Aprovado o PL sobre o voto de qualidade no Carf: abriu-se a caixa de Pandora?

Liziane Angelotti Meira

Semana passada foi aprovado o Projeto de Lei (PL) sobre o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o qual parece tecido por linhas que misturam a sabedoria prospectiva de Prometeu, os desatinos de Epimeteu e as surpresas trazidas pela primeira mulher na mitologia grega.

O voto de qualidade, que já estava presente em decretos há mais de sete décadas [1], foi introduzido em norma de estatura legal em 2008, no artigo 25, § 9º, do Decreto no 70.235/1972, que determinava que incumbe aos presidentes das turmas (conselheiros fazendários) o voto decisivo em caso de empate nos julgamentos do Carf [2].

Doze anos depois, em um panorama político ultraliberal, a Lei nº 13.988, no seu artigo 28, afastou a aplicação do voto de qualidade no caso de determinação e exigência do crédito tributário, prescrevendo nessa hipótese decisão favorável ao contribuinte. Vale lembrar que, nos termos do Parecer SEI nº 6.898/2020/ME, o voto de qualidade continuava sendo aplicado às multas aduaneiras.

Já no início do novo governo, foi aprovada a Medida Provisória no 1.160, de 12 de janeiro de 2023, que restabeleceu no seu artigo 1º, o voto de qualidade no Carf. Essa medida provisória perdeu a vigência em 15 de junho de 2023.

Em 5 de maio de 2023, foi apresentado em regime de urgência o Projeto de Lei nº 2.384/2023, restabelecendo o voto de qualidade e também conduzindo outras criaturas. O PL foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 7 de julho de 2023, e, no dia 30 de agosto, o Senado o aprovou. Neste momento, aguarda-se a sanção presidencial.

Relendo o documento, além do voto de qualidade, deparamo-nos com as estranhas criaturas, sejam corujas ou jabutis, que restarão libertadas com a sanção presidencial. Vamos nos concentrar em uma disposição que passou quase despercebida e envolve matéria aduaneira. Trata-se do artigo 2º do PL, que introduz o artigo 14-B no Decreto 70.235, de 1972.

Peço aqui licença ao leitor, mas nesse caso, excepcionalmente, é necessária a citação desse novel artigo, para que então tenhamos condições de analisá-lo:

“Art. 2º O Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, passa a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art. 14-B. No caso de determinação e exigência de crédito tributário ou aplicação de penalidade isolada que abranja operação ou atividade previamente autorizada por órgão regulador, o litígio que envolva controvérsia jurídica entre a autoridade fiscal ou aduaneira e o órgão regulador será submetido, de ofício ou mediante requerimento do sujeito passivo, à Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal (CCAF), nos termos do art. 36 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015.

Parágrafo único. A submissão do litígio à CCAF é considerada reclamação, para fins do disposto no inciso III do caput do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional)”

Esse artigo não constava do texto original do PL apresentado pelo governo e foi aprovado sem despertar maiores atenções. Com intuito de trazê-lo ao debate, comentarei alguns aspectos que me parecem preocupantes, tomando a perspectiva da matéria aduaneira.

Como se sabe, a resistência do sujeito passivo ao crédito tributário ou à penalidade isolada lançados pela autoridade fiscal ou aduaneira federal não se caracteriza como um conflito entre órgãos da administração, tratando-se de uma relação jurídica entre o particular e a própria União, titular do crédito tributário.

A mediação a que se refere o artigo 36 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, é aplicável especificamente a “conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal”. O escopo dessa mediação é exatamente resolver divergências no seio da administração pública.

Ou seja, realizada a mediação, obtém-se harmonização e mais eficiência dentro da administração pública federal. Como corolário, espera-se o decréscimo dos conflitos da administração com os particulares e também a redução do volume de ações judiciais.

Cabe observar, contudo, que a mediação prevista no artigo 36 da Lei nº 13.140, de 2015, não foi concebida para ser aplicada diretamente a conflitos entre a administração pública e particulares e nem para suspender a exigibilidade de obrigações dos particulares enquanto a controvérsia entre órgãos da administração não for dirimida. Ademais, um terceiro em relação a essas controvérsias, um particular, não deveria ter legitimidade para instaurar o procedimento de mediação entre órgãos da administração.

