Cooperação, transação e honorários de sucumbência
Sergio André Rocha
Semana passada, esta ConJur publicou reportagem de Danilo Vital sobre um caso que se encontra em julgamento pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 2.032.814), cujo objeto é definir se a desistência de ação no contexto de transação tributária gera, para o contribuinte que desiste e renuncia ao seu direito, a obrigação de pagar honorários advocatícios para a Fazenda Nacional.
Spacca
Este processo é originário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que proferiu decisão reconhecendo que, uma vez que a desistência da ação é uma imposição da própria lei da transação (Lei nº 13.988/2020), não teria sentido a condenação do contribuinte ao pagamento de honorários advocatícios, uma vez que estaria apenas observando determinação legal. Veja-se o seguinte trecho da ementa desta decisão:
“A compreensão acerca do cabimento da verba honorária, no caso específico dos autos, tem a ver, justamente, com o fato de que o contribuinte, para aderir ao parcelamento de que trata a Lei nº 13.988, precisa renunciar ao direito que se funda na ação em que discutidos os débitos a serem incluídos naquele parcelamento. Como a própria lei do parcelamento prevê, além da renúncia, o pagamento de honorários advocatícios pelo devedor no ato de transação, não faz sentido — para evitar o enriquecimento sem causa da Fazenda Nacional —, o arbitramento de mais honorários por conta da extinção do processo judicial que, como visto, é uma imposição prevista naquela lei.”
A matéria chegou, então, ao STJ, no aludido Recurso Especial que se encontra sob a relatoria do ministro Gurgel de Faria que, conforme a matéria a que nos referimos acima, proferiu voto pela procedência do recurso da Fazenda Nacional.
Não é fácil apresentar crítica a uma posição do Ministro Gurgel de Faria, seja pelo respeito acadêmico que nos une, seja pela profunda admiração pessoal que tenho por ele. De toda forma, parece-me que, neste caso, a interpretação do TRF-4 não merece reparo.
Em primeiro lugar, causa-me certo espanto que a Procuradoria da Fazenda Nacional busque uma condenação de pagamento de honorários neste caso. Contudo, como tenho afirmado, o discurso público de cooperação e mudança dos paradigmas da relação entre Fazenda e contribuintes ainda se encontra descasado da realidade, sendo muito mais fácil defender cooperação em discursos do que implementá-la no mundo real. Sobre esta questão, afirmei em publicação recente que:
“[…] por mais que a busca por consenso e a proliferação de novos meios de prevenção e solução de controvérsias sejam, certamente, marcas do Direito Tributário contemporâneo, cremos que estamos mais diante de um processo em andamento do que de algo consolidado. Assim sendo, há ainda muito a se fazer para que a mentalidade de desconfiança que pautou a relação Fisco-contribuinte até aqui seja trocada pela confiança mútua.” [1]
Lei nº 13.988/2020
Voltando ao nosso tema principal, estamos cuidando, neste texto, dos efeitos da transação celebrada entre Fazenda Nacional e contribuinte, com base na Lei nº 13.988/2020. A questão central a ser respondida é: não havendo previsão explícita no acordo celebrado entre as partes sobre o tratamento a ser dispensado aos honorários advocatícios da Fazenda, estes seriam devidos em decorrência da desistência e consequente renúncia ao direito controvertido por parte do contribuinte? Cremos que a resposta a esta questão só pode ser negativa.
A análise desta matéria tem necessariamente que considerar a natureza da transação. Seja no Direito Civil, onde encontramos a origem do instituto da transação, seja no Direito Tributário, onde ela se encontra prevista no CTN desde 1966, podemos destacar como característica central de uma transação a inexistência de vencedor ou perdedor no litígio pela mesma encerrado.
De acordo com o artigo 840 do Código Civil, “é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”. Dessas poucas palavras se infere que a natureza da transação é que se trata de um mecanismo de solução de controvérsias por meio do qual as partes acordam que ambas ganham em parte e perdem em parte.
Ao examinarmos como a matéria foi disciplinada no Código Tributário Nacional vamos encontrar um espelho do Código Civil, com o artigo 171 prevendo que “a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário”.
Concessões mútuas
Nessa linha de ideias, vemos que havendo uma transação entre sujeito ativo e sujeito passivo de uma obrigação tributária, ela refletirá concessões mútuas. Portanto, é simplesmente impossível afirmar que haveria uma parte vencedora na transação. Como já destacava meu saudoso mestre, Ricardo Lobo Torres, “para que se caracterize a transação torna-se necessária a reciprocidade de concessões, com vista ao término da controvérsia. Renúncia ao litígio fiscal sem a correspectiva concessão é mera desistência, e, não, transação”. [2] (Destaque em itálico no original)
Ora, se a reciprocidade de concessões é da própria natureza da transação, a ponto de sua ausência desfigurar o instituto e transformar o ato ou negócio jurídico em outra coisa, que não uma transação, é óbvio que não seria possível apontar um vencedor em um litígio extinto por meio de uma transação.
Dessa forma, segundo vemos, é um erro considerar que em uma transação somente o contribuinte está desistindo da controvérsia e renunciando ao seu direito. A Fazenda Pública está fazendo o mesmo, desistindo e renunciando ao seu direito. Este aspecto da transação foi reconhecido pela inteligência de Bernardo Ribeiro de Moares, que destacava que, na transação “de um lado, a Fazenda Pública abre mão do seu direito de discutir a exigência fiscal; de outro lado, o contribuinte abre mão de seu direito de discutir a exigência fiscal”. [3]
O que talvez gere alguma confusão no campo da transação, especialmente no que se refere à transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, de que trata a Lei nº 13.988/2020 a partir do seu artigo 16, é que a forma de manifestação da desistência das partes é distinta.
Com efeito, diante do princípio da legalidade, esta modalidade de transação tem base na lei, sendo que, a própria publicação do edital de transação pela Procuradoria da Fazenda Nacional/Receita Federal implica na desistência de sua posição processual e na renúncia do respectivo direito pela União. Basta a adesão do sujeito passivo para que desistência e renúncia se consumem.
Assim sendo, é natural que caiba apenas ao contribuinte se manifestar no processo judicial em curso, desistindo e renunciando. A uma porque estamos tratando de ações ativas nas quais o sujeito passivo figura como parte autora; a duas porque a Fazenda Nacional já desistiu — ao menos potencialmente — quando da publicação do edital de transação.
Diante do exposto, parece-nos induvidoso que, na hipótese de uma transação, a não ser que uma das partes tenha expressamente concordado com o pagamento de custas e honorários judiciais, é impossível se cogitar de uma condenação dessa natureza, independentemente de previsão legal ou disposição no edital ou termo de transação.
Estamos diante de conclusão que é uma consequência natural e inafastável da própria natureza da transação. A não ser que se cogitasse de condenações recíprocas em honorários. Afinal, se o sujeito passivo perdeu em parte no litígio, certamente a Fazenda Nacional saiu, igualmente, parcialmente derrotada.
Consequentemente, acredito que a simples aplicação do artigo 90 do Código de Processo Civil neste caso, como se estivéssemos diante de um ato processual unilateral do sujeito passivo tributário ignora o contexto no qual se dá a desistência da ação em uma transação, desconsiderando, igualmente, que a Fazenda Nacional saiu tão derrotada do processo quanto o contribuinte.
Trata-se da aplicação de um dispositivo a partir de mera interpretação gramatical, desconsiderando-se a substância da relação jurídica subjacente e uma interpretação sistemática, teleológica e axiológica do citado dispositivo.
Note-se que não estamos nos referindo, neste texto, aos encargos legais decorrentes da inscrição do crédito tributário na Dívida Ativa da União. Estes, de regra, serão incluídos no cálculo da transação. A questão aqui é se, havendo eventual ação ativa ajuizada pelo contribuinte, que ele deva desistir, se neste caso seriam devidos (novamente) honorários à Fazenda Nacional.
Do modo como vemos, esta controvérsia só tem uma solução jurídica possível, na linha exposta acima. Contudo, o que realmente seria um sinal de esperança na reconstrução de uma relação de confiança entre a Fazenda e os contribuintes [4] era que sequer tivéssemos que aguardar um posicionamento do Poder Judiciário sobre esta matéria.
Ver a Procuradoria da Fazenda Nacional reconhecendo que, nesses casos, não há fundamento para a condenação do sujeito passivo ao pagamento de honorários permitiria acreditar que os muitos discursos que temos ouvido têm eco para além das salas de conferência e dos congressos de Direito Tributário.
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[1] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 84. Não se pode perder de vista que a cooperação, agora, é um princípio constitucional explícito, como tratamos em artigo escrito juntamente com Marco Aurélio Greco (GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Vetores do Sistema Tributário Nacional após a EC n. 132. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 56, 2024, p. 772-773).
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 20 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2018. p. 290.
[3] MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 2. p. 457-458.
[4] Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Reconstruindo a Confiança na Relação Fisco-Contribuinte. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 39, 2018, p. 487-506.
Sergio André Rocha
professor Titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj. Livre-docente em Direito Tributário pela USP. Diretor vice-presidente da ABDF. Advogado e parecerista.