Comércio eletrônico e o Protocolo ICMS nº 21/2011

Roberto Goldstajn

I – Introdução

A discussão em torno da tributação no comércio eletrônico ganhou novos contornos no âmbito do CONFAZ com a celebração do Protocolo ICMS nº 21/11 transcrito a seguir:

"Cláusula primeira: Acordam as unidades federadas signatárias deste protocolo a exigir, nos termos nele previstos, a favor da unidade federada de destino da mercadoria ou bem, a parcela do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS – devida na operação interestadual em que o consumidor final adquire mercadoria ou bem de forma não presencial por meio de internet, telemarketing ou showroom.

Parágrafo único. A exigência do imposto pela unidade federada destinatária da mercadoria ou bem, aplica-se, inclusive, nas operações procedentes de unidades da Federação não signatárias deste protocolo.

Cláusula segunda: Nas operações interestaduais entre as unidades federadas signatárias deste protocolo o estabelecimento remetente, na condição de substituto tributário, será responsável pela retenção e recolhimento do ICMS, em favor da unidade federada de destino, relativo à parcela de que trata a cláusula primeira.

Cláusula terceira: A parcela do imposto devido à unidade federada destinatária será obtida pela aplicação da sua alíquota interna, sobre o valor da respectiva operação, deduzindo-se o valor equivalente aos seguintes percentuais aplicados sobre a base de cálculo utilizada para cobrança do imposto devido na origem:

I – 7% (sete por cento) para as mercadorias ou bens oriundos das Regiões Sul e Sudeste, exceto do Estado do Espírito Santo;

II – 12% (doze por cento) para as mercadorias ou bens procedentes das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e do Estado do Espírito Santo.

Parágrafo único. O ICMS devido à unidade federada de origem da mercadoria ou bem, relativo à obrigação própria do remetente, é calculado com a utilização da alíquota interestadual.

Cláusula quarta: A parcela do imposto a que se refere a cláusula primeira deverá ser recolhida pelo estabelecimento remetente antes da saída da mercadoria ou bem, por meio de Documento de Arrecadação Estadual (DAE) ou Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais (GNRE), exceto quando o remetente se credencie na unidade federada de destino, hipótese em que o recolhimento será feito até o dia nove do mês subseqüente à ocorrência do fato gerador.

Parágrafo único. Será exigível, a partir do momento do ingresso da mercadoria ou bem no território da unidade federada do destino e na forma da legislação de cada unidade federada, o pagamento do imposto relativo à parcela a que se refere a cláusula primeira, na hipótese da mercadoria ou bem estar desacompanhado do documento correspondente ao recolhimento do ICMS, na operação procedente de unidade federada:

I – não signatária deste protocolo;

II – signatária deste protocolo realizada por estabelecimento remetente não credenciado na unidade federada de destino.

Cláusula quinta: O disposto neste Protocolo não se aplica às operações de que trata o Convênio ICMS 51/00, de 15 de dezembro de 2000.

Cláusula sexta: Fica facultada à unidade federada signatária estabelecer, em sua respectiva legislação, prazos diferenciados para o início de aplicabilidade deste protocolo, relativamente ao tipo de destinatário: pessoa física, pessoa jurídica e órgãos da Administração Pública Direta e Indireta, inclusive suas autarquias e fundações.

Cláusula sétima: Este protocolo entra em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, produzindo efeitos a partir do 1º dia do mês subsequente ao da publicação."

Referido protocolo disciplinou a cobrança de ICMS nas operações interestaduais destinadas ao consumidor final relativas a aquisições de mercadoria via comércio eletrônico por parte do Estado destinatário como forma de reduzir perdas de arrecadação oriundas desse tipo de transação comercial.

Tais perdas de receitas advêm da aquisição de bens de empresas não estabelecidas fisicamente no Estado destinatário pelo consumidor final, o que inviabiliza a cobrança de ICMS em operações dessa natureza como se verá mais adiante.

