Das contribuições previdenciárias: Funrural e o STF — o que esperar?
Fábio Pallaretti Calcini
DI) 4.395 e do noticiário nacional sobre o fato de o ministro da Fazenda Haddad ter ido “passar o pires” no Supremo Tribunal Federal, tendo entre seus alvos o referido julgamento.
No Brasil, infelizmente, os temas tributários tornam-se verdadeiros highlanders, pois parecem nunca se encerrar efetivamente.
Não é diferente para a temática do Funrural, pois tal tributação já passou pelo crivo da constitucionalidade em diversas ocasiões, podendo citar, especialmente, os Recursos Extraordinários (RE) 363852 (“caso Mataboi”), 718.874, 761.263, 700.922 e 611.601.
Restou, no entanto, a apreciação da ADI nº 4.395, iniciada em 2010 e que voltará, mais uma vez, à pauta do STF no dia 9 de novembro de 2023 para proclamação do resultado do julgamento encerrado e realizado no plenário virtual, sob a presidência do ministro Luis Roberto Barroso.
O julgamento a seguir teve início em 2020:
“Decisão: Após os votos dos Ministros Gilmar Mendes (Relator), Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Roberto Barroso, que julgavam improcedente a ação direta de inconstitucionalidade; dos votos dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, que conheciam parcialmente da ação, julgando-a procedente, para declarar a inconstitucionalidade, com redução de texto, dos seguintes dispositivos: (i) Art. 1º da Lei 8.540/1992, em relação à expressão da pessoa física, na parte em que altera o art. 25 da Lei 8.212/1991; (ii) Art. 1º da Lei 9.528/1997, relativamente à expressão empregador rural pessoa física na parte em que altera o artigo 25 da Lei 8.212/1991; e à expressão da pessoa física de que trata a alínea ‘a’ do inciso V do art. 12, nas partes em que alteram o artigo 30, IV e X, da Lei 8.212/1991; (iii) Art. 1º da Lei 10.256/2001, no que se refere à expressão do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, na parte em que altera o art. 25 da Lei 8.212/1991; e (iv) Art. 9º da Lei 11.718/2008, no tocante à expressão produtor rural pessoa física, na parte em que altera o art. 30, XII, da Lei 8.212/1991; e do voto do Ministro Marco Aurélio, que assentava a inconstitucionalidade do artigo 25 da Lei nº 8.212/1991, na redação conferida pela Lei nº 10.256/2001; o julgamento foi suspenso para aguardar o voto do Ministro Dias Toffoli (Presidente), que não participou deste julgamento por motivo de licença médica”.
Com isso, já no final de 2022, o ministro Dias Toffoli profere seu voto:
“Após o voto do Ministro Dias Toffoli, que, divergindo em parte do Ministro Gilmar Mendes (Relator), julgava parcialmente procedente a ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal, ao art. 30, IV, da Lei nº 8.212/91, a fim de afastar a interpretação que autorize, na ausência de nova lei dispondo sobre o assunto, sua aplicação para se estabelecer a sub-rogação da contribuição do empregador rural pessoa física sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção (art. 25, I e II, da Lei nº 8.212/91) cobrada nos termos da Lei nº 10.256/01 ou de leis posteriores, o julgamento foi suspenso para proclamação do resultado em sessão presencial. Não participaram os Ministros Nunes Marques e André Mendonça, sucessores, respectivamente, dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio. Plenário, Sessão Virtual de 9.12.2022 a 16.12.2022.”
Sem grandes dificuldades, podemos notar que o resultado do julgamento realizado pelo Supremo, por maioria (6 a 5) foi pela constitucionalidade/inconstitucionalidade, com êxito dos contribuintes e também do Fisco.
Como assim? Explico.
Sob o ponto de vista da plena inconstitucionalidade do tributo (pleito maior), tal qual já havia decidido o colendo tribunal, a vitória foi da União, uma vez que houve a manutenção da exigência do tributo (Funrural). Daí se dizer que houve êxito do Fisco (6 a 4).
No entanto, o voto do ministro Dias Toffoli foi muito feliz e claro em demonstrar que, além da inconstitucionalidade plena, havia também debate, por via reflexa, do artigo 30, IV, da Lei nº 8.212/91 (“sub-rogação”), na medida em que, mesmo que o tributo fosse devido, não seria possível a exigência em face dos sub-rogados (“adquirentes da produção rural”).
