Direito Adquirido e Segurança Jurídica – O Dever Estatal de Indenizar nas Esferas Previdenciária e Tributária
Dalton Cesar Cordeiro de Miranda
Inicialmente precisamos ter em boa conta as lições lançadas em “Curso de direito constitucional” no sentido de “que a aplicação da lei no tempo continue a ser um dos temas mais controvertidos do Direito hodierno. Não raro, a aplicação de novas leis às relações já estabelecidas suscita infindáveis polêmicas. De um lado, a idéia central de segurança jurídica, uma das expressões máximas de Estado de Direito; de outro, a possibilidade e necessidade de mudança.” [1]; sendo certo que nas esferas de Direito Previdenciário e Tributário é tarefa ainda mais árdua identificar em quais situações o Estado busca de fato avançar positivamente ao encontro de soluções, ou quando ultrapassa e viola a segurança jurídica, cabendo o ressarcimento daqueles quanto lesados por tais condutas, mesmo que lícitas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) em discussões dessa natureza, aqui as de ordem previdenciária e tributária, tem firmado posicionamento nos sentido de que ultrapassando a Administração a linha tênue daquilo que considerado direito adquirido é manifesta violação à segurança jurídica, razão pela qual há o Estado de ser responsabilizado por seus atos.
Em temas de Direito Previdenciário, o STF, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.291, posicionou-se no sentido de que “A quebra de confiança sinalizada pelo Estado, ao criar, mediante lei, carteira previdenciária, vindo a administrá-la, gera a respectiva responsabilidade.”
E do voto do Ministro relator destacamos, a bem ilustrar o debate, os seguintes trechos:
(…)
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.104/DF, – relatora Ministra Cármen Lúcia, acórdão veiculado no Diário da Justiça de 8 de novembro de 2007 –, consignei que, embora seja possível a modificação do regime jurídico em âmbito previdenciário, não cabe levar às últimas consequências essa admissão, sob pena de ingressar-se na seara do fascismo, com a supremacia, sem balizas, do próprio Estado.
A relação jurídico-previdenciária é tipicamente de longa duração. O participante de um plano de previdência, normalmente, só desfruta do benefício após extenso período de contribuição, tornando-se, à medida que corre o tempo, um cliente cativo da carteira. Afirmo isso porque, pressupondo o usual e não o teratológico, a desvinculação de um plano de previdência, depois de determinado período, resulta em prejuízo ao participante quando comparada à permanência, ainda que as contribuições sejam resgatadas. Com o passar dos anos, aumenta a situação de hipossuficiência. Alguém vinculado a um fundo, por vinte e cinco anos, por exemplo, ainda vê largo tempo diante de si para usufruir de qualquer benefício, mas, simultaneamente, terá enorme desvantagem se desvincular-se. Em consequência, a liberdade de escolha – sair ou manter-se no plano em razão da modificação de regras – é reduzida, e o Direito não o pode deixar ao desamparo.
Por outro lado, como toda relação jurídica de longa duração, a previdenciária é, de certo modo, aberta, por ser impossível prever, desde logo, todas as mudanças sociais, econômicas e científicas que poderão desequilibrar o vínculo e exigir adaptação. Ante as inúmeras situações passíveis de alterar o suporte fático sobre o qual a relação jurídica foi criada, a expectativa de alguma modificação de regras para restabelecer o equilíbrio entre direitos e obrigações é implícita, seja a relação de natureza contratual, seja estatutária.
A adequação, no entanto, não pode olvidar princípios como os da confiança, da solidariedade, da responsabilidade e da segurança. A par desse aspecto, ao avaliar a conformidade dessas mudanças com o Direito, o intérprete deve sempre indagar a quem competia, no vínculo, assumir o risco, pois, embora a restauração do equilíbrio financeiro e atuarial do plano previdenciário mostre-se um imperativo sistêmico, isso não quer dizer que o ônus deva recair sobre o participante.