Destaca-se, por oportuno, que as principais empresas de comércio eletrônico estão estabelecidas nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, os quais não aderiram aos termos desse protocolo como forma de salvaguardar suas receitas.

Diante dessa situação, a proposta do presente artigo é discorrer, em poucas palavras, sobre o ambiente tributário do comércio eletrônico no que diz respeito ao ICMS sob a óptica constitucional.

II – Autonomia dos Estados e do Distrito Federal

Os artigos 1º c/c 18, da Constituição Federal, estabelecem as autonomias dos Entes Políticos, daí decorrendo a possibilidade de cada um formular sua própria política fiscal sem interferir na de outro sob pena de invadir sua competência.

Dito argumento está em consonância com o entendimento sufragado pelo Ministro Sepúlveda Pertence transcrito a seguir:

"2. As normas constitucionais, que impõem disciplina nacional ao ICMS, são preceitos contra os quais não se pode opor a autonomia do Estado, na medida em que são explícitas limitações." (ADI 2.377-MC; Relator Ministro Sepúlveda Pertence; DJU 27/11/03)

Nessa seara, vale a pena transcrever os ensinamentos do Ilustre Jurista José Afonso da Silva:

"A Constituição de 1988 modifica profundamente a posição do Município na Federação, porque os considera componentes da estrutura federativa. Realmente, assim o diz em dois momentos. No art. 1º declara que a República Federativa do Brasil é formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios, e do Distrito Federal. No art. 18 estatui que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Acolhe-se assim a reivindicação de municipalistas clássicos, como Hely Lopes Meirelles e Lordelo de Melo, que pleitearam com insistência e veemência a inclusão dos Municípios no conceito de nossa Federação. Esses autores, aliás, já sustentavam que o Município é peça essencial da nossa Federação, desde a Constituição de 1946 que o erigiu em entidade estatal de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo.

Nos termos, pois, da Constituição, o Município brasileiro é entidade estatal integrante da Federação, como entidade político-administrativa, dotada de autonomia política, administrativa e financeira. Essa é uma peculiaridade do Município brasileiro. A inclusão do Município na estrutura da Federação teria que vir acompanhada de conseqüências, tais como o reconhecimento constitucional de sua capacidade de auto-organização mediante cartas próprias e a ampliação de sua competência, com a liberação de controles que o sistema até agora vigente lhes impunha, especialmente por via de leis orgânicas estabelecidas pelos Estados.

A característica básica de qualquer Federação está em que o poder governamental se distribui por unidades regionais. Na maioria delas, essa distribuição é dual, formando-se duas órbitas de governo: a central e as regionais (União e Estados federados) sobre o mesmo território e o mesmo povo. Mas, no Brasil, o sistema constitucional eleva os Municípios à categoria de entidades autônomas, isto é, entidades dotadas de organização e governo próprios e competências exclusivas.

Com isso, a Federação brasileira adquire peculiaridade, configurando-se, nela, realmente três esferas governamentais: a da União (governo federal), a dos Estados Federados (governos estaduais) e a dos Municípios (governos municipais), além do Distrito Federal, a que a Constituição agora conferiu autonomia. E os Municípios transformaram-se mesmo em unidades federadas? A Constituição não o diz. Ao contrário, existem onze ocorrências das expressões unidade federada e unidade da Federação (no singular ou no plural) referindo-se apenas aos Estados e Distrito Federal, nunca envolvendo os Municípios."

(in Curso de Direito Constitucional Positivo, 22ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, pp. 618 e 619)

Com isso, resta claro que o texto da Carta Magna assegurou a cada Ente Político o direito de formular sua própria política pública, desde que observadas as regras constitucionais.

IV – Arquétipo constitucional do ICMS

A Constituição Federal de 1988 outorgou competência aos Estados e ao Distrito Federal para instituírem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – ICMS, consoante previsto no artigo 155 da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe:

"Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(…)

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

§ 2º – O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

(…)

VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:

a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;

b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;

VIII – na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;

(…)."

