Como o novo IVA dual brasileiro deverá incidir nas importações indiretas?
Carlos Eduardo Navarro, Fernando Pieri
Como é cediço, a reforma tributária do consumo foi aprovada no final do ano passado pelo Congresso, resultando na promulgação da Emenda Constitucional (EC) no 132. [1] Em apertadíssima síntese, a EC prevê a substituição de ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI por uma IVA [2] dual, de competência de União (Contribuição sobre Bens e Serviços — CBS) e estados e municípios (Imposto sobre Bens e Serviços — IBS).
Embora a Constituição esteja repleta de dispositivos sobre os novos tributos, não há um desenho claro acerca de sua materialidade [3], tanto nas operações internas, quanto nas importações – e, portanto, muito menos nas importações indiretas [4].
Desse modo, é de se esperar que a lei complementar [5] que instituirá a CBS e o IBS — cujo texto está atualmente em discussão pelos Grupos de Trabalho instituídos pelo Governo Federal [6] — delibere sobre a incidência desses tributos.
Antes, porém, de abordar as alternativas que o legislador complementar possui, vale apresentar uma breve descrição das modalidades de importações indiretas, assim como das incidências dos tributos nessas operações.
Das formas de importar
Um primeiro ponto fundamental para que se entenda o conceito de importação é a sua não vinculação a um negócio jurídico específico. Importar nada mais é do que uma ação humana tendente a trazer um bem para dentro de determinado território, independentemente do negócio jurídico realizado previamente à importação.
Assim, a importação pressupõe a realização de um negócio jurídico, mas com ele não se confunde. O importador brasileiro pode ser o comprador do bem (ou seja, ter celebrado um contrato de compra e venda com o exportador), o locatário (se o tiver alugado), o donatário (se o recebeu em doação), etc.
Feita essa distinção entre o ato jurídico de importar e o negócio jurídico subjacente (adquirir, locar, etc.), temos que uma pessoa, física ou jurídica, interessada em ter um bem no território nacional pode: (a) realizar tanto a importação, quanto o negócio jurídico, (b) terceirizar a importação mas manter consigo o negócio jurídico, ou (c) terceirizar tanto a importação, quanto o negócio jurídico.
Na primeira hipótese, estar-se-á diante de uma importação direta, enquanto as demais representam, respectivamente, uma importação por conta e ordem e uma importação por encomenda.
Spacca
Dito em outras palavras, será direta a importação quando uma pessoa (física ou jurídica) brasileira, ao mesmo tempo, realiza a importação e o negócio jurídico. Ou seja, estamos diante de um importador-comprador, importador-locatário, importador-arrendatário, etc.
Já a importação indireta nada mais é do que a terceirização do ato jurídico de importar. Assim, aquele que tem interesse de que um bem corpóreo ingresse no território aduaneiro pode realizar a importação diretamente, ou pode contratar um terceiro para que realize a ação humana de trazer o bem ao país (i.e., realize a importação).
Atualmente existem duas modalidades de importação indireta expressamente previstas na legislação aduaneira. Na primeira delas, conhecida por importação por conta e ordem (de terceiros), o interessado no ingresso do bem no território aduaneiro contrata uma pessoa jurídica importadora para que essa realize a importação por sua conta e ordem.
Dessa forma, apenas a importação é terceirizada, permanecendo o negócio jurídico (nesse caso, necessariamente uma compra e venda) sendo realizado por aquele quem contratou o terceiro importador (chamado pela legislação de “real adquirente”).
Na segunda, chamada de importação por encomenda, o terceiro contratado não apenas realiza a importação, como também o negócio jurídico subjacente (também necessariamente uma compra e venda), de modo que aquele que lhe contratou (denominado “encomendante”) acaba adquirindo, no Brasil, a mercadoria de procedência estrangeira de pessoa jurídica importadora.
Dito isso, passamos ao exame das incidências tributárias nas importações indiretas.
Das incidências de II, IPI, PIS, Cofins e ICMS
Como dito acima, nas modalidades de importação indireta há a contratação de um terceiro (normalmente, empresas conhecidas como “trading companies”) para realizar (a) a importação apenas, no caso da conta e ordem, ou (b) a importação e o negócio jurídico de aquisição internacional de bem, no caso da encomenda.
Nesse sentido, a empresa contratada é quem figura na qualidade de importadora perante a RFB. Por essa razão, será ela a contribuinte do Imposto de Importação [7], IPI-importação [8] e PIS/Cofins-importação [9].
Já em relação ao ICMS, ficou definido pelo Tema 520 de repercussão geral, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que o contribuinte será (a) o real adquirente, nos casos de importação por conta e ordem, e (b) o importador, quando se tratar de importação por encomenda [10].