Isto porque, ao se reconhecer a inconstitucionalidade formal e material (nulidade sem modulação), pelo pleno do STF no “caso Mataboi”, das leis que instituíram a sub-rogação para as aquisições de pessoa física produtor rural empregador, bem como Resolução do Senado 15/2017, inexistiria lei até o momento autorizando essa retenção e respectiva cobrança em face de tais sujeitos passivos, sobretudo, diante do princípio da legalidade tributária [1].
Daí porque, embora reconheça que o tributo, em si, fosse constitucional, a sub-rogação (tema menor), de fato, teria um vício a ser reconhecido, razão pela qual julgou parcialmente procedente a ADI.
Neste sentido, tivemos 5 votos pela total improcedência da ação direta (total inconstitucionalidade) e 5 votos pela total procedência, havendo a peculiaridade de que um dos votos julgou parcialmente procedente, acolhendo unicamente o tema menor quanto à sub-rogação, o que implica naturalmente na vitória parcial, por maioria, aos contribuintes.
Tais considerações são relevantes, pois, somente resta ao STF, em sessão presencial, proclamar o que foi decidido em julgamento virtual já encerrado.
Por isso, nos parece equivocada a atuação do ministro da Fazenda pretendendo “passar o pires” no Supremo, invocando esse julgamento.
E, com todo respeito, o equívoco não se dá somente por força do fato de que o julgamento está encerrado, tendo a União e o contribuintes obtido parcial vitória.
O primeiro ponto, aliás fundamental, é que dentro do Estado Democrático de Direito, que tem entre suas pilastras a separação dos Poderes, o Supremo exerce a função maior de guardião da Constituição, não sendo palco adequado para se “passar o pires”, ou “pedir esmolas”.
A atuação desse tribunal é técnica, como guardião e interprete maior do texto constitucional, e, portanto, tais condutas a fim de “pressionar” e apontar em casos específicos uma pretensão arrecadatória, como se aquele Poder fosse um instrumento do Executivo, nos parece algo totalmente fora da relação harmônica e independente preconizada no artigo 2º, da Constituição e tida como cláusula pétrea (artigo 60), tamanha a sua importância.
Mais do que isso, sabemos que os ministros do STF além de altamente competentes e qualificados, exercem sua função — verdadeiro sacerdócio — com independência, nos parecendo inadequado esse tipo de procedimento, notadamente, pelo fato de que a União — tanto por meio de suas Procuradorias como da Fazenda Nacional, ou mesmo da Advocacia Geral — exerce um brilhante trabalho em favor dos interesses do Estado.
Não se pretende dizer que, em hipótese alguma, um ministro de Estado, ficaria impedido de dialogar com os demais Poderes. No entanto, isso deve se dar sob uma perspectiva institucional e com pautas gerais de interesse de toda a sociedade e do governo. O que, efetivamente, não nos parece ser o caso.
Da mesma forma, ao afirmar que o Supremo é técnico e seus ministros imparciais, não significa sustentar que haveria insensibilidade às necessidades de receita pelo Estado para concretizar os direitos fundamentais da Constituição, mas, como é de conhecimento, existem limites que devem ser observados — Estado Fiscal — [2], como se deu no julgamento encerrado quanto ao Funrural.
E, mesmo que houvesse acolhimento à suposta pretensão do ministério, os números da possível arrecadação com o tema nos parecem altamente questionáveis, pois grande parte dos adquirentes que discutem essa cobrança na esfera administrativa e/ou judicial possuem outros relevantes argumentos jurídicos, como, por exemplo, a própria imunidade nas receitas de exportação, indicando, inclusive, a continuidade por mais longos anos dos processos judiciais, não se confirmando a sonhada arrecadação.
Temos forte convicção de que o STF e seus ministros certamente conduzirão da melhor forma o tema, como de costume, reforçando a importância do Estado Democrático de Direito, por meio da segurança jurídica e da independência harmônica dos Poderes, estando certo que somente se curvam à Constituição e não a eventual pressão das partes, seja o Fisco ou o contribuinte.
[1] Sobre o tema: https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/fabio-calcini-cabe-stf-julgar-adi-4395 e https://www.conjur.com.br/2017-abr-07/direito-agronegocio-implicacoes-decisao-stf-respeito-funrural
[2] Sobre o tema: FUCK, Luciano Felício. Estado Fiscal e o Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva/IDP, 2018; NABAIS, José Casalta. Problemas Nucleares de Direito Fiscal. Coimbra: Almedina, 2020; CALCINI, Fabio. Solução da crise está distante da busca pelo aumento da carga tributária. Conjur. 3 de março de 2016 https://www.conjur.com.br/2016-mar-03/fabio-calcini-aumento-tributos-nao-solucionara-crise-financeira
Fábio Pallaretti Calcini
Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV Direito-SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.