Contudo, o novo dispositivo legal não esclarece se está estendendo a mediação também para conflitos entre a administração pública e particulares, no caso de conflitos que constituem créditos tributários e penalidades, direitos indisponíveis do Estado.

Talvez a leitura esperada fosse que o dispositivo estaria criando a legitimidade do particular interessado para provocar mediante reclamação o procedimento de mediação entre órgãos públicos federais e estaria criando também uma nova possibilidade de suspensão do crédito tributário em relação a esse particular, até que a divergência entre os órgãos fosse resolvida pela AGU. Dessa interpretação, soem problemas jurídicos.

Não haveria que se falar de um conflito ou prestação resistida entre o fisco e algum órgão regulador, como a Anvisa, por exemplo. Esse conflito não existe, pois cada um atua dentro do campo legal de sua competência e a aplicação da legislação que envolva crédito tributário compete exclusivamente ao fisco.

Muito possivelmente, a ideia de aplicação dessa mediação no que pertine à matéria aduaneira tenha sido concebida para envolver questões sobre a classificação fiscal de mercadorias.

Todavia, a classificação fiscal no Brasil deve ser realizada com observância da Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (acordo internacional assinado e incorporado ao sistema jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 71, de 11 de outubro de 1988, e pelo Decreto nº 97.409, de 22 de dezembro de 1988), bem como com observância ao regramento do Mercosul.

Especificamente, a classificação fiscal de mercadorias se fundamenta nas Regras Gerais para a Interpretação do Sistema Harmonizado da Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, nas Regras Gerais Complementares do Mercosul, nas Regras Gerais Complementares da Tipi, nos pareceres de classificação do Comitê do Sistema Harmonizado da Organização Mundial das Aduanas e nos ditames do Mercosul, e, subsidiariamente, nas Notas Explicativas do Sistema Harmonizado. Ademais, as classificações das mercadorias contidas nos pareceres da OMA, que são traduzidos e internalizados por ato do secretário da Receita Federal do Brasil, são de observação obrigatória [3].

Mister ter presente que a aplicação das normas de interpretação do Sistema Harmonizado e das Nomenclaturas nele baseadas é um procedimento muito específico e técnico. Por isso, tanto no Brasil como no exterior, as consultas sobre classificação são resolvidas por autoridades públicas tributárias e aduaneiras, que possuem o conhecimento necessário para a aplicação das referidas normas, de caráter internacional. No caso do Brasil, a competência para determinar a classificação fiscal para efeito de lançamento de tributos federais ou multas pertinentes é da autoridade da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional (lei complementar), cabendo a este órgão, inclusive, responder a consultas sobre essa classificação, nos termos dos artigos 48 e 50 da Lei nº 9.430, de 1996.

No caso de divergência entre os países sobre a classificação de uma mercadoria no Sistema Harmonizado, elas são solucionadas mediante consulta ao Comitê do Sistema Harmonizado da Organização Mundial das Aduanas (OMA), que conta com representantes da RFB.

Dessarte, a classificação fiscal deve ser determinada pela autoridade competente com observância das regras internas e internacionais. Não se coaduna com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil que, no caso de divergência de classificação entre a RFB e outros órgãos (que, diga-se, não possuem competência para classificar mercadorias no Sistma Harmonizado, limitando-se sua atuação à concessão de licenças e autorizações) [4], essa questão seja resolvida por meio de mediação da Advocacia-Geral da União.

Retomando o texto do novo artigo sob escrutínio, ele indica que, no caso de divergência entre o entendimento da RFB e de outros órgãos da administração pública que envolva crédito tributário ou multa isolada, a questão pode ser levada à mediação da Advocacia-Geral da União. O que, conforme indicamos, parece configurar um grande imbróglio jurídico, com proporções internacionais.

O parágrafo único do mesmo artigo aprofunda essa situação, pois determina que a submissão, de ofício ou pelo particular, à AGU do litígio será considerada reclamação, aplicando-se a suspensão do crédito tributário prevista no artigo 151, III, do Código Tributário Nacional.

