Compensação de tributos após consulta e a suspensão dos efeitos da mora

Carlos Augusto Daniel Neto, Gabriel Miranda Batisti

Na coluna de hoje, trataremos de um tema timidamente explorado pela jurisprudência administrativa, mas extremamente conectado com o Zeitgeist colaborativo do ambiente tributário: a possibilidade de se utilizar de compensação (ou mesmo outros modos de extinção do crédito tributário) para quitar tributos vincendos, que deixaram de ser cobrados em razão da pendência de processo de consulta a eles referidos, sem que a eles se apliquem os efeitos da mora.

A questão já havia sido analisada no acórdão nº 1402-006.025, em 2022, mas foi recentemente enfrentada no acórdão nº 1202-001.333 [1], que concluiu que o contribuinte não teria o direito de extinguir o tributo objeto de processo de consulta por meio de compensação, sem a incidência de juros e multa de mora, importando o racional utilizado para análise do artigo 138 do CTN, a respeito da realização de denúncia espontânea com compensação dos tributos, e não pagamento (tema que já abordamos em outra coluna, Carf diverge sobre denúncia espontânea ser feita por compensação).

Antes de enfrentarmos o acórdão em questão, entretanto, é importante apresentar brevemente as regras a respeito da consulta tributária e seus efeitos jurídicos.

1) Consulta tributária e seu regime jurídico
A consulta tributária é instrumento de promoção da segurança jurídica, baseada no direito de petição e nos princípios da boa-fé e da cooperação entre o contribuinte a administração tributária, permitindo que se esclareçam dúvidas legítimas a respeito da aplicação da legislação. Parte-se de um estado de incerteza do contribuinte, quanto ao conteúdo normativo da legislação, para oportunizar à fiscalização a possibilidade de externar os sentidos que adjudica a esse texto, de modo a reduzir o horizonte de possibilidades semânticas.

O Projeto do CTN elaborado por Rubens Gomes de Sousa possuía todo um capítulo destinado a regular as consultas elaboradas sobre a interpretação da legislação tributária, em relação a uma hipótese concreta de fato de seu interesse. Entretanto, todo esse trabalho sistematizador acabou ficando de fora do texto final do CTN, com exceção do então artigo 342 do anteprojeto [2], cujo conteúdo foi incorporado ao artigo 161, § 2º do CTN, verbis:

“Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual fôr o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.

(…)

§2º. O disposto neste artigo não se aplica na pendência de consulta formulada pelo devedor dentro do prazo legal para pagamento do crédito.”

O artigo 161 está inserido na Seção II (“Pagamento”) do “Capítulo IV – Extinção do Crédito Tributário” do CTN. O seu caput trata dos efeitos da mora sob o crédito tributário não integralmente pago em seu vencimento, prescrevendo a incidência de juros e demais penalidades moratórias, sem prejuízo da aplicação de medidas de garantia. Já o parágrafo 2º, objeto de nossa análise neste artigo, afasta os efeitos do caput (decorrentes da mora), caso o contribuinte formalize consulta a respeito do crédito tributário antes do seu vencimento, e enquanto permanecer pendente de resposta por parte da fiscalização.

Spacca
A redação da norma nos parece bastante clara e pode ser facilmente interpretada mesmo a partir de uma análise gramatical.

O sujeito da oração é a locução “o disposto neste artigo” (leia-se, os efeitos da mora estabelecidos no caput), acompanhado do adjunto de negação e predicado verbal “não se aplica” (neste caso, um verbo pronominal intransitivo indireto). Até aqui não parece haver quaisquer dúvidas. O cerne da controvérsia parece residir no adjunto adverbial de condição “na pendência de consulta formulada pelo devedor dentro do prazo legal para pagamento do crédito”.

