É preciso proteger aqueles profissionais que denunciam ilícitos fiscais
Fabiano Ramalho
O mundo que conhecemos está mudando. Não apenas sob o aspecto econômico, mas também na forma como as pessoas se relacionam. A convergência de um mundo globalizado e dos avanços tecnológicos possibilitaram condições nunca antes vistas para o progresso humano. Vivemos mais, vamos mais longe e com mais saúde.
E, com o avanço de três poderosas ferramentas tecnológicas, a saber, o big data[1], a inteligência artificial e os objetos conectados (ou Internet dos objetos), essas mudanças aceleraram ainda mais. Sob a lógica da inovação constante, uma nova realidade social e econômica se impôs de forma irresistível, mudando a vida dos indivíduos. Segundo Luc Ferry[2], estamos passando para uma nova etapa da revolução industrial, chamada “economia colaborativa”, cuja principal característica é a autonomia extrema dos indivíduos no desenvolvimento de atividades econômicas.
Novas formas de exercer atividades econômicas, como aquelas decorrentes das aplicações Uber, Blablacar e AirBnB, onde os indivíduos exploram seu patrimônio pessoal para fins econômicos, provocaram a derrocada de um mundo em rápida obsolescência e fizeram com que profissões tradicionais ficassem fadadas ao desaparecimento, num inevitável processo de dumping social.
Nesse cenário turbulento, uma nova ética social reclama seu espaço, a fim de acomodar as novas relações sociais e permitir o aperfeiçoamento das instituições político-jurídicas. O Direito precisa, evidentemente, apresentar respostas a essas novas demandas sociais e, no caso do Direito Tributário, uma nova ética começa a delinear os contornos da atuação dos operadores do direito e da contabilidade.
Essa ética da alteridade em matéria tributária começa a surgir no meio jurídico por meio da positivação de normas de responsabilidade, que impõem deveres de comportamento para os profissionais da tributação, obrigando-os, por exemplo, a reportar atos de desconformidade à lei, praticados por seus clientes.
É o caso, e.g., da obrigação de declarar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), qualquer suspeita de crime de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. A Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12, obriga diversas pessoas físicas e jurídicas a promoverem essa declaração, prevendo, em seu artigo 1°, que constitui crime “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Nos últimos 5 anos, uma média superior a 400.000[3] comunicações de suspeita de irregularidades foram feitas ao Coaf por ano, desencadeando procedimentos diversos pelas autoridades competentes, com vistas à prevenção e ao combate da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo.
Mas talvez o mais expressivo exemplo de mudança na ética profissional esteja surgindo em alterações iminentes da atividade dos contadores e auditores. Está em fase de implantação no Brasil o Non Compliance with Laws and Regulations (não conformidade com as leis e regulações) (Noclar), um dos módulos do International Financial Reporting Standards, editada em julho de 2016 pela International Ethics Standards Board for Accountants (Conselho de Normas Éticas Internacionais para os Profissionais da Contabilidade), com o intuito de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo no mundo.
No Brasil, o Noclar está sendo traduzido e analisado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e pelo Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), dentre outros órgãos. Prevista para entrar em vigor em julho de 2017, a norma exige que, não havendo outra solução, os contadores e auditores informem aos órgãos competentes atos de desconformidade à lei, praticados pelas empresas para as quais prestem serviços.
Essa norma representa uma evolução enorme em termos de ética profissional, a ponto de impor a revisão de velhos conceitos relacionados com o sigilo profissional. Em nome do interesse público, o dever de comunicar atos de desconformidade à lei (e não apenas aqueles relacionados com lavagem de dinheiro e terrorismo, objetos do Coaf), tem um forte apelo de moralização das atividades econômicas, ao mesmo tempo em que impõe uma forte disciplina legal aos seus agentes. As possibilidades em termos de combate à evasão fiscal, por exemplo, são imensas, o que contribuiria para o equilíbrio das contas públicas. Por isso, não é exagero admitir que, em curto prazo, normas semelhantes sejam assimiladas pela legislação pátria, alcançando diversos outros profissionais.
No entanto, diante dessa tendência normativa inovadora, surgem preocupações legítimas com a preservação de direitos e garantias previstos em nosso Ordenamento Jurídico, como, e.g., a segurança jurídica, o respeito às prerrogativas profissionais e a proteção daqueles que comunicam os atos de desconformidade à lei.
Como oferecer a devida proteção contra perseguições e represálias? Mesmo na experiência do Coaf, onde há proteção por meio do sigilo, ocorrem falhas que expõem o delator a diversos riscos. Como admitir, então, a vigência imediata do Noclar ou norma semelhante, cujo alcance é muito maior e não tem previsão de proteção ao comunicante?
O Noclar advém de um conjunto de pronunciamentos contábeis padronizados globalmente, com previsão de aplicação simultânea nos diversos países signatários. Ocorre que nem todos possuem maturidade social e legislativa para recepcionar as novas normas e procedimentos. É o caso do Brasil, que possui um gap nesse sentido, acumulando uma grande defasagem no desenvolvimento social e político em relação aos países mais desenvolvidos. Essa desvantagem impõe ao país uma dificuldade extra na implementação dessa nova matriz de ética profissional para os profissionais da contabilidade.
