Holdings patrimoniais e o ITCMD a valor de mercado no PLP 108/2024: sucessão e domicílio fiscal
Por Pedro Laus
15/12/2025 12:00 am
Reconfiguração normativa do ITCMD e espaço das holdings familiares
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A aprovação do PLP 108/2024 pelo Senado reacendeu discussões relevantes sobre o ITCMD, visto que o projeto pretende reorganizar a lógica da tributação sobre doações e sucessões e, por consequência direta, altera o cenário e gera impactos significativos na atuação das holdings patrimoniais e familiares. É oportuno registrar, desde logo, que o planejamento sucessório não é uma distorção do sistema, mas uma exigência prática do mundo jurídico-econômico. Famílias empresárias, com estruturas patrimoniais complexas, não convivem bem com a imprevisibilidade, os custos e a morosidade dos inventários judiciais. A holding patrimonial se consolidou justamente porque responde a esse cenário, dado que organiza, centraliza, dá previsibilidade e permite continuidade do patrimônio familiar.
Importa destacar que o PLP 108/2024 não elimina ou inviabiliza essa ferramenta de planejamento sucessório. Em realidade, o projeto eleva o nível da técnica para fins de tributação do ITCMD, reposicionando parâmetros e corrigindo assimetrias e lacunas que se formaram ao longo dos anos.
Um exemplo emblemático dessa reorganização é a clássica estratégia de eleger o “domicílio tributário mais favorável” com base no artigo 127 do CTN, que colocou São Paulo no centro dos planejamentos sucessórios até o presente ano de 2025. Isso ocorre porque o estado adota até o presente momento, para fins de ITCMD nas doações de quotas, a tributação pelo patrimônio líquido contábil, e não pelo valor de mercado dos bens que fazem parte do acervo da sociedade.
A diferença prática era expressiva, sobretudo porque a integralização dos bens nas holdings era realizada pelo valor histórico de aquisição, o que projetava um patrimônio líquido muito inferior ao valor venal efetivo dos imóveis ou ativos. Em um ambiente em que o ITCMD incide sobre esse patrimônio líquido contábil reduzido, a economia fiscal se revela extremamente benéfica para a família e bastante previsível. Diante dessa assimetria, muitos contribuintes passaram a fixar o domicílio fiscal do doador em São Paulo, alinhando a sede da holding e o endereço do doador para reforçar coerência documental e, ao mesmo tempo, aproveitar uma base de cálculo substancialmente menor do que aquela que seria apurada em estados que já utilizavam o valor de mercado.
Importa notar, contudo, que essa prática, embora amplamente difundida e utilizada nos últimos anos, já começa a sofrer questionamentos no âmbito administrativo paulista, especialmente após a Resposta à Consulta nº 32.738/2025, publicada em 17 de novembro de 2025.
Nesse precedente, a Secretaria da Fazenda de São Paulo deixa claro que a base de cálculo das quotas não deve se limitar ao patrimônio líquido contábil histórico, mas deve refletir o valor de mercado ou, ao menos, o chamado valor patrimonial real, aproximado economicamente do valor de mercado. Ao afirmar que o uso do PL contábil é apenas uma possibilidade excepcional e dependente de consenso com o Fisco, o entendimento rompe com a prática consolidada que sustentava a atratividade de São Paulo para fins de escolha do domicílio tributário.
Assim, embora tenha sido um vetor relevante nos planejamentos dos últimos anos, o “domicílio mais favorável” em São Paulo passa a conviver com limites mais rígidos e uma postura administrativa que converge com o modelo que o PLP 108/2024 projeta, reduzindo o espaço para planejamentos baseados exclusivamente na diferença entre PL histórico e valor de mercado. Evidentemente, esse entendimento tende a ampliar o contencioso, sobretudo no que diz respeito à legalidade estrita e aos limites de flexibilização dos critérios e conceitos previstos em lei, já que a ampliação interpretativa da base de cálculo não encontra respaldo explícito no texto normativo vigente.
Diante desse contexto, o PLP 108/2024 altera esse cenário de modo ainda mais profundo e estrutural. O projeto impõe que a avaliação das participações societárias seja realizada com base no patrimônio líquido ajustado a valor de mercado, acrescido do fundo de comércio, afastando definitivamente a lógica até então predominante de utilizar o PL histórico como parâmetro de tributação. Esse movimento legislativo, aliado ao recente endurecimento interpretativo manifestado pela administração paulista, redesenha por completo o papel do domicílio fiscal no planejamento sucessório. A eleição do estado de residência deixa de funcionar como mecanismo automático de redução da base de cálculo e passa a exigir análise mais técnica e refinada, levando em conta elementos como a estrutura de alíquotas, regimes de progressividade, benefícios fiscais locais e eventuais reduções de base previstas em cada estado.
A construção de um planejamento tributário voltado à redução do ITCMD deixa de se apoiar no atalho fiscal amplamente utilizado e pouco individualizado que marcou os últimos anos e passa a exigir avaliação técnica detalhada, conduzida estado a estado, caso a caso.
Valor de mercado, fundo de comércio e limites técnicos do novo modelo
Embora a adoção do valor de mercado possa sugerir um endurecimento, é importante reconhecer que esse já é o critério utilizado pela grande maioria dos entes federados. Ocorre que o sistema atual necessita de maior padronização, assim como parâmetros técnicos mais claros, capazes de conferir previsibilidade às avaliações da base de cálculo do ITCMD. O PLP busca justamente preencher essas lacunas, ao determinar que os ativos e passivos sejam ajustados a valor de mercado e que o fundo de comércio seja apurado conforme regulamentação estadual. É nesse ponto que emergem as complexidades mais relevantes do modelo.