A suspensão dos efeitos da mora depende de três condições cumulativamente observadas: 1) condição material: a existência de consulta pendente de resposta; 2) condição subjetiva: que a consulta tenha sido formulada pelo devedor; e 3) condição temporal: que a consulta tenha sido apresentada dentro do prazo legal para o pagamento do crédito.

Em relação à condição subjetiva, a utilização da expressão “devedor” para remeter aos sujeitos passivos, sem distinguir entre contribuintes e responsáveis, como já é usada em outros dispositivos do Código.

Em relação à condição temporal, o “prazo legal para o pagamento do crédito” deve ser considerado o período entre a constituição do crédito tributário (por um dos meios previstos) e o seu vencimento, período dentre do qual a dívida ainda não é exigível. Por vencimento, deve-se seguir o que dispõe o art. 160 do CTN: “Quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento, o vencimento do crédito ocorre trinta dias depois da data em que se considera o sujeito passivo notificado do lançamento”.

Portanto, em síntese, o artigo 161, §2º se destina aos créditos vincendos que foram objeto de consulta, tendo como efeito legal a suspensão dos efeitos da mora. Por outro lado, a exceção do § 2º do CTN do artigo 161 não se aplica aos tributos já vencidos na data da formulação da consulta, mantendo-se os efeitos da mora.

Da simples leitura do artigo 161, § 2º do CTN, pode-se concluir que se trata de uma norma autoaplicável, que traz um comando normativo completo, dependendo apenas do seu caput (para definir exatamente o comando excepcionado). Isso não prejudica, por exemplo, que no âmbito federal, o artigo 48 do Decreto nº 70.235/72 complemente o seu conteúdo, estabelecendo a impossibilidade de abertura de procedimento fiscal contra o sujeito passivo, relativamente à matéria objeto da consulta, e que a suspensão do prazo para pagamento do tributo perdurará até o trigésimo dia posterior à ciência da solução de consulta.

Todavia, não há qualquer disposição que condicione o afastamento dos efeitos da mora à extinção do crédito tributário, após a ciência de solução de consulta desfavorável. Durante os trinta dias subsequentes à data da ciência da posição fiscal, o contribuinte não estará em mora em relação aos tributos vincendos por ela abrangidos.

2) O decidido no acórdão nº 1201-001.333
Feita uma aproximação dogmática do tema, no tópico anterior, devemos agora enfrentar o acórdão que veiculou o entendimento ora analisado.

No caso concreto, tratou-se de contribuinte que realizou consulta em 2005, e recebeu resultado desfavorável aos seus interesses, em 2008, diante do qual caracterizou-se uma inadimplência parcial de débitos de PIS/Cofins. Diante disso, o contribuinte optou por acatar o entendimento da Receita e promoveu a regularização do tributo por meio de compensação com saldo negativo do Imposto de Renda.

As DComps foram transmitidas dentro do prazo de trinta dias contados da data em que a consulente tomou ciência da solução de consulta. Nas DComps, o contribuinte não incluiu juros e multa de mora ao tributo cujo prazo de pagamento não havia vencido na data do protocolo da consulta, com base no artigo 161, §2º do CTN.

Isso não foi aceito pela Receita Federal, que entendeu que incidiriam juros e multa de mora sobre o tributo, com fundamento no artigo 14, §1º, da IN RFB nº 740/2007, deixando de homologar integralmente as compensações. Dispõe o referido dispositivo:

“Art. 14. A consulta eficaz, formulada antes do prazo legal para recolhimento de tributo, impede a aplicação de multa de mora e de juros de mora, relativamente à matéria consultada, a partir da data de sua protocolização até o trigésimo dia seguinte ao da ciência, pelo consulente, da Solução de Consulta.

§1º Quando a solução da consulta implicar pagamento, este deverá ser efetuado no prazo referido no caput.”

O contribuinte apresentou manifestação de inconformidade e, posteriormente, recurso voluntário ao Carf. Ao final, prevaleceu na esfera administrativa o entendimento segundo o qual, por força do artigo 14, § 1º da IN RFB nº 740/2007, a dispensa de juros e multa moratória estaria condicionada ao pagamento do tributo em espécie [3].