Já na etapa seguinte, que envolve a entrega da mercadoria ao contratante, por parte da trading company, os tributos atuais incidem da seguinte maneira:
Importação por conta e ordem: recolhimento de IPI sobre o valor do bem e PIS/Cofins apenas sobre a receita de serviço do importador [11]. Não há incidência de ICMS e PIS/Cofins sobre o valor do bem. Como o importador acumularia muito crédito de PIS/Cofins, a legislação estabelece que o montante pago na importação deve ser creditado diretamente pelo real adquirente; e
Importação por encomenda: recolhimento de IPI, ICMS e PIS/Cofins com base no valor do bem revendido ao encomendante predeterminado.
Como se vê, os atuais tributos sobre o consumo se comportam de maneira diversa a depender do tipo de importação e, mesmo em uma modalidade, podem incidir de modo diverso. E tais especificidades precisam ser pensadas na escolha do melhor modelo para a CBS e o IBS.
Das propostas para o IVA dual
Caso os atuais tributos sobre o consumo incidissem da mesma forma nas operações indiretas, seria natural que este fosse o ponto de partida para a definição dos novos tributos. Contudo, como hoje não há uniformidade (e, considerando que essa uniformidade deverá existir nos novos, como dito anteriormente), entendemos que há dois pontos de partida para a futura lei complementar: o Projeto de Lei no 3887/2020 e a minuta de lei complementar do IBS [12], elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) [13].
Começando pelo trabalhado elaborado pelo CCiF sobre o IBS, destacam-se os seguintes trechos:
“1.2.11. Outro critério relevante para o fato gerador é a onerosidade, conceito presente em vários artigos do Código Civil. Será tributado pelo IBS todo o negócio jurídico em que haja uma contraprestação, seja ou não em dinheiro, aos bens e serviços que são objetos do negócio jurídico. Esta onerosidade não necessariamente implica que a contraprestação deva ser em dinheiro, mas também abrange qualquer bem ou serviço que possa ser convertido em pecúnia (como no caso de troca ou permuta).
1.2.12. O fato gerador igualmente deve ser realizado no desenvolvimento de atividade econômica, que deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo não só as atividades empresárias, conforme o art. 966 do CC, mas igualmente toda exploração de atividades econômicas realizadas de maneira habitual e regular (por exemplo, atividades exercidas por pessoas físicas e profissionais liberais).
1.2.13. O fato gerador deve abranger as importações, tendo em vista que o IBS é imposto que deve ser cobrado no destino. Neste caso, a importação não exige o critério de ocorrer no desenvolvimento de atividade econômica e será tributada sempre que se realizar a entrada de bens ou serviços de procedência estrangeira no território nacional.” (sem destaques no original)
A proposta do CCiF, portanto, desassocia as materialidades do IBS em operações internas e importações. Enquanto nas operações domésticas há a necessidade de um negócio jurídico oneroso, nas importações, o fato gerador ocorrerá pela simples entrada do bem no território nacional. A esse respeito, confira-se o artigo 1º da referida minuta de lei complementar:
“Art. 1º O fato gerador é a realização de negócio jurídico, oneroso, no desenvolvimento de atividade econômica, ou a importação, que tenha por objeto bem material ou imaterial, compreendidos os direitos, ou serviço, incluindo, mas não se limitando a:
I – alienação;
II – troca ou permuta;
III – locação;
IV – cessão, disponibilização, licenciamento;
V – arrendamento mercantil; e
VI – prestação de serviço.” (sem destaques no original)
Tal proposta é muito preocupante, devendo ser rechaçada. Primeiro porque há patente risco de ofensa à cláusula do tratamento nacional [14], especialmente nas importações sem cobertura cambial [15].
Segundo porque os Estados [16] tentaram adotar essa mesma linha de raciocínio para o ICMS e foram impedidos pelo STF, que decidiu que o imposto estadual não pode tributar operações de circulação diversas na importação e na saída doméstica [17]. É indispensável a transferência de titularidade para incidir o ICMS, mesmo na operação que se inicia no exterior.
A despeito do risco apontado, caso a ideia do CCiF venha a prevalecer, quer nos parecer que o importador seria o contribuinte do IBS, independentemente se importação direta, por conta e ordem ou encomenda.
No caso de importações por conta e ordem de terceiros, como a base de cálculo do IBS-importação será o valor aduaneiro [18], é de se supor que as trading companies experimentarão enorme acúmulo de créditos, já que os negócios jurídicos por elas praticados (prestação de serviços) representarão uma pequena fração do valor das mercadorias importadas. Neste caso, imagina-se que a aposta do CCiF fique por conta da rápida devolução dos créditos acumulados no novo regime [19].
Em relação à CBS, vale transcrever o disposto no Projeto de Lei no 3887/2020:
“Art. 61. A CBS incide sobre a importação de bens e de serviços do exterior.
(…)
Art. 64. São contribuintes da CBS incidente sobre a importação de bens:
I – o importador, assim considerada a pessoa natural ou jurídica que promova a entrada de bens estrangeiros no território nacional;
(…)
Art. 65. São responsáveis solidários pelo recolhimento da CBS incidente sobre a importação de bens, inclusive dos acréscimos e das penalidades cabíveis:
I – o adquirente de bem de procedência estrangeira, na hipótese de importação realizada por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora;
II – o encomendante predeterminado que adquire bem de procedência estrangeira de pessoa jurídica importadora;
(…)
Art. 67. A base de cálculo da CBS incidente sobre a importação de bens é o valor aduaneiro.
