Desafios do processo administrativo do IBS: soluções do PLP 108/2024

Por Vitor Laurindo Sivini Angelo, Francieli Daiane Krampe

01/09/2025 12:00 am

A reforma tributária do consumo, implementada pela Emenda Constitucional 132/2023, instituiu um novo paradigma para a tributação brasileira ao substituir o ICMS e o ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e outorgar competência para a União para editar o veículo introdutor da regra-matriz de incidência tributária.

No exercício dessa competência legislativa, foi editada a Lei Complementar 214/2025, a qual delineou os contornos gerais do IBS, mas não só, da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), sua irmã gêmea.

Não obstante a profundidade das mudanças, a EC 132/2023 foi lacônica em matéria processual, limitando-se a atribuir ao Superior Tribunal de Justiça competência originária para dirimir conflitos havidos entre entes federativos ou entre eles e o Comitê Gestor acerca tanto do IBS como da CBS [1].

Tal omissão, somada à complexidade da gestão compartilhada, impõe a necessidade de infraconstitucionalmente serem estabelecidas as diretrizes do contencioso administrativo do IBS.

Nesse contexto que está inserido o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024 que regulamenta o processo administrativo tributário do IBS, define a organização, as competências do Comitê Gestor e estabelece as regras do procedimento e julgamento das impugnações e recursos no âmbito administrativo.

Um dos pontos centrais do novo modelo é a conformação jurídica do Comitê Gestor do IBS. Diferentemente de experiências anteriores de gestão colegiada, o Comitê Gestor não é apenas um órgão deliberativo desprovido de personalidade, trata-se de entidade pública sob regime especial, com CNPJ próprio, dotada de autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira (ainda que até o momento não se saiba precisar exatamente sua natureza jurídica).

Tal configuração assegura ao Comitê Gestor a competência para editar regulamentos únicos, uniformizar a interpretação da legislação do IBS e a criação de deveres instrumentais, ter aos seus cofres direcionado o montante arrecadado e distribuir essas receitas, mas, sobretudo, gerir o contencioso administrativo do IBS, atribuição essa que não implica de maneira nenhuma atribuição para fiscalizar, lançar e cobrar, a qual, nos termos do artigo 156-B, § 2º, inciso V do Texto Constitucional, continua com as “administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

O projeto de lei complementar adrede referido estrutura o processo administrativo tributário em instâncias múltiplas e integradas. O lançamento de ofício do IBS, realizado pela administração tributária do estado/município/Distrito Federal de destino da operação, pode ser impugnado no prazo de vinte dias, instaurando a fase litigiosa inicial.

Na primeira instância, o julgamento será atribuição de uma Câmara de Julgamento composta paritariamente por servidores estaduais, municipais e do Distrito Federal, com Presidência alternada, refletindo o modelo cooperativo que inspira o novo sistema.

As decisões de primeira instância podem ser objeto de recurso voluntário interposto pelo contribuinte ou remessa de ofício, instrumentos os quais serão apreciados por Câmaras de Julgamento de segunda instância, uma para cada unidade federativa, com composição colegiada, contando com a presença de representantes dos contribuintes indicados por entidades de classe (algo semelhante com o que temos no Carf e no TIT-SP hoje, por exemplo).

É prevista ainda a instalação de uma Câmara Superior do IBS, órgão nacional incumbido de uniformizar a interpretação da legislação e proferir decisões com efeito vinculante, em prol da uniformidade e simplicidade almejadas pela reforma como um todo.

Além disso, o PLP 108/2024 prevê a criação de instâncias de uniformização intergovernamental, por meio dos denominados Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, cuja atribuição nitidamente é prevenir ou resolver divergências interpretativas a respeito da legislação do IBS.

Apesar do desenho normativo robusto, a implementação prática do modelo enfrenta desafios relevantes. O primeiro deles reside na consolidação da coordenação federativa, uma vez que alinhar interesses de 27 estados e mais de 5.500 municípios em um sistema único exige maturidade institucional e mecanismos eficientes de deliberação.

Uniformização
Outro desafio relevante consiste na efetiva uniformização interpretativa, veja a experiência havida no Judiciário que continua, a despeito da normatização do microssistema de precedentes vinculantes, produzindo decisões díspares para casos semelhantes.

Ainda que o PLP 108/2024 contemple a edição de regulamento único e a atuação de uma instância superior destinada à uniformização da jurisprudência administrativa nacional sobre o IBS, subsiste o risco de decisões conflitantes entre as Câmaras estaduais/municipais/do Distrito Federal e, sobretudo, entre o entendimento delas cotejado aos que venham a ser produzidos no Carf relativamente à CBS.

Em nosso sentir, a superação desse obstáculo dependerá não apenas da existência formal de mecanismos integradores, mas da atuação efetivamente transparente e coordenada dos órgãos julgadores da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, bem como do comprometimento institucional com a construção e fomento dos valores que sustentam a reforma tributária.

Mas, ele não é o único, já que a transição do modelo fragmentado para o integrado demanda investimentos significativos em tecnologia, treinamento e adaptação dos fiscos e dos contribuintes.

Assim, entendemos que o êxito do contencioso administrativo dos tributos gemelares IBS-CBS dependerá, em grande medida, da capacidade do Comitê Gestor e da Receita Federal de exercerem seu papel com autonomia, eficiência e imparcialidade, transformando o potencial de litigiosidade em cooperação. Em suma, o desafio é concretizar os valores postos.

O sucesso da reforma tributária depende, em última análise, do equilíbrio entre cooperação política e rigor técnico, sob pena de a promessa de simplificação, quiçá de modernização, converter-se em fonte de novos conflitos.

[1] Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
j) os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V;

Mini Curriculum

Vitor Laurindo Sivini Angelo
é especialista em Direito Tributário pelo Ibet-AL e mestrando em Direito Tributário pelo Ibet-SP e advogado,

Francieli Daiane Krampe
é especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), mestranda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e advogada.

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