Aduana e os 100 anos do Carf: passado, presente e futuro (parte 2)
Por Rosaldo Trevisan
14/10/2025 12:00 am
Aduaneiro
No domingo passado, em 14 de setembro, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) completou exatos 100 anos de existência, sendo a semana anterior, em Brasília, dedicada às comemorações do centenário, no XI Seminário Carf de Direito Tributário e Aduaneiro, que contou com ampla participação de conselheiros(as) e de importantes juristas e autoridades, que trataram de temas afetos ao presente e ao futuro do Carf, como normas vinculantes nos julgamentos administrativos, uso de inteligência artificial, novo contencioso administrativo fiscal, reforma da tributação sobre a renda (PL 1.087/2025), tratados internacionais multilaterais e bilaterais na legislação aduaneira, e revisão de lançamento [1].
Em painéis internos, foram ainda debatidos assuntos de interesse das três Seções de Julgamento, sendo aprovadas, na última sexta-feira, 11 novas súmulas [2].
Aproveitamos a data festiva para seguir aqui com a segunda parte de nossa trilogia, iniciada em 12/08/2025 [3], com o “passado”, para agora encaminhar a conversa para o “presente” do tribunal administrativo, com especial destaque para temas aduaneiros, assunto-mestre da coluna Território Aduaneiro.
Novo Ricarf
Desde o estabelecimento da base legal atual que rege o Carf (artigos 48 a 52 da Lei 11.941/2009 [4]), o tribunal administrativo teve três regimentos internos, aprovados pelas Portarias MF 256/2009, 343/2015 e 1.364/2023 (atualmente vigente).
Ao analisar a evolução desses textos, comparativamente [5], percebe-se que, em grande parte, foram otimizados procedimentos, buscando alcançar dois grandes objetivos, um afeto à celeridade (para redução do acervo processual e diminuição da temporalidade dos processos) e outro à previsibilidade/segurança jurídica (com ferramentas que ofereçam soluções mais uniformes às questões analisadas pelas distintas turmas de julgamento).
O Regimento Interno do Carf (Ricarf) atual, nas frentes mencionadas, apresenta como principais medidas: a criação do Plenário Virtual (PV); simplificação na adoção de súmulas; reformulação das turmas de julgamento; aumento do tempo de mandato total dos conselheiros e possibilidade de criação de turmas especializadas [6].
Plenário Virtual e aprimoramento de súmulas
O Plenário Virtual inspira-se na exitosa experiência do Supremo Tribunal Federal, e a aprimora [7], com depósito de votos em sistema eletrônico interno específico (que já está em pleno funcionamento) e votação de forma assíncrona, para processos que não sejam de elevado valor e complexidade, propiciando otimização de recursos financeiros e das atividades dos conselheiros.
Spacca
As súmulas, que representam enunciados que condensam o posicionamento que prevalece nos órgãos julgadores [7], são, ao lado de outras figuras surgidas na década passada, no Brasil, como as sistemáticas de repercussão geral e dos recursos repetitivos, instrumentos de segurança jurídica, e, ao mesmo tempo, de redução de acervo, tendo em vista que sua aplicação se alastra a numerosos processos. No novo Ricarf, foram ampliadas as hipóteses de Súmula [8], o que tende a acentuar não só a pacificação dos entendimentos jurisprudenciais administrativos, mas a continuidade da redução do acervo processual.
Medidas de otimização do quadro de pessoal
Classificamos as demais medidas do novo Ricarf, atreladas a reformulação de turmas de julgamento, especialização e aumento do tempo de mandato total dos conselheiros, como formas de melhor aproveitamento/otimização do quadro de pessoas que compõem o Carf, o que resulta em maior produtividade e eficiência.
As turmas ordinárias de julgamento foram reorganizadas, e passaram a contar com seis julgadores cada, aumentando a objetividade nos debates, e permitindo o julgamento de maior quantidade de processos por reunião. Além de oito turmas ordinárias (agrupadas em quatro câmaras), há ainda, para cada uma das três Seções de Julgamento, quatro turmas extraordinárias e uma turma uniformizadora de jurisprudência (Câmara Superior de Recursos Fiscais).