(…)
Art. 82. A pessoa jurídica sujeita à CBS incidente na forma do Capítulo II poderá apropriar crédito correspondente ao valor da CBS efetivamente recolhido na importação de bens ou serviços.”
Como se vê, mais uma vez, a ideia foi eleger o importador como contribuinte, inclusive nas operações indiretas. Com isso, caso prevaleça tal racional, o importador por conta e ordem recolherá a CBS sobre o valor aduaneiro do bem, apropriará créditos e, por ocasião da entrega da mercadoria ao adquirente, não terá débitos suficientes da contribuição, experimentando acúmulo de créditos, nos mesmos termos da proposta do CCiF.
Conclusões
Caso venha a prevalecer, para as importações indiretas, o modelo proposto pelo CCiF e pelo Poder Executivo antes da aprovação da Emenda Constitucional no. 132, temos que:
as trading companies serão contribuintes do IBS e da CBS por ocasião das importações, tanto no caso de operações por conta e ordem, quanto por encomenda;
tanto reais adquirentes, quanto encomendantes, serão responsáveis tributários em relação ao IVA dual;
nas importações, as bases de cálculo da CBS e do IBS serão o valor aduaneiro;
as pessoas jurídicas importadoras tomarão créditos em relação aos tributos pagos por ocasião das importações;
no caso de importações por encomenda, a revenda a encomendante predeterminado será considerado fato gerador da CBS e do IBS, de modo que a chance de acúmulo de créditos é pequena; e
no caso de importações por conta e ordem, como o negócio jurídico praticado pela importadora é uma prestação de serviços desvinculada do valor do bem, há enorme potencial para acúmulo de créditos.
Tal solução não nos parece adequada, especialmente porque não há clareza quanto à facilidade e rapidez na devolução dos créditos. A nosso ver, melhor seria adotar ou o atual modelo do PIS/Cofins, em que o crédito do tributo pago por ocasião do desembaraço aduaneiro é aproveitado pelo real adquirente, ou o modelo do ICMS, em que o real adquirente é o contribuinte do imposto e não o importador.
Dentre essas duas alternativas, a que decorre da decisão adotada pelo STF no Tema 520, para o ICMS, parece-nos ser a melhor, pois unifica as materialidades da CBS e do IBS entre operações internas e importações, evitando um contencioso, desde já, para os novos tributos.
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[1] A Reforma Tributária e os tributos sobre o comércio exterior tem sido objeto de artigos publicados nessa coluna por Liziane Meira, Fernanda Kotzias e, após a EC 132/23, em coautoria, por Fernando Pieri e Daniela Lacerda, esse publicado em 16/01/24, disponível em: link
[2] Imposto sobre valor adicionado.
[3] Usa-se o termo materialidade no singular para os dois tributos em atenção ao disposto no artigo 149-B, I, da Constituição da República.
[4] Nos termos da Instrução Normativa no 1861/2018, da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
[5] Espera-se que seja uma única lei, embora haja a possibilidade de uma lei para cada tributo.
[6] Provavelmente isto está a cargo do GT1.
[7] Artigo 31, I, do Decreto-lei no 37/1966.
[8] Artigo 24, I, do Regulamento do IPI – RIPI.
[9] Artigo 5º, I, da Lei no10.865/2004.
[10] Isso porque a materialidade do imposto não é a importação, mas a realização de operação de circulação (jurídica) de bem.
[11] Além do ISS, a depender do Município.
[12] Disponível em https://ccif.com.br/wp-content/uploads/2020/09/CCiF_NT_LC-IBS.pdf
[13] Como o projeto que resultou na EC 132 foi forjado pelo CCiF, parece adequado considerar também os estudos do think tank para a legislação complementar.
[14] Prevista no GATT/OMC, vedando um tratamento mais benéfico ao produto nacional, em relação ao mesmo produto quando importado.
[15] Além de dúvidas sobre a base de cálculo, pois, em um contrato de aluguel internacional, por exemplo, o IBS deverá ser recolhido sobre o valor aduaneiro do bem alugado ou sobre o valor das parcelas pagas a título de aluguel? Ou sobre ambos?
[16] Apoiados na literalidade da Lei Complementar no 87, inclusive.
[17] Chamado “Caso TAM”, RE 540.829. Disponível em : https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7261072, acesso em 10/03/24.
[18] A esse respeito, há uma falha na proposta de redação ao artigo 16, que não menciona expressamente o valor aduaneiro, tal como ocorre no item 9.2.3.
[19] Cujo prazo será definido em lei complementar, de acordo com o disposto no artigo 156-A, § 5º, III, da Constituição da República.
Carlos Eduardo Navarro, Fernando Pieri
Fernando Pieri
é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.
Carlos Eduardo Navarro
é mestre em Direito pela FGV Direito SP, professor do FGVlaw e IBDT, coordenador e pesquisador do NEF/FGV e advogado.