Cabe observar que essas regras introduzidas pelo PL trouxeram uma incoerência para dentro da lei de mediação, pois não se fez referência ao artigo 38 da Lei nº 13.140, de 2015. É este artigo que disciplina especificamente os conflitos que envolvam a RFB ou créditos inscritos em dívida ativa da União, veiculando requisitos mais rígidos para proteger os recursos públicos.

Conforme o artigo 38 da Lei nº 13.140, de 2015, a opção do órgão ou entidade pela mediação da AGU implica renúncia ao direito de recurso ao Carf. O mesmo artigo 38 não permite que os conflitos sobre créditos tributários com particulares sejam submetidos à mediação da AGU. Não se admite, da mesma forma, que sejam levados à mediação conflitos sobre créditos tributários que envolvam empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que atuem em regime de concorrência.

Ademais, segundo artigo 38 da Lei nº 13.140, de 2015, se a mediação resultar em redução ou cancelamento do crédito tributário, dependerá de manifestação conjunta do advogado-geral da União e do ministro da Fazenda.

Nesse contexto, é de se concluir que o artigo 2º do PL afronta garantias ao crédito tributário previstas na própria lei de mediação.

Por sua vez, o artigo 151, III, do CTN dispõe que as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo administrativo tributário, suspendem a exigibilidade do crédito tributário.

Contudo, vimos que o novo artigo prevê a possibilidade de que divergência entre órgãos da administração federal seja apresentada à AGU com pedido de mediação, de ofício ou pelo particular (terceiro afetado pelo entendimento dos órgãos administrativos). Nesse sentido, a reclamação do particular e menos ainda a submissão de ofício têm o condão de transformar o procedimento de mediação em um rito de processo administrativo tributário no qual o particular seja parte.

Ou seja, o artigo 2º do novo PL tentou criar um novo caso de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, inserindo-o expressamente no Decreto 70.235, de 1972, como uma hipótese de processo administrativo tributário, apesar de sua natureza ser de um procedimento de mediação entre órgãos da administração pública federal conduzida pela AGU.

Conforme jurisprudência consolidada no STF [5], as causas de suspensão do crédito tributário previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional constituem uma lista taxativa ou numerus clausus, somente sendo possível incluir novas hipóteses mediante previsão em lei complementar.

Por fim, se fossem superados todos os problemas atinentes ao artigo em análise e se entendesse pela sua constitucionalidade e aplicabilidade, ele não alcançaria todos os casos de divergência de classificação, v.g., para efeito de imposição de direitos antidumping e nem em direitos compensatórios, por não configurarem tais direitos crédito tributário ou multa isolada.

Ainda na saga de Prometeu e de Epimeteu, voltemo-nos à Pandora, primeira mulher segundo a mitologia grega e esposa de Epimeteu, mas nos concentremos na esperança, que foi o que restou. Mantenhamos esperança de que o processo administrativo tributário seguirá guiado por regras que tragam justiça, celeridade, equidade e que não afrontem a Carta Magna, nem o ordenamento internacional.

[1] O Decreto 16.580/1924, que criou o Primeiro Conselho de Contribuintes, estabeleceu que o órgão teria cinco membros, não havendo ainda previsão para o voto de qualidade. A estrutura paritária para os Conselhos surge apenas no Decreto 24.036/1934 (“Reforma Aranha”), com a consequente instituição do voto de qualidade, proferido pelo presidente do colegiado (art. 175).

[2] Sobre o assunto, sugiro remissão ao artigo “Voto de qualidade e as decisões em matéria aduaneira no Carf sob escrutínio” (Disponível em . Acesso em: 2 set. 2023.

[3] Nesse sentido o Parecer Normativo Cosit/RFB Nº 6, de 20 de dezembro de 2018.

[4] Sobre esse tema, remete-se ao recente artigo desta ConJur “O ‘Febeapá’ em matéria de classificação de mercadorias” (Disponível em . Acesso em: 4 set. 2023.

[5] Conforme AgRg na MC 16.107/RS, rel. ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 17/11/2009, DJe 4/12/2009,

Liziane Angelotti Meira

Presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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