A ordem lógica da interpretação adotada pelo relator no acórdão, que adotou as razões de decidir da instância a quo, pode ser assim sumarizada:

-O artigo 14, § 1º da IN RFB 740/2007 menciona que quando a solução de consulta “implicar pagamento”, ele deverá ser realizado no prazo de 30 dias contados da ciência da decisão;

-O termo “pagamento”, deveria ser assimilado como recolhimento do tributo em moeda;

-Sem o pagamento em moeda, seria aplicável a jurisprudência do Carf e do Superior Tribunal de Justiça que não admite a compensação em denúncia espontânea;

-Logo, os tributos submetidos a compensação pelo contribuinte, após a compensação, deveriam ser acrescidos de juros e multa de mora.

O relator cita diversos precedentes do STJ e do Carf no sentido de que, para fins de aplicação do artigo 138 do CTN, seria exigido o “pagamento integral”, não se aplicando os seus efeitos no caso da compensação.

3) Análise crítica do acórdão
O entendimento acima, com a devida vênia, nos parece confundir questões absolutamente diferentes.

Em primeiro lugar, o artigo 14 da IN RFB nº 740/2007 deveria ser analisado à luz da moldura estabelecida no artigo 161, § 2º do CTN, que não traz qualquer condicionante adicional – em relação à forma de extinção do crédito – para que se opere a suspensão dos efeitos da mora.

O “prazo legal para pagamento” é referido no artigo 161, §2º, não para exigir o “pagamento” integral após a ciência da consulta, mas para estabelecer a “condição temporal” da exceção, i.e., o momento em que a consulta deverá ser formulada para operar seus efeitos. Não há nada em sua redação, ou mesmo no Decreto nº 70.235/72, que condicione o suspensão dos efeitos da mora ao pagamento em moeda do crédito vincendo, caso a solução de consulta lhe seja desfavorável.

Ora, se para que se apliquem os efeitos do artigo 161, §2º na formulação da consulta, deve ser vincendo o crédito, e que após a consulta o seu vencimento é suspenso até o trigésimo dia posterior à ciência da decisão, não há que se falar em mora do contribuinte nesse período, independentemente do método de extinção utilizado para a quitação dentro desse prazo.

A confusão parece residir no embaralhamento do “prazo legal de pagamento do crédito” como condição temporal de formulação da consulta, para suspensão dos efeitos da mora, no artigo 161, §2º, com o “pagamento do tributo devido”, condição material dos efeitos do artigo 138, ambos do CTN.

Ao tratar do artigo 138 do CTN, o Carf e o STJ têm interpretado que ao se referir ao “pagamento do tributo”, como condição dos efeitos da denúncia espontânea sobre um crédito já vencido, ele está se referindo à espécie de modalidade de extinção. Entretanto, no artigo 161, §2º, a expressão “prazo legal de pagamento” se refere ao artigo 160, que trata da fixação do “tempo do pagamento”. Nesse ponto, como já esclarecido a expressão se refere ao período entre a constituição do crédito e o seu vencimento, independentemente da forma que opte o contribuinte por extingui-lo.

Caso contrário, ter-se-ia que acatar a esdrúxula possibilidade de o contribuinte compensar crédito vincendo e ainda assim ser chamado ao arcar com juros e multa, por não ter realizado o “pagamento em dinheiro”. O equívoco desse paralelismo entre a discussão do artigo 138 com a interpretação do artigo 161, §2º fica evidente.

Ultrapassando esse ponto, poder-se-ia argumentar que a despeito de o artigo 161, §2º do CTN não exigir o “pagamento”, essa exigência seria decorrência autônoma do artigo 14, §1º da IN RFB nº 740/2007.