Como tempo total do mandato dos conselheiros aumentou, em regra, de seis para oito anos (ou de oito para doze, para presidentes e vice-presidentes de turmas e de câmaras), há tendência a maior estabilidade nas composições das turmas, o que apresenta impactos positivos em termos de previsibilidade e produtividade.
Em matéria aduaneira, o Ricarf previu ainda a possibilidade de especialização (artigo 46), que se concretizou na Portaria Carf 627/2024, que estabeleceu competência especializada aduaneira às duas turmas ordinárias da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento. A medida representou substancial e inegável avanço no que se refere ao tratamento mais técnico de questões aduaneiras no tribunal administrativo [9].
Há ainda duas medidas de otimização posteriores ao novo Ricarf que merecem destaque, em relação a quadro de pessoal. A Portaria Carf 1.360/2023 objetivou fomentar a igualdade de gênero, aumentando a participação feminina no Carf. E o Decreto 12.340/2023, que prevê a possibilidade de sessões extraordinárias, com acréscimo proporcional de carga de trabalho e remuneração a conselheiros(as) indicados pelos contribuintes, medida que já apresenta perceptíveis impactos em termos de produtividade.
Transparência
A transparência está tão arraigada no seio do Carf que já não costuma mais figurar nos documentos oficiais entre seus principais atributos, mas é importante destacar que o Carf disponibiliza a íntegra de seus julgamentos em seu sítio web, em base que já conta com mais de meio milhão de decisões [11], que podem ser filtradas com vários critérios de busca, o que não é comum, lamentavelmente, em outros tribunais administrativos, no Brasil e no Direito Comparado.
Ainda no sítio web do Carf, pode ser acompanhado o julgamento em plenário virtual, com votos e divergências, o calendário de sessões, as pautas e atas de julgamento, e os atos administrativos do Carf, havendo também a possibilidade de utilização do ambiente informatizado para envio de memoriais e sustentações orais, e para agendamento de audiências com conselheiros(as).
Além disso, o Carf divulga periodicamente seus “dados abertos” estatísticos [12], que permitem a visualização pública do acervo (por etapa processual e por faixa de valor), da temporalidade (nas turmas ordinárias/extraordinárias e na Câmara Superior), da quantidade de processos julgados, e dos resultados, por tipos de votação. A simples leitura desse relatório permite ao leitor saber, por exemplo, que: (a) o acervo do Carf é o menor dos últimos cinco anos (70 mil processos — 58,33% do quantitativo que existia em 2018); (b) dentro de tal acervo, 73% dos processos possuem valor na faixa entre R$ 84.720 e R$ 15 milhões, e apenas 133 processos possuem valor acima de R$ 1 bilhão; (c) o tempo médio de julgamento de um processo nas turmas ordinárias/extraordinárias é de 1212 dias, e, na Câmara Superior, de 314 dias; (d) em 2024 o Carf proferiu acórdãos em 23.147 processos, totalizando R$ 691,35 Bilhões, o maior valor anual julgado na história do tribunal; e (e) 86,7% dos processos são decididos por unanimidade, 9,7% por maioria, e 3,6% pelo voto de qualidade, decorrente de empate no julgamento.
Qualquer análise séria e científica sobre o Carf deveria passar pelo exame desses dados, que mitigam crenças, e abrem a clareira para a informação técnica e correta, por meio da transparência.
Inovação e planejamento estratégico
A inovação é outra constante, não só no Carf, mas no Ministério da Fazenda, em geral, que tradicionalmente é uma das forças mais bem equipadas tecnologicamente no serviço público – e assim deve ser, para, ao mesmo tempo, simplificar e automatizar as obrigações a cargo dos administrados, e otimizar os processos de controle a cargo da administração,
Além do já mencionado Plenário Virtual, o Carf, atualmente, está trabalhando na implementação da ferramenta Inteligência Artificial para Recursos Administrativos (Iara) concebida no tribunal e desenvolvida pelo Serpro, objetivando contribuir ainda mais para a tramitação célere de processos, otimizando fluxos de trabalho [13].
