As multas aduaneiras e o raio simplificador
Por Arnaldo Dornelles, Liziane Angelotti Meira, Rosaldo Trevisan
02/12/2025 12:00 am
Há duas semanas ocorreu o trânsito em julgado dos REsp 2.147.578/SP e 2.147.583/SP (Tema 1.293/STJ), na sistemática dos recursos repetitivos, passando o resultado a vincular precedentes judiciais e administrativos (inclusive no Carf), com as seguintes teses firmadas:
“1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.
2. A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
3. Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.”
A discussão sobre essa matéria, já tratada por diversas vezes nesta coluna [1], encontrava-se, até agora, adormecida no Carf, onde as turmas julgadoras, ao amparo do artigo 100 do Regimento Interno do tribunal administrativo, vinham sobrestando os julgamentos dos processos que pudessem suscitar a ocorrência da tal prescrição intercorrente, na expectativa de enfrentarem a “natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira” apenas após o aguardado trânsito em julgado do Tema 1.293 do STJ.
Pois bem, o momento de analisar a tal “natureza” chegou, e os debates estão só começando!
Multas aduaneiras e a falsa dicotomia
Existem, hoje, na legislação aduaneira, 93 multas aduaneiras [2], sendo 92 delas julgadas no rito do Decreto 70.235/1972 (processo administrativo de determinação e exigência de crédito tributário) e apenas uma julgada no rito estabelecido pela Portaria Normativa MF 1.005/2023 [3] (no âmbito do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras — Cejul).
O precedente vinculante do STJ reconheceu a natureza jurídica “não tributária” do crédito correspondente a tão somente uma dessas multas (a de R$ 5.000, relativa a prestação de informações pelo transportador, que está prevista no artigo 107, IV, “e” do Decreto-Lei 37/1966, na redação dada pela Lei 10.833/2003), buscando extrair, a partir daí, um critério generalizador que seria extensível a todas as outras violações de normas de conduta estabelecidas pela legislação aduaneira.
A partir do precedente, e, principalmente, de uma leitura sinuosa de seu teor, surge uma falsa dicotomia, que leva o crédito relativo às violações das normas previstas na legislação aduaneira a ser classificado como sendo de natureza “aduaneira” ou “tributária”, como se esses fossem conceitos antagônicos/excludentes.
Definitivamente, esses conceitos não podem ser colocados em lados opostos, como se inexistisse uma área de intersecção entre o Direito Tributário e o Direito Aduaneiro. Ensina Ricardo Xavier Basaldúa, ainda em sua obra inaugural [4], que o controle aduaneiro exercido pelas aduanas se presta a garantir, especialmente, o pagamento dos tributos incidentes sobre as operações de comércio exterior e o cumprimento das restrições e proibições eventualmente estabelecidas.
Isso significa dizer que todo crédito relativo a violação de norma disposta na legislação aduaneira tem natureza aduaneira, mas apenas aqueles relativos a violações de normas que buscam tutelar o pagamento de tributos têm natureza também tributária.
Há, indiscutivelmente, uma área interseção entre o Direito Aduaneiro e o Direito Tributário, que abrange diversas normas, não alcançando o comando de prescrição intercorrente previsto no § 1º do artigo 1º da Lei 9.873/1999 aquelas normas que residem na área de intersecção entre os ramos jurídicos.
Por isso, nos termos do que foi decidido pelo STJ, é um equívoco dar protagonismo a discussões sobre a natureza “aduaneira” do crédito discutido, quando o tema efetivamente em debate é a natureza “tributária” ou “não tributária” do crédito relativo às violações das normas, sendo inegável que há “multas aduaneiras” tanto de natureza tributária quanto não tributária. Inócua, assim, a busca pela definição de “natureza aduaneira” em precedentes do CARF, a uma, porque não exclui a natureza também tributária, e, finalmente, porque parte de critério distinto do eleito pelo STJ no precedente vinculante.
Raios simplificadores
Postas essas primeiras premissas, ficamos agora com a missão de categorizar as “naturezas das multas aduaneiras”, se “tributárias” ou “não tributárias”, e é inegável ser tentadora, nessa faina, a utilização de fórmulas mágicas, como se fosse possível lançarmos sobre a matéria um raio simplificador.
Uma primeira tentativa de utilização de raio simplificador que se extrai das discussões postas até o momento é uma propensão a se buscar a identificação da natureza da sanção imposta, apesar de o precedente do STJ deixar claro que o que deve ser identificada é a natureza do bem tutelado pela norma violada que enseja a aplicação da sanção. E nos parece lógico o caminho apontado pelo STJ. Sendo uma prerrogativa do legislador, o tipo de sanção a ser aplicada não revela muito e não guarda, necessariamente, relação com o bem tutelado pela norma violada.
O subfaturamento em uma importação, por exemplo, poderia, a critério do legislador, ensejar a aplicação de uma multa sobre a diferença de tributos apurada, de uma multa sobre a diferença do valor aduaneiro da mercadoria, de uma penalidade de perdimento, de uma sanção administrativa restritiva de direitos ou de qualquer outra sanção, pecuniária ou não, sem que a escolha por uma ou por outra alterasse a natureza do bem que se quer proteger. Isso mitiga substancialmente as teses “simplificadoras” focadas na base de cálculo das penalidades, ou no tipo sancionador eleito.
Um segundo raio simplificador que parece estar sendo aplicado nas discussões sobre a matéria diz respeito à interpretação da terceira tese firmada pelo Tema 1.293 do STJ, que afasta a prescrição intercorrente apenas nos casos em que a “obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado”.
Quem usa o raio simplificador nesses casos defende que a natureza “mista” (aduaneira e tributária) do crédito resultante da multa teria o poder de sempre atrair para ele a prescrição intercorrente. Mas essa forma de pensar parece ignorar que o caráter misto da obrigação não afasta o fato de que esta pode surgir no interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos, nos termos do § 2º do art. 113 do CTN, constituindo uma obrigação tributária acessória. Assim, abraçar essa linha de interpretação é o mesmo que dizer que não existem obrigações tributárias acessórias estabelecidas na legislação aduaneira.
Outra simplificação que podemos observar “no semear de novas teses” busca associar a natureza “não tributária” a um poder de polícia exercido pela fiscalização aduaneira (v.g., como o encontrado na multa por embaraço à fiscalização), como se esse mesmo poder de polícia não fosse exercido pela fiscalização de tributos internos. Em que difere a sanção por embaraço em caso de fiscalização de imposto de renda ou de imposto de importação, ou, ainda, de casos de suspensão de tal imposto, como os referentes a (des)cumprimento de regimes aduaneiros especiais?
Em síntese, a única característica comum de todas essas teses simplificadoras é sua ineficácia, pelo baixo grau de abrangência e pela elevada quantidade de exceções.
Natureza da multa substitutiva do perdimento
Um dos equívocos mais comuns a quem não está familiarizado com o Direito Aduaneiro, e, por isso, é facilmente afetado pela falsa dicotomia aqui já citada, é imaginar que a multa substitutiva do perdimento, aplicável nas hipóteses em que a mercadoria sujeita a tal penalidade não seja encontrada ou tenha sido consumida ou revendida, teria uma “natureza” uníssona, “aduaneira”, e, sendo “aduaneira”, automaticamente estaria excluída do universo tributário, imaginando que “aduaneiro” seria sinônimo de “não tributário”.
A penalidade de perdimento prevista no artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, e, consequentemente, a multa que a substitui, possui natureza aduaneira, mas isso não exclui a natureza igualmente tributária de algumas hipóteses, em que há flagrante intersecção com o reino tributário. Recorde-se: para podermos afirmar que uma penalidade não tem natureza tributária, é preciso que identifiquemos o bem que está sendo ali protegido, e isso só pode visto a partir da análise de cada uma das hipóteses de perdimento previstas na legislação.
Assim, a multa substitutiva à penalidade de perdimento não possui natureza própria, mas sim natureza vinculada à hipótese de perdimento que está a substituir, e essa hipótese, prevista na legislação aduaneira, pode ou não ter natureza tributária.
Veja-se, por exemplo, uma aplicação da penalidade de perdimento com base no inciso XI do artigo 105 do Decreto-Lei 37/1966 (mercadoria “estrangeira, já desembaraçada e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em parte, mediante artifício doloso”), substituída por multa. Alguém cogitaria que essa multa substitutiva de perdimento tem natureza “não tributária”?