(…)
Contudo, a modificação da realidade, por mais grave, não se pode impor à força normativa da Carta da República. Uma coisa é afirmar a alteração ou a supressão de certo regime jurídico, respeitada a razoabilidade. Algo diverso é colocar em segundo plano direitos adquiridos e, digo mais, situações subjetivas já reconhecidas. Se formos ao inciso IV do § 4º do artigo 60 da Carta Federal, constataremos uma dualidade: a proteção, no tocante a emendas, faz-se presente considerados direitos e garantias. (destacamos)
E forte nesses argumentos, concluiu afirmando que:
(…)
Não têm os participantes o dever jurídico de arcar com os prejuízos da ausência da principal fonte de custeio da Carteira, mesmo que a Administração Pública, no tocante à decisão de extingui-la, tenha atuado dentro dos limites da licitude. A lesão indenizável resulta dos efeitos da posição administrativa e das características híbridas do então regime previdenciário, e não propriamente da atuação regular ou irregular da Administração. É antiga a jurisprudência do Supremo sobre a possibilidade de configuração da responsabilidade do Estado, ainda que o ato praticado seja lícito. Tal entendimento vem sedimentado no princípio basilar da igualdade, segundo o qual descabe imputar a particulares individualizáveis os encargos sociais decorrentes da atuação administrativa implementada em prol de toda a coletividade. Em caráter exemplificativo, cito o acórdão atinente ao Recurso Extraordinário nº 113.587, relator Ministro Carlos Velloso, publicado em 3 de abril de 1992. (destaques nossos)
Diferente não é o entendimento quanto à possibilidade de responsabilização do Estado no campo do Direito Tributário, uma vez que ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 131.741, aquele Supremo Tribunal Federal consignou que “Ocorrendo resposta a consulta feita pelo contribuinte e vindo a administração pública, via o fisco, a evoluir, impõe-se-lhe a responsabilidade por danos provocados pela observância do princípio primitivo.”
E do voto confirmado pelo Colegiado é de se destacar:
(…)
A relação jurídica Estado/contribuinte há de repousar, sempre, na confiança mútua, devendo ambos atuarem com responsabilidade, fiéis ao ordenamento jurídico em vigor.
(…)
Senhor Presidente, este caso é exemplar no tocante à necessidade de adotar-se postura que estimule os contribuintes a acionarem o instituto da consulta e, ao mesmo tempo, atribua à Administração Pública uma maior reponsabilidade ao respondê-las. De duas, uma: ou a Administração Pública não está compelida a atuar no âmbito da consultoria, ou está e, claudicando, pouco importando o motivo, assume os danos que tenha causado ao contribuinte. O que não se concebe é que, diante da normatividade da matéria, fique a Administração Pública, na hipótese de equívoco – que, afinal, para ela implicou inegável vantagem – deixe de indenizar aquele que sofreu o correspondente prejuízo. Dizer-se que, na espécie, este não ocorreu é olvidar a perda do poder aquisitivo da moeda e, mais do que isto, a circunstância de precocemente haver o interessado desembolsado importância para satisfazer o tributo quanto este ainda não era exigível. (…). Uma coisa é antecipação voluntária, outra é a induzida por resposta do órgão próprio da Fazenda que, uma vez descumprida, acarretaria a lavratura de auto de infração, sujeitando o contribuinte às penalidades aplicáveis.
Vê-se das hipóteses acima apresentadas que a Corte Suprema, seja em matéria de Direito Previdenciário, seja em Direito Tributário – observamos que em linha com a doutrina [2] -, permite-nos afirmar e concluir que o Estado deve sim arcar e indenizar com os danos causados aos administrados quando supera a linha daquilo quanto razoável e violador dos princípios constitucionais do direito adquirido e da segurança jurídica, mesmo que seus atos estejam sustentados em condutas lícitas.
Esperamos, assim, que tal reconhecimento e necessidade de reparos – pelo Estado e por se sujeitar à ordem jurídica [3] – aos danos causados aos administrados não se restrinja às demais instâncias do Poder Judiciário, mas, também, que seja reconhecida e aplicada pelos órgãos da Administração competentes pela análise de processos administrativos oriundos da atuação do Fisco, tanto em matérias de ordem previdenciária, tanto aquelas tributárias.
Notas
1. Op. cit., /Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 446
2. “Para se imputar ao Poder Público a responsabilidade objetiva (teoria do risco-proveito) não é necessário questionar se a atuação do Estado foi legítima ou ilegítima; relevante é verificar a perda da situação juridicamente protegida. Quanto a esse aspecto, o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece: “Em matéria de responsabilidade estatal por danos causados pelo próprio Estado, tem razão Sotto Kloss quando afirma que o problema há de ser examinado e decidido em face da atuação do sujeito passivo – a de lesão em sua esfera juridicamente protegida – e não em face dos caracteres do comportamento do sujeito ativo.” (op.cit., p. 804)
3. “Curso de Direito Constitucional” //Dirley da Cunha Júnior, Salvador: Editora JusPodium, 5ª edição revista, ampliada e atualizada, 2001, p. 944
Dalton Cesar Cordeiro de Miranda
Advogado e Consultor em Trench, Rossi e Watanabe Advogados. Pós-graduado em Administração Pública pela EBAP/FGV.