E, como noticiado aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico [14], foi aprovado em setembro de 2024 o Mapa Estratégico do Carf para o período 2024-2027, indicando como missão institucional “Solucionar litígios tributários e aduaneiros em última instância administrativa com imparcialidade, celeridade e excelência, proporcionando segurança jurídica à sociedade”, com texto que, a nosso ver, aprimora significativamente a missão anterior, e fornece dicas sobre o que está por vir [15].
Como se percebe, no “presente” o Carf já está traçando caminhos para um “futuro” melhor. Mas não aprofundaremos aqui conjecturas sobre o futuro, que, além de proverbialmente pertencer (em última instância) a Deus, é tema de nossa próxima coluna, encerrando a trilogia!
[1] Estão disponíveis no YouTube – Carf os vídeos institucionais da íntegra das palestras dos dias 1o e 2 de setembro, respectivamente, aqui.
[2] Entre as onze súmulas aprovadas, oito são de competência da 3ª Seção de Julgamento, cabendo destacar duas que interseccionam o universo aduaneiro, ambas aprovadas por unanimidade: “Cada um dos componentes da mercadoria descrita como “kit ou concentrado para refrigerantes” deve ser classificado em código próprio da TIPI, quando o kit ou concentrado for constituído por diferentes matérias-primas e produtos intermediários, que apenas após nova etapa de industrialização no estabelecimento adquirente se tornam uma preparação composta para elaboração de bebida” (que receberá a numeração de Súmula 236); e “A multa decorrente da conversão da pena de perdimento, prescrita no §3º do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, com a redação dada pela Lei nº 10.637/2002, é inaplicável a operações de exportação anteriores a 28/07/2010” (a receber o número sumular 238).
[3] Disponível aqui.
[4] O novo Carf é fruto ainda do equilíbrio possível entre os tensionamentos surgidos nos idos de 2020 a 2023, encontrado no texto final da Lei 14.689/2023. Sobre tal lei, tratamos em: TREVISAN, Rosaldo. Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira) – ConJur, 26 set. 2023, disponível aqui.
[5] A quem desejar comparar esses três regimentos, recomendamos dois arquivos que constam no sítio web do Carf, o primeiro comparando os regimentos de 2009 e de 2015 (disponível aqui), e o segundo, comparando o regimento de 2015 ao atual, de 2023 (aqui).
[6] Como noticiado oficialmente aqui.
[7] Ao contrário do STF, que julgou matérias relevantíssimas e de alto impacto e repercussão em Plenário Virtual (como a ADI 2.446, que tratou da constitucionalidade do parágrafo único art. 116 do Código Tributário Nacional), o Carf não aprecia em PV processos que tratem de exigência de crédito tributário de elevado valor e complexidade. Tais processos devem ser julgados em sessões síncronas, presenciais ou híbridas..
[8] Como tratamos em: TREVISAN, Rosaldo, Seminário Carf e o papel das súmulas no Direito Aduaneiro – ConJur, 01 out. 2024, disponível aqui>.
[9] Como se destaca em: PINTO, Fernando Brasil Oliveira de; CARDOSO, Jorge Cláudio Duarte. Novo Ricarf e Súmulas: novidades e expectativas – ConJur, 07 fev. 2024, disponível aqui>.
[10] Tratamos das vantagens da especialização em: TREVISAN, Rosaldo, MEIRA, Liziane Angelotti; MACEDO, Leonado Correa Lima. Por um contencioso aduaneiro especializado, em Território Aduaneiro – ConJur. 9 Jul. 2024 (disponível aqui). Ainda sobre a importância da jurisdição especializada em matéria aduaneira: BASALDÚA, Ricardo Xavier. Importancia de la Jurisdicción Especializada en Materia Aduanera: Situación en Argentina. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo, Lex, 2015, p. 66-67; e LEONARDO, Fernando Pieri. A hora e a vez da especialização aduaneira – ConJur, 30 abr. 2024, disponível aqui.
[11] Disponível aqui.
[12] O último, referente a agosto de 2025, está disponível aqui.
[13] Disponível aqui.
[14] TREVISAN, Rosaldo, Seminário Carf e o papel das súmulas no Direito Aduaneiro – Revista Eletrônica Conjur, 01 out. 2024, disponível aqui.
[15] A missão anterior (2020-2023) era: “Assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução de litígios tributários”.
Mini Curriculum
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).
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