Com isso, o ICMS devido na operação de saída da operação circulatória (output) são abatidos os créditos existentes nas várias operações anteriores de aquisição de bens e/ou mercadorias (inputs), em respeito ao citado preceito constitucional.

Em outras palavras, o princípio da não cumulatividade do ICMS é exercido pela apropriação do imposto devido nas operações anteriores, através de créditos, que são abatidos do imposto devido na saída das mercadorias ou da prestação do serviço.

Vale dizer, o princípio da não cumulatividade do ICMS pressupõe a incidência do tributo sobre o valor agregado em cada operação, o que é feito mediante sistema de créditos sobre entradas e débitos sobre as saídas.

Caso contrário, os contribuintes do ICMS suportarão todo o encargo financeiro decorrente das operações em que incida o referido tributo, contrariando, assim, o princípio constitucional que veda a tributação "em cascata".

Desta forma, o princípio da não cumulatividade assegura aos contribuintes de ICMS o direito de procederem ao lançamento, em sua escrita fiscal, dos créditos decorrentes da aquisição de mercadorias e/ou prestação de serviços, atendendo ao desejo do legislador constituinte de incentivar a produção nacional.

E no caso das operações interestaduais, a Constituição Federal é expressa com relação à disciplina da cobrança e do creditamento de ICMS em transações realizadas com contribuintes e não contribuintes, tal como aduz o ilustre jurista Roque Antônio Carraza, in verbis:

"Ademais, quando as operações destinarem a mercadoria a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á obrigatoriamente a alíquota interestadual quando o destinatário for contribuinte do imposto (isto é, quando também ele praticar operações mercantis), e a alíquota interna quando não for (isto é, quando for um mero particular, que não pratica operações mercantis). Na primeira hipótese (quando o destinatário foi contribuinte do ICMS), o Estado da localização do destinatário (ou o Distrito Federal, no caso do destinatário lá estar localizado) é que tem jus à diferença entre a alíquota interna e a interestadual, se, obviamente, forem diversas"

Logo, o Protocolo ICMS nº 21/11 deve ser tido como inconstitucional.

Nem que se alegue a autonomia dos Estados e do Distrito Federal para formular suas próprias políticas fiscais com o fito de reparar injustiças e incrementar suas receitas justifique tal conduta.

A propósito, o Ministro do Egrégio Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa assim pronunciou sobre esse tema por ocasião da análise do pedido de concessão da liminar na Ação de Direta Inconstitucionalidade nº 4.565:

"(…)

O Estado do Piauí narra que a maioria dos centros de produção e de distribuição de produtos industrializados está localizada nas Regiões Sul e Sudeste de nosso país. Trata-se de Estados muito industrializados e que concentram boa parte da riqueza financeira nacional. Em posição oposta, os Estados localizados nas demais regiões aglutinam proporcionalmente mais consumidores do que agentes agregadores industriais ou comerciais de riqueza. Por considerar injusta a exclusão dos Estados consumidores da partilha da competência para arrecadar o ICMS, em benefício escancarado de Estados mais bem posicionados na escala de desenvolvimento econômico e social, o Estado requerido entendeu por bem ajustar a discrepância com a adoção desta nova modalidade de tributação.

O vício econômico apontado pelo Estado requerido decorre da adoção do critério de origem para demarcar o aspecto ativo da competência tributária, considerados os tributos multifásicos que gravam a produção, o consumo ou as vendas. Contudo, o problema apontado não é exclusividade local.

(…)"

Nosso constituinte originário optou por um modelo híbrido de partilha da competência. Nos termos dos arts. 155, VII da Constituição, o Estado de origem da mercadoria foi adotado como critério padrão, com as seguintes especificações:

a) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a consumidor final contribuinte do imposto: o Estado de origem aplica a alíquota interestadual, e o Estado de destino aplica a diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual. Há, portanto, tributação concomitante, ou "partilha simultânea do tributo". Quer dizer, ambos os Estados cobram o tributo, nas proporções já indicadas;

b) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a consumidor final não contribuinte: apenas o Estado de origem cobra o tributo, com a aplicação da alíquota interna;

c) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a quem não é consumidor final: apenas o Estado de origem cobra o tributo, com a aplicação da alíquota interestadual;

d) Se a operação envolver combustíveis e lubrificantes, há inversão: a competência para cobrança é do Estado de destino da mercadoria, e não do Estado de origem.

Adequada ou inadequada em termos econômicos e sociais, a opção política feita pelo constituinte originário é precisa e nítida: nas operações interestaduais aplica-se a regra de tributação exclusiva pelo Estado de destino se a mercadoria for combustível ou lubrificante.

Nos demais casos, prevalece o critério de origem, mitigado na hipótese de operação realizada com consumidor final que também seja contribuinte do tributo.

Os argumentos do Estado requerido tangentes à disparidade abissal entre as diversas regiões de nosso país de proporções continentais são relevantes, mas a alteração pretendida depende de verdadeira reforma tributária que não pode ser realizada individualmente por cada ente político da Federação, com posterior chancela de validade pelo Judiciário.

De modo semelhante, as ficções concatenadas pelo Estado do Piauí para forçar a aplicação da regra matriz relativa à operação interna são incompatíveis com os arts. 1º, caput, 2º e 155, VII da Constituição. A facilidade de comunicação criada pela internet evidentemente é incapaz de deslocar fisicamente estabelecimentos comerciais ou industriais à porta dos consumidores, assim como as antigas vendas por correio a partir de catálogos postados ou vendidos em bancas de jornal também não criavam um entreposto comercial no território de cada Estado ou Município consumidor.

Ademais, a harmonia que deve reger as relações entre os Entes Federados depende da estrita observância dos devidos processos legal e político. "Inconstitucionalidades não se compensam", conforme lição do eminente Ministro Sepúlveda Pertence. Um Ente Federado não pode pretender resolver unilateralmente o problema federativo, sob pena de alienar todos os cidadãos, tanto aqueles residentes em seu território como aqueles residentes no resto do País.

Em razão última, a colocação de barreiras fiscais ao tráfego de pessoas e de bens fomenta o sentimento de alienação e insularidade, além de desacreditar a eficácia dos instrumentos legais e políticos postos à disposição para resolver estes conflitos.

Evidente que apesar da nova dinâmica dos negócios via comércio eletrônico afetar consideravelmente o caixa de boa parte dos Estados e do Distrito Federal, o texto da Carta Magna deve ser respeitado mesmo que prejudique o desenvolvimento regional em respeito ao princípio da solidariedade defendido pelo Ilustre Jurista Luis Roberto Barroso, cujo parecer foi mencionado no voto do Exmo Sr. Dr. Ministro Gilmar Mendes por ocasião do julgamento da Ação de Direta Inconstitucionalidade nº 3.128-7:

"Uma das principais características do direito constitucional contemporâneo é a ascensão normativa dos princípios, tanto como fundamento direto de direitos, como vetor de interpretação das regras do sistema. Dentre os princípios que vêm merecendo distinção na quadra mais recente está o princípio da solidariedade, cuja matriz constitucional se encontra no art. 3º, I. O termo já não está mais associado apenas ao direito civil obrigacional (pelo qual alguém tem direito ou obrigação à integralidade do crédito ou da dívida), mas também, e principalmente, à ideia de justiça distributiva. Traduz-se na divisão de ônus e bônus na busca de dignidade para todos. A solidariedade ultrapassa a dimensão puramente ética da fraternidade, para tornar-se uma norma jurídica: o dever de ajudar o próximo."

V – Conclusão

Diante das considerações tecidas nesse texto, a "Guerra Fiscal" travada entre as Unidades Federadas do Brasil, com eventual busca de renda, criando hipóteses de incidência fiscal como a aqui discutida, somente será solucionada após profundas reformas constitucionais.

Roberto Goldstajn

Graduado pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), especialista em Direito Tributário pela COGEAE da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e atual Coordenador da Comissão de Tributos do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças de São Paulo (IBEF/SP).

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