Fato gerador do ISS

Kiyoshi Harada

É preciso melhor explicitar o aspecto material, objetivo ou nuclear do fato gerador da obrigação tributária em matéria de ISS. Este é um tema aparentemente pacífico, mas na prática vem causando muitas dúvidas, senão confusões.

Este é um tema aparentemente pacífico, mas na prática vem causando muitas dúvidas,  senão confusões. Façamos considerações pertinentes para melhor explicitar o aspecto material, objetivo ou nuclear do fato gerador da obrigação tributária em matéria de ISS, sigla com que ficou conhecido o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza previsto no art. 156 da CF in verbis:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar.”

Verifica-se pela simples leitura ocular do texto constitucional duas restrições específicas aplicáveis ao ISS, sem prejuízo das limitações ao poder de tributar do Estado, aplicáveis à generalidade dos tributos e às três esferas impositivas.

A primeira das restrições diz respeito à proibição de o Município tributar os serviços de transportes intermunicipais e interestaduais e de comunicação que ficou na esfera tributária dos Estados-membros. Quanto ao serviço de comunicação convém deixar claro que não se deve distinguir comunicação local das demais comunicações, intermunicipais ou interestaduais como querem alguns estudiosos da matéria, pois, isso violaria regra elementar de hermenêutica em matéria de interpretação de normas restritivas, além de implicar uso de analogia na tributação do ISS pelo Município.

A segunda restrição constitucional refere-se aos serviços definidos em lei complementar. E o legislador complementar, desde o início da implantação do ISS, resolveu definir os serviços tributáveis pelos Municípios por meio de uma lista de serviços que, por essa razão tem natureza taxativa. No início criou-se uma celeuma em torno da tese da taxatividade e exemplificatividade, dividindo as opiniões dos doutos até que o STF firmou a tese pela sua taxatividade, mas, comportando em alguns de seus itens uma interpretação analógica. Evidentemente, a interpretação analógica a que se referiu a decisão da Corte dizia respeito unicamente àqueles itens de serviços em que a própria lista nacional de serviços permitia a flexibilização, como até hoje permite em alguns dos itens da lista anexa à LC nº 116/03.

O fato de o texto constitucional referir-se aos serviços de qualquer natureza é irrelevante para embasar a conclusão de que a lista deve ser exemplificativa, pois aquela expressão não pode ser interpretada isoladamente, mas em conexão com a parte final do dispositivo que se refere aos serviços definidos em lei complementar. A interpretação conjugada das duas expressões permite concluir com acerto que  o serviço a ser tributado deve ser previamente definido em lista pelo legislador complementar que poderá, a seu critério, incluir serviços de qualquer natureza. Naqueles itens em que o legislador complementar fez o uso da palavra “congêneres” fica facultado ao legislador municipal definir quais são os serviços “congêneres” que pretende tributar. Essa situação não é compreendida pela maioria esmagadora dos legisladores municipais que simplesmente transplantam de forma inútil a palavra “congêneres” para suas legislações internas como se pudesse existir tributação ou interpretação do fato gerador por analogia, ferindo o princípio da legalidade estrita.

Mas, existem outras restrições que não estão expressas no texto constitucional, porém, que decorrem de sua correta interpretação. Analisaremos neste artigo duas das questões pertinentes:

(a)  O que é serviço

Não pode o legislador complementar incluir na lista de serviços uma atividade que não configura um esforço humano aplicado à produção. Prestar serviço significa ato ou efeito de servir resultando em produção de um bem econômico de natureza imaterial. Resulta da obrigação de fazer em contraposição ao conceito de mercadoria, um bem material, que resulta da obrigação de dar.[1]  Em outras palavras, não pode ser considerado serviço aquilo que contraria as balizas constitucionais e legais, conferindo-lhe natureza de serviço onde não há qualquer esforço humano aplicado à produção como no caso, por exemplo, de locação de bem móvel considerado inconstitucional pelo STF, hoje, objeto da Súmula vinculante nº 31. É que embora seja de alçada do legislador complementar a definição do fato gerador dos  impostos previstos na Constituição Federal (art. 146, III, a ) ele não é livre para estabelecer definições que atritem  contra conceitos albergados pelo texto constitucional. Ademais,  à luz do próprio art. 110 do CTN os conceitos que derivam do direito privado são vinculantes. Não se pode transformar a locação de bem móvel em prestação de serviços, nem a locação de andaimes. Tampouco, o fornecimento de urnas funerárias, flores e demais bens materiais  que resultam da obrigação de dar, ensejando a tributação pelo ICMS, pode ser considerado como prestação de serviços. Se questionados judicialmente, certamente, esses itens de serviços, a exemplo da locação de bens móveis, serão considerados inconstitucionais.

(b)  Tributação de serviços gratuitos

Os que entendem que o ISS grava o serviço acabam  sustentando a tese da tributação de serviços gratuitos.

Na verdade, o serviço é apenas o objeto do ISS. Seu fato gerador é a efetiva prestação do serviço. O ISS é um imposto de natureza mercantil que resulta da obrigação de fazer, como dito anteriormente. Sua prestação pressupõe um contrato celebrado entre o prestador do serviço e seu tomador. E três são os elementos estruturais do contrato: as partes, o objeto e o preço, podendo ser incluído, também, o elemento volitivo, pois ninguém pode ser compelido a firmar contrato. Daí porque sem preço não há contrato, vale dizer, não há prestação de serviço a ser alcançada pela norma tributária. Por isso, o serviço de  entrega de pizza ou outros gêneros alimentícios (delivery), como forma de atrair clientela ainda que isoladamente conste da lista de serviços não é passível de tributação pelo ISS, quer por falta de preço, base de cálculo do ISS, quer por ele configurar uma atividade-meio da obrigação de dar que resulta na circulação de bem material tributável pelo ICMS.

Daí, também, a intributabilidade pelo ISS em relação aos serviços de construção de prédio pelo proprietário do terreno, pessoa física ou jurídica, pelo simples fato de que ninguém celebra contrato consigo próprio, inexistindo, por conseguinte, prestação de serviço a si próprio.

Cumpre lembrar que a prestação de serviços gratuitos não se confundem com serviços efetivamente prestados de forma onerosa, mas sem recebimento do respectivo preço em razão do inadimplemento obrigacional. Tampouco se confunde com a expectativa de prestação de serviço em razão de sua previsão contratual. Não é dado ao fisco autuar o contribuinte com base no contrato de prestação de serviço vencido, porém, sem a prova de sua efetiva prestação. Nem é possível ao fisco exigir o pagamento do ISS pelo adiantamento do preço do serviço ainda não prestado, o que é comum nos preços cobrados pelas instituições privadas de ensino, eufemisticamente denominados de mensalidades escolares. Sem a efetiva prestação de serviços não há ocorrência do fato gerador do ISS da mesma forma que sem a pactuação de preço não há que se cogitar de prestação de serviços para efeito de incidência do ISS.

 

Nota

[1] Cf. nosso ISS doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2008, p. 36.

Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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