É indispensável distinguir, com precisão conceitual, fundo de comércio e goodwill. O primeiro refere-se ao conjunto de intangíveis que compõem o estabelecimento, como clientela, reputação, marcas, layout e know-how. O segundo, por sua vez, diz respeito à expectativa de lucros futuros, projeções financeiras, perspectiva de geração de caixa e potenciais econômicos que não integram a riqueza atual do contribuinte.
Nas versões iniciais do PLP 108/2024 chegou-se a prever a inclusão do goodwill na base de cálculo do ITCMD, tentativa que acabou retirada do texto final exatamente porque deslocava o imposto para o campo da riqueza futura e hipotética, gerando insegurança jurídica e potencial para um contencioso massivo nos estados. A tributação desse tipo de expectativa é tecnicamente inadequada e viola o critério material do ITCMD, que somente pode alcançar a riqueza atual, efetivamente transmitida, jamais projeções econômicas incertas.
A distinção, portanto, é essencial para evitar que estados ampliem irregularmente a base de cálculo por meio de interpretações expansivas e para assegurar que a tributação permaneça aderente à materialidade constitucional do imposto.
No entanto, a própria noção de fundo de comércio tende a se tornar um dos pontos mais sensíveis da aplicação prática. Como o texto remete a definição e a forma de apuração ao legislador estadual, é provável que surjam definições distintas entre os estados, ampliando ou reduzindo o alcance dos ativos considerados para fins de mensuração da base de cálculo. Essa autonomia conferida aos estados, desacompanhada de critérios uniformes, tende a gerar controvérsias relevantes e, muito provavelmente, estimular judicialização. Caberá ao Judiciário definir os limites constitucionais do que pode ser efetivamente reconhecido como fundo de comércio para fins de ITCMD, evitando que interpretações estaduais demasiadamente amplas distorçam a base de cálculo e comprometam a segurança jurídica.
Ao mesmo tempo, o PLP estabelece contenções relevantes à atuação fiscal. O artigo 154 restringe o uso do arbitramento, condicionando-o a hipóteses de subavaliação evidente, omissão ou erro material. Não basta ao fiscal discordar do método de avaliação. Será necessário demonstrar, de forma tecnicamente verificável, que o laudo não retrata a realidade do patrimônio à época da transmissão. A exigência reproduz, no âmbito do ITCMD, a mesma racionalidade firmada pelo STJ no Tema 1.113 relativo ao ITBI, que impede o afastamento do valor declarado pelo contribuinte sem elementos objetivos que demonstrem incompatibilidade manifesta com o valor de mercado. Essa exigência não só preserva a segurança jurídica, como reduz espaços de arbitrariedade administrativa.
O domicílio fiscal também foi disciplinado de modo mais equilibrado. O projeto acolhe a lógica do artigo 127 do CTN, rejeitando tentativas anteriores de vincular exclusivamente o ITCMD ao domicílio residencial do contribuinte. Manteve-se a possibilidade de domicílio fiscal de eleição, desde que haja elementos mínimos de substância. Isso permite que o contribuinte organize sua vida patrimonial de forma coerente e documentada, evitando artificialidades, mas sem perder autonomia.
Planejamento sucessório, governança e a permanência das holdings como instrumento essencial
Nenhuma dessas alterações, seja a adoção do valor de mercado, a incorporação do fundo de comércio ou o novo desenho da progressividade, afasta o papel central das holdings no planejamento sucessório. O PLP 108/2024 não inaugura uma ruptura com as holdings, mas redefine o ambiente em que elas operam, deslocando o foco do mero aproveitamento de lacunas jurídicas para a consolidação de estruturas que reflitam a realidade econômica e patrimonial das famílias.
Estruturas artificiais naturalmente perdem espaço, mas as operações que refletem substância econômica permanecem hígidas. Há, inclusive, um reconhecimento implícito de que a organização patrimonial é legítima e de que as holdings exercem funções que transcendem a economia no ITCMD, preservando continuidade empresarial, governança e racionalidade administrativa.
Do ponto de vista tributário, as holdings patrimoniais continuam extremamente vantajosas para o recebimento de aluguéis e arrendamentos de maior expressão, sobretudo quando comparadas à tributação aplicável à pessoa física. A economia fiscal permanece significativa, e o ganho de organização contábil e operacional mantém elevada relevância prática. Além disso, a holding patrimonial atua como verdadeiro vetor de governança, permitindo unificar a gestão, controlar o ingresso de novos membros, estabelecer regras claras de voto e sucessão, preservar ativos estratégicos e racionalizar riscos de maneira estruturada.
A eventual aprovação do PLP 108/2024 não provoca o abandono da ferramenta, mas exige sua utilização com maior rigor técnico. O planejamento sucessório passa a demandar estudos ainda mais rigorosos sobre alíquotas estaduais, regimes de progressividade, benefícios específicos e regulamentações locais. Pressupõe fundamentos sólidos, coerência entre forma e substância e documentação apta a resistir à fiscalização tributária.
Nesse cenário, forma-se um ambiente mais sofisticado e tecnicamente consistente, menos permissivo a modelagens frágeis ou desprovidas de substância, além de mais aderente a estruturas patrimoniais maduras. O PLP 108/2024 não representa o fim do planejamento sucessório, mas inaugura uma etapa em que apenas projetos estruturados com rigor metodológico e conduzidos com efetiva consistência profissional encontrarão espaço legítimo.
Mini Curriculum
é advogado tributarista e empresarial e pós-graduando em Direito Tributário pelo Ibet.
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