Não é apenas a falta de uma legislação de proteção para as comunicações de atos ilegais, mas também a falta de uma cultura que permita uma consciência plena do dever de legalidade que causa preocupação. Impor essas alterações sem o devido amadurecimento legal e social implicaria em queimar etapas importantes do desenvolvimento de nossas instituições, o que colocaria em risco tanto a eficácia das novas medidas quanto a segurança jurídica dos cidadãos.
Na maioria dos países desenvolvidos, a comunicação dos atos de desconformidade à lei deriva de uma maturidade social avançada, cuja cultura jurídica reconhece tal prática como um “direito” do cidadão. De fato, quem comunica atos contrários à lei o faz para o exercício de um direito, em prol do interesse público, o que é garantido por lei. Muito antes de se pensar em Noclar, já existia nesses países todo um arcabouço legal que garantia o exercício do direito de relatar os atos ilegais e protegia o comunicante de qualquer consequência nociva.
Normas internacionais, ao longo do tempo, sistematizaram essa proteção em nível global por meio de tratados internacionais, como é o caso da “Convenção Civil sobre a corrupção do Conselho Europeu”, de 04/11/1999, e da “Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção”, de 31/10/2003. Esta última, da qual o Brasil é signatário, prevê, em seu artigo 33, a proteção de toute personne qui signale aux autorités compétentes, de bonne foi et sur la base de soupçons raisonnables os fatos de corrupção[4].
Nos EUA, onde o comunicante é conhecido como whistleblower, uma série de normas oferecem proteção ao exercício do direito de comunicar atos ilegais, como o Whistleblower Protection Act (Public Law 101-12)[5], de 1989, que protege os servidores públicos federais que reportam desvios de conduta em suas agências governamentais. O mesmo ocorre na França, onde o Lanceur d´Alerte, como é chamado, é protegido por leis e regulamentos diversos, como a Loi 2007-1598[6], de 13/11/2007, relativa à luta contra a corrupção.
A Transparência Internacional, ONG dedicada ao combate à corrupção ao redor do mundo, editou o International Principles for Whistleblower Legislation, que é um conjunto de sugestões legislativas para a proteção de quem reporta desconformidade e para o incentivo dessa reportagem. Nesse documento, constam os princípios básicos que animam o direito de reportar, como consta do seguinte trecho:
“The right of citizens to report wrongdoing is a natural extension of the right of freedom of expression, and is linked to the principles of transparency and integrity.” [7]
No entanto, mesmo diante de tamanho suporte legislativo, a proteção ao comunicante ainda apresenta falhas. Um caso ficou famoso na Europa, conhecido como LuxLeaks[8], onde dois lanceurs d’alerte, Antoine Deltour e Raphaël Halet, colaboradores do escritório de auditoria PricewaterhouseCoopers (PwC), foram condenados[9] pela Justiça de Luxembourgo a 12 meses de prisão e multa de 1.500 € e nove meses de prisão e 1 000 €, respectivamente, por terem revelado o conteúdo de várias centenas de acordos fiscais extremamente vantajosos entre o fisco de Luxemburgo e clientes da PwC, como a Apple, Amazon e Pepsi.[10]
Se mesmo lá, onde existe forte proteção jurídica para o comunicante, ocorrem represálias e perseguições, como esperar que a obrigação de contadores e de outros profissionais brasileiros de comunicar atos de desconformidade à lei, sem nenhuma proteção prévia, possa alcançar êxito no Brasil? Parece prematuro admitir a vigência do Noclar e de normas do mesmo gênero no país, diante desse cenário preocupante.
Ninguém, em sã consciência, seria contra o desenvolvimento de novas regras de ética profissional, sobretudo quando voltadas ao combate à corrupção, à fraude e à evasão fiscal. No entanto, aderir a tais regras sem a devida proteção seria um verdadeiro suicídio, com graves consequências sociais para o denunciante. É condição sine qua non, para o amadurecimento da ética tributária no Brasil, o desenvolvimento sustentável de condições sociais, políticas e econômicas, voltadas para a formação de uma cultura social e jurídica que permitam a implementação segura de normas com essa finalidade. E só conseguiremos isso através de um amplo debate público e da formação de uma adequada consciência sobre o justo em matéria tributária.
[1] Todo tipo de rastro que deixamos na Internet e que são coletados, tratados e comercializados.
[2] Disponível em https://goo.gl/HjXi8a
[3] Disponível em https://coaf.fazenda.gov.br/menu/estatisticas/comunicacoes-recebidas-por-segmento
[4] Disponível em http://www.unodc.org/unodc/fr/treaties/CAC/
[5] Disponível em https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/STATUTE-103/pdf/STATUTE-103-Pg16.pdf
[6] Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000524023
[7] Disponível em www.transparency.org
[8] Ver mais em https://goo.gl/TXjphw
[9] Atualmente em fase de recurso na Corte de Luxemburgo.
[10] Ver mais em https://goo.gl/khul20
Fabiano Ramalho
Advogado tributarista, presidente da Associação de Estudos Tributários de Santa Catarina, integrante da Comissão de Direito Tributário da OAB-SC e da Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina.