Carf e a tributação da avaliação a valor justo pelo IRPJ e a CSLL

Por Eduardo Souto, Thais Rigotti

13/10/2025 12:00 am

Recentemente, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) se manifestou em dois julgamentos sobre a inclusão dos ajustes a valor justo de ativos na base de cálculo do IRPJ e da CSLL. A avaliação a valor justo (AVJ) consiste em instrumento de mensuração contábil de patrimônio e advém dos padrões uniformizados internacionalmente, por meio do International Financial Reporting Standards (IFRS), introduzidos no Brasil mediante a Lei Federal nº 11.638/2007.

André Corrêa/Agência Senado
A adoção dessas práticas pelo Brasil aproximou a dinâmica das empresas brasileiras da realidade do mercado exterior, por conta da adoção da mesma linguagem contábil, facilitando a avaliação de companhias brasileiras por parceiros e interessados estrangeiros.

Esse padrão privilegia a essência econômica da empresa avaliada, informando seus ativos no seu valor real e atualizado, para fins de mensuração adequada do patrimônio.

Do ponto de vista contábil, não há um rol taxativo de ativos e passivos em relação ao qual se determine a utilização do AVJ (CPC 46). A legislação aplicável, especificamente o artigo 183 da Lei das S.A., estabelece a obrigatoriedade de uso do método para instrumentos financeiros e aplicações destinadas à negociação ou disponíveis para venda. Alguns pronunciamentos técnicos, no entanto, recomendam a avaliação a valor justo para outros itens, como, por exemplo, ativos imobilizados.

De todo modo, o próprio CPC 46 aponta que a mensuração a valor justo é feita sob condições de incerteza, já que as movimentações consideradas para sua aferição são estimativas — ou seja, conforme já apontado, visam a estimar o valor atual (ou o valor de mercado) dos ativos em questão.

É por esse motivo que a AVJ corresponde a uma expectativa de renda ainda passível de realização, esta última que constitui, nos termos do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), o fato gerador do imposto sobre a renda.

Dito isso, passemos à análise do julgado para avaliar se há coerência teórica entre eles, o que poderá auxiliar no mapeamento do atual entendimento do Carf sobre o tema.

Realização do AVJ na distribuição de dividendos?
Acórdão nº 1401-007.393, 1ª Seção, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária

Neste caso, por maioria de votos, vencido apenas um dos conselheiros, a Turma entendeu que não deve haver a tributação da receita decorrente de AVJ quando da distribuição de dividendos, mesmo que eles sejam provenientes do ganho contábil decorrente da mensuração a valor justo.

A situação fática, em resumo, é a seguinte: a contribuinte em questão procedeu à avaliação de um imóvel de sua propriedade, contabilizado como propriedade para investimento, tendo apurado um ganho decorrente de AVJ, o qual foi utilizado para distribuição de lucros, sem que tenha sido objeto de ajuste na base de cálculo do Lucro Presumido. Com isso, a autuação, posteriormente anulada, foi no sentido da cobrança do IRPJ e da CSLL, somados dos encargos correspondentes, sobre o valor da AVJ.

O voto vencedor teve como fundamento o artigo 13 da Lei nº 12.973/2014, que estabelece a neutralidade fiscal dos ganhos decorrentes da AVJ, desde que sejam devidamente evidenciados em subconta vinculada ao ativo [1].

É claro, essa leitura deve ser combinada com os dispositivos legais que regem a incidência do imposto de renda. Nesse sentido, o ganho deverá ser tributado no momento de sua realização, que constitui o fato gerador do IRPJ.

No caso específico, os lançamentos contábeis acerca dos registros relativos ao ganho relacionado à AVJ tiveram como contrapartida uma conta de resultado, que, após, foi transferida para conta patrimonial, especificamente a Reserva de Retenções de Lucros, o que possibilitou a distribuição aos acionistas.

Portanto, a AVJ é um ajuste relacionado ao patrimônio (ativos e passivos) e que gera reflexos no resultado (receitas e despesas). Isso ocorre exatamente porque trata de fazer com que os ativos e passivos estejam registrados pelo seu valor de realização, para correta e atual mensuração do patrimônio de determinada empresa. Isso não quer dizer, no entanto, que esses valores devem estar sujeitos de modo imediato ao imposto de renda, cuja incidência não está relacionada somente à existência de receita, mas sim à sua realização.

Para melhor compreensão, podemos entender que o valor justo está vinculado ao patrimônio e não a uma transação, esta última que é uma das possibilidades de realização de determinada renda. É por esse motivo que as repercussões do valor justo devem ser neutralizadas para fins de determinação da base de cálculo do Imposto de Renda.