Nessa hipótese, estar-se-ia diante de uma ilegalidade flagrante, visto que caberia à IN apenas esclarecer e interpretar a legislação, não criando restrições ou condições que o legislador não fez, e sem respaldo do texto legal, sob pena de invadir seara dispensada ao legislador complementar, exclusivamente. Ademais, deve-se ressaltar que o Carf não é vinculado de qualquer forma por instruções normativas, cabendo-lhe, nessas oportunidades de flagrante inconsistência entre a Lei e a IN, pronunciar a ilegalidade desta, em favor da rigorosa observância daquela.

Por fim, no sentido da respeitosa crítica, por nós esgrimada acima, podemos mencionar o acórdão nº 1402-006.025 [4], assim ementado:

“CONSULTA. EXTINÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. APÓS A CIÊNCIA DA RESPOSTA. MULTA DE MORA. INAPLICABILIDADE.

A extinção do crédito tributário, mesmo não sendo por meio de pagamento, dentro do prazo de trinta dias após a ciência da resposta da consulta não faz incidir multa de mora.”

O acórdão em questão pontua, com precisão, a inexistência de qualquer restrição à utilização de outros meios para quitação do tributo após a ciência da consulta, sem a perda da suspensão dos efeitos da mora – fazendo coro ao apontado anteriormente.

Conclusão
Os efeitos da consulta tributária são um tema que ainda carece de maior produção acadêmica e jurisprudencial. Entretanto, o seu potencial de promoção da segurança jurídica e cooperação não pode ser prejudicado por interpretações que criem restrições além do estabelecido pelo legislador.

Uma interconexão e diálogo entre os diversos temas e problemáticas do contencioso tributário é necessário e alvissareiro, mas é preciso, antes de tudo, verificar se essas questões efetivamente conversam entre si, sob pena de se chegar a conclusões contrárias ao próprio texto legal, ou que conduzam a resultados absurdos.

É importante, dessa forma, que os tribunais analisem essa questão com o rigor técnico, pois, em última instância, a retomada dos efeitos da mora na compensação após a consulta, além de contrariar o CTN, pode desencorajar a utilização desse relevante mecanismo.

[1] Processo nº 12448.929263/2011-93, relator Fellipe Honório Rodrigues da Costa.

[2] Art. 342. Nenhum procedimento fiscal poderá ser promovido, em relação à espécie consultada, contra o consulente que agir em estrita conformidade com a solução dada a consulta por êle formulada, ou cuja consulta não seja solucionada, homologada ou reformada nos prazos previstos no art. 341.

Parágrafo único. O tributo considerado devido pelo despacho da autoridade superior, referido no art. 341, será cobrado sem juros de mora e sem imposição de qualquer penalidade, ressalvado o disposto no art. 343.

[3] CONSULTA. ART. 14, § 1º, DA INRFB 740/2007. COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA. INAPLICABILIDADE. RECURSO VOLUNTÁRIO IMPROVIDO.

Nos termos do atual entendimento do Carf e do e. STJ, a compensação tributária e o pagamento não são equivalentes, de modo que os efeitos decorrentes de cada instituto são diversos. Por essa razão, somente há impedimento para a aplicação de juros de mora e multa de mora nos casos em que houver pagamento do tributo até o 30º dia após a intimação da Solução de Consulta. Tal benefício é inaplicável, portanto, aos casos em que o contribuinte realizou a compensação tributária, ainda que até o 30º após a intimação da Solução de Consulta. Recurso Voluntário improvido.

[4] Processo nº 10880.952545/2012-31, julgado em 8.12.2021.

Carlos Augusto Daniel Neto, Gabriel Miranda Batisti

Carlos Augusto Daniel Neto
é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em direito tributário pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em direito tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

Gabriel Miranda Batisti
é mestre em Direito Tributário Internacional (LL.M) pela Universidade da Flórida (EUA), especialista em Direito Tributário pela FGV-SP, advogado, sócio do escritório Freitas & Vieira Advogados.

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