Altruísmo e desigualdade: olhar a partir da dedução de incentivo do Imposto de Renda da Pessoa Física

Por Breno Lemos

04/09/2025 12:00 am

O altruísmo pode ser definido como a qualidade daquilo que zela genuinamente pelo bem-estar do ser humano. Uma de suas expressões concretas é a filantropia, que engloba o conjunto de ações planejadas para transformar a comunidade no longo prazo. A destinação de parcela do imposto de renda devido pela pessoa física, sob certas condições, é uma dentre as fontes elegíveis para o financiamento de tais instituições.

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No Brasil, a fruição dos benefícios fiscais relativos ao IRPF nas doações é regulamentada pela Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.131/2011 e suas alterações. Em termos gerais, a legislação permite que as doações efetuadas por um contribuinte deduzam em até 6% o seu imposto devido apurado na declaração de imposto de renda da pessoa física, desde que este tenha optado pelo formulário completo.

Valores destinados à filantropia

Neste contexto, analisando os Grandes Números do Imposto de Renda da Pessoa Física — Ano Calendário 2023, publicado pela Receita Federal, poderiam ter sido destinados R$ 13,4 bilhões para a filantropia pelos contribuintes naquele período. No entanto, as deduções de incentivo totalizaram apenas R$ 510 milhões no ano, menos de 4% do potencial! Isto quer dizer que as pessoas físicas deixaram de exercer o direito de alocar, sem contrapartida alguma, R$ 12,8 bilhões em receitas tributárias para projetos filantrópicos de acordo com seu interesse.

Desagregando os dados, foi possível traçar o perfil do contribuinte pessoa física que efetuou as aludidas deduções: trata-se de um homem que realizou declaração individual, tinha entre 61 e 70 anos e residia no estado de São Paulo. Aliás, nesta faixa etária, a dedução de incentivo atingiu R$ 96 milhões, ou 5,5% do imposto devido total. Vale dizer, dois terços da destinação total foi realizada por homens. Independente do gênero, registrou-se crescimento contínuo na proporção da dedução do imposto devido até alcançar o pico na faixa etária entre 71 e 80 anos.

No que tange à faixa de renda, considerando o total de rendimentos dos contribuintes que optaram pela declaração completa, observa-se que 27% da dedução era proveniente das 31.668 declarações que receberam mais de 320 salários mínimos em rendimentos totais — o salário mínimo era R$ 1.320,00 em 2023. Já no que diz respeito à natureza da ocupação, o destaque foi para os empresários, que utilizaram 1% do imposto devido total para efetuar esta modalidade de doação, perfazendo R$ 130 milhões. Tendo em vista a ocupação principal, o topo desta lista era composto por produtores agropecuários, titulares de cartório, dirigentes de empresas e médicos.

Do ponto de vista regional, os contribuintes que, relativamente, mais utilizaram a dedução de incentivo estavam domiciliados no Mato Grosso (0,70% do imposto devido total), Paraná (0,44%) e Rio Grande do Sul (0,43%). Quando consideradas as contribuintes declarantes mulheres, o ranking se alterou para Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais. No caso dos homens, a ordem foi novamente modificada para Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. A dominância do Mato Grosso foi influenciada pelos produtores agropecuários residentes no Estado, que destinaram R$ 22 milhões do imposto devido total para a filantropia. Entre as capitais brasileiras, as que mais fizeram dedução de incentivo foram Belo Horizonte (0,42% do imposto total devido), Curitiba (0,37%), Porto Alegre (0,33%), Vitória (0,31%) e Florianópolis (0,27%).

Justiça social e distributiva
A despeito de toda controvérsia em torno da concessão de benefícios fiscais desta natureza — como a regressividade, não-equidade e deterioração fiscal, um dos objetivos legítimos da filantropia é a justiça social e distributiva, personificado na redução da desigualdade. Assim, admitindo a dedução de incentivo como proporção do imposto devido como proxy para o altruísmo, e o índice de Gini do rendimento domiciliar per capita obtido a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (Pnad Contínua) calculado pelo IBGE como medida para desigualdade, é possível verificar se há alguma relação bem definida entre estas duas variáveis. Observou-se significativa correlação negativa entre as duas variáveis (-0,64) na escala estadual em 2023, sugerindo uma associação inversa entre a dedução de incentivo proporcional calculada e o índice de Gini para os estados brasileiros — o gráfico abaixo demonstra esta correlação.

À parte o paradoxo condicional relacionado ao binômio altruísmo — desigualdade, é certo estas variáveis se retroalimentam. E a realidade é que, à luz dos cortes analíticos aqui apresentados, as características da dedução de incentivo têm como singularidade a baixa propensão do contribuinte em alocar parcela do imposto devido — a custo zero — para as instituições de filantropia! Tal condição é sintomática em tempos nos quais predominam jargões do tipo “mais Brasil e menos Brasília”, e nos chama à reflexão sobre o que podemos fazer desde já com vistas a enraizar em nós o sentido de pertencimento e a condição de protagonistas na redução das desigualdades e na promoção do desenvolvimento local sustentável.

Mini Curriculum

é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Governança Pública da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, ex-diretor de Planejamento da Secretaria de Estado do Planejamento do Paraná (2023 – 2025) e ex-superintendente da Secretaria Municipal de Planejamento, Finanças e Orçamento de Curitiba (2017 – 2021).

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