Vale apontar uma última ressalva realizada no voto vencedor do Acórdão nº 1401-007.393, no sentido de que a distribuição de lucros em questão, que utilizou da renda proveniente da AVJ, pode ter reflexos societários, pois o resultado em questão foi meramente contábil, sem factual ingresso de recursos, o que pode culminar na descapitalização da empresa. No entanto, ressaltou-se que não há transgressões na esfera do direito tributário.

Realização da AVJ na alteração de regime do Lucro Real para o Presumido?
Acórdão nº 1301-007.744, 1ª Seção, 3ª Câmara, 1ª Turma Ordinária

Neste caso, que tratou de contribuinte que alterou seu regime do Lucro Real para o Lucro Presumido, se entendeu – por maioria de votos – que houve a realização do AVJ escriturado e que, portanto, o ganho deveria ser tributado pelo IRPJ e a CSLL.

A conclusão pela tributação do valor dos ajustes decorreu de interpretação do artigo 54 da Lei nº 9.430/1996, que estabelece que os valores que tiveram a tributação diferida no Lucro Real devem compor a base do Lucro Presumido no primeiro período em que a opção pelo Regime do Lucro Presumido ocorrer [2].

Nesse sentido, de acordo com o voto vencedor, se entendeu que o AVJ deveria ser tributado quando da opção pelo Lucro Presumido pela contribuinte que, no exercício anterior, estava enquadrada no Lucro Real. Isso porque, nos termos do que a Turma afirmou, a não tributação dos ajustes a valor justo se trata de um diferimento.

Não se debateu, no caso, a efetiva realização do valor do AVJ. Para se concluir pelo dever de tributação, apenas aplicou-se a disposição do artigo 54 da Lei nº 9.430, que trataria de uma “regra específica de saída do Lucro Real” – conforme mencionado no acórdão –, vigente e, portanto, aplicável, não havendo que se discutir quanto à ocorrência ou não do fato gerador do IRPJ.

Cotejo entre as decisões
Da comparação entre os acórdãos, fica a impressão de que há diferenças na interpretação do fato gerador para a tributação do AVJ em cada situação: no primeiro acórdão, os debates giraram em torno da efetiva realização do valor em questão para fins de IRPJ; e, no segundo, entendeu-se que a não tributação do AVJ no Lucro Real trata-se de um diferimento, que seria encerrado quando da opção pelo Lucro Presumido.

Nos parece que o debate acerca da realização do valor da AVJ seria o único aplicável, pois trata da discussão acerca da ocorrência ou não da hipótese de incidência dos tributos em questão: o IRPJ e a CSLL.

É que a neutralidade da AVJ no Lucro Real não configura um diferimento, mas é simplesmente uma não incidência do IRPJ e da CSLL por ausência do fato gerador. Ou seja, não há diferimento da tributação pois não há fato gerador dos tributos até a efetiva realização da renda — por não haver disponibilidade dos valores em questão.

Recorde-se que renda — ao menos para fins de tributação — é diferente de patrimônio, por conta exatamente da disponibilidade. A AVJ, conforme já apontado, trata de um mecanismo que possibilita a melhor aferição (se comparada ao método do valor histórico) do patrimônio de determinada empresa, de acordo com uma expectativa de venda no mercado em valores atuais. A renda em relação a determinado bem somente ocorrerá quando o valor for efetivamente liquidado, por conta da venda do bem em questão ou da sua integralização, por exemplo — nesses momentos, certamente ocorrerá o fato gerador do IRPJ e o montante deverá ser tributado.

Nesse sentido, não se deve aplicar ao caso da alteração de regime de imposto de renda (do Lucro Real para o Lucro Presumido) o artigo 54 da Lei nº 9.430/1996, já que a não tributação do AVJ não decorre de diferimento, mas somente da não incidência do IRPJ — pela ausência do fato gerador.

Em conclusão, nos parece que o racional aplicado ao primeiro acórdão, nº 1401-007.393, cujo caso concreto envolveu a distribuição de lucros advindos de AVJ, está adequado à legislação do IRPJ, pois levou-se em conta o momento da realização da renda (no caso, de sua ausência).

[1] Art. 13. O ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

[2] Art. 54. A pessoa jurídica que, até o ano-calendário anterior, houver sido tributada com base no Lucro Real, deverá adicionar à base de cálculo do imposto de renda, correspondente ao primeiro período de apuração no qual houver optado pela tributação com base no Lucro Presumido ou for tributada com base no lucro arbitrado, os saldos dos valores cuja tributação havia diferido, controlados na parte B do Livro de Apuração do Lucro Real Lalur.

Mini Curriculum

Eduardo Souto
é sócio da Locatelli Advogados, formado em Direito, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e em Gestão Tributária e Contabilidade pela Faculdade Fipecafi.

Thais Rigotti
é advogada da Locatelli Advogados, formada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, pós-graduada em Direito Tributário pelo Ibet e mestra em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP.

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