Zonas de certeza positiva e negativa
A impossibilidade de classificarmos magicamente todas as multas aduaneiras a partir de raios simplificadores não impede, contudo, que possamos tecnicamente identificar um mínimo denominador comum na “zona de certeza positiva” (multas para as quais é inequívoca a aplicação da prescrição intercorrente, em função do decidido no precedente vinculante do STJ) ou na “zona de certeza negativa” (multas para as quais é flagrante a não aplicação da prescrição intercorrente, à luz do decidido pelo STJ).
Como exemplos do primeiro grupo podemos citar as multas relacionadas com a emissão de licenças de importação, obrigação que não se presta ao controle do pagamento dos tributos incidentes na operação, mas sim ao controle relacionado com restrições às importações, a multa pelo não recolhimento de direitos antidumping, que tributos não são (ao menos no Brasil), e a multa de R$ 1.000 pela importação de mercadoria estrangeira atentatória à moral, aos bons costumes, à saúde ou à ordem pública, cujos bens tutelados não dizem respeito aos tributos.
Por outro lado, em relação ao segundo grupo podemos citar, entre outras, a multa de ofício calculada sobre a totalidade ou diferença de tributo, em razão de falta de pagamento, falta de declaração ou declaração inexata, a multa pelo extravio de mercadoria, cobrada do responsável pelo extravio juntamente com os tributos que seriam devidos pelo importador, e as multas pelo não emprego e pelo desvio de finalidade de mercadoria importada com isenção.
Fora das referidas zonas de certeza, existe uma “zona cinzenta”, de penumbra, ou umbral, imune a raios simplificadores, e que será amadurecida pela jurisprudência, administrativa e judicial.
Amadurecimento da jurisprudência no Carf
A partir do início dos julgamentos do tema, principalmente nas turmas especializadas aduaneiras (que, diga-se, julgam “temas aduaneiros tributários” e “temas aduaneiros não tributários”), crê-se que a “zona cinzenta” tende a ser paulatinamente reduzida.
As primeiras leituras emanadas de decisões do Carf, a partir dos sobrestamentos efetuados nos julgamentos do último ano, permitem visualizar que, embora a natureza das multas tenha sido deixada para um segundo momento, debates sobre a contagem do prazo já ganharam contornos mais nítidos (em regra, com termo inicial na data da interposição da peça recursal, e termo final na decisão de mérito ou conversão em diligência, sendo reiniciado com a interposição de outra peça recursal), assim como o entendimento de que a prescrição intercorrente pode atingir parcialmente os valores lançados no processo (apenas no que se refere às multas “não tributárias”, que passarão a ser regidas por regra decadencial distinta da referente a temas com repercussão tributária).
Apesar dos esforços inicialmente empreendidos, no que se refere à aplicação do precedente vinculante do STJ, vários temas ainda serão enfrentados e amadurecidos, desde a natureza de multas que ainda se encontram na “zona cinzenta”, até relações de prejudicialidade entre contencioso administrativo e judicial, aplicação da prescrição intercorrente no caso de condutas que também tenham repercussão criminal (à luz do § 2º do artigo 1º da Lei 9.873/1999), além de outras sequer imaginadas até o momento, mas que certamente surgirão ao longo dos próximos meses.
No caminho a ser percorrido, a simplificação é, ao mesmo tempo, uma tentação e um erro a ser evitado.
Com seu sagaz espírito irônico, H.L. Mencken [5] sintetiza a mensagem de fundo desta coluna: para todo problema complexo existe uma solução clara, simples e errada.
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[1] A última aqui.
[2] TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.
[3] Multa ao transportador, de passageiros ou de carga, em viagem doméstica ou internacional, que transportar mercadoria sujeita à pena de perdimento, prevista no art. 75 da Lei nº 10.833/2003.
[4] BASALDUA, Ricardo Xavier. Introducción al derecho aduanero: concepto y contenido. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2008.
[5] MENCKEN, H.L., The Divine Afflatus, 1917 (in The New York Evening Mail), adaptada em 1920 (Prejudices: Second Series): “Explanations exist; they have existed for all time; there is always a well-known solution to every human problem—neat, plausible, and wrong”.
Mini Curriculum
Arnaldo Dornelles
é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil, presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Carf, especializada em matéria aduaneira.
Liziane Angelotti Meira
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.
Rosaldo Trevisan
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).
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