Art. 2º. Transporte Multimodal de Cargas é aquele que, regido por um único contrato, utiliza duas ou mais modalidades de transporte, desde a origem até o destino, e é executado sob a responsabilidade única de um Operador de Transporte Multimodal.
Parágrafo único. O Transporte Multimodal de Cargas é:
(..)
II – internacional, quando o ponto de embarque ou de destino estiver situado fora do território nacional.”
[5] Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 672.
Igor Mauler Santiago, Andréa Ferreira Bedran
Igor Mauler Santiago
é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).
Andréa Ferreira Bedran
é especialista em Direito Tributário pela FGV e pelo Ibet.