Aduana e os 100 anos do Carf: passado, presente e futuro (parte 1)
Por Rosaldo Trevisan
14/10/2025 12:00 am
Heródoto consagrou há mais de 2.000 anos a importância do estudo da História: pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Quando nos dedicamos a analisar a evolução histórica de um instituto, de um ramo da ciência, ou de uma organização, estamos facilitando a visualização das razões que levaram ao cenário atual, e dos possíveis desafios e perspectivas para o amanhã.
Ildefonso Sánchez, ainda em 1974, em seu “La aduana: pasado, presente y futuro” [1], e Héctor Hugo Juárez, mais recentemente, em “La Organización Mundial de Aduanas, pasado, presente y futuro” [2], comprovam que o fascínio pelos três tempos verbais básicos já acompanha as obras que tratam de matéria aduaneira há algum tempo.
E nada melhor do que uma trilogia para analisar, em pleno ano comemorativo do centenário do Carf, o tribunal administrativo fiscal brasileiro, como a evolução do contencioso (especialmente em temas aduaneiros) nos permite compreender em que cenário estamos, e, principalmente, em que direção caminhamos.
Conselho de Contribuintes: a origem
O Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) é o sucessor dos antigos Conselhos de Contribuintes, que remontam ao início século passado, e demarcam o nascimento de um verdadeiro contencioso administrativo tributário e aduaneiro brasileiro [3].
O Decreto 16.580, de 4 de setembro de 1924 [4], que aprovou o regulamento para o serviço de arrecadação do imposto sobre a renda (tributo que havia sido criado pelo artigo 31 da Lei 4.625/1922), estabeleceu, em seu artigo 16, que haveria em cada Estado e no Distrito Federal um Conselho de Contribuintes, nomeado pelo ministro da Fazenda, que seus cinco membros seriam escolhidos entre contribuintes do comércio, indústria, profissões liberais e funcionários públicos, todos de reconhecida idoneidade, nomeados para servir em um exercício financeiro, podendo o Ministro conservá-los nas suas funções por mais de um exercício.
Francisco Tito de Souza Reis, engenheiro e tributarista designado para acompanhar os trabalhos de regulamentação do imposto sobre a renda, criou a estrutura da delegacia geral do Imposto de Renda e foi seu primeiro Diretor. Tamanha era a importância do tema que o Palácio de Festas, erguido em 1922, no Rio de Janeiro (então capital do país) para a Exposição do Centenário da Independência, acabou abrigando a Delegacia Geral do Imposto de Renda e o Conselho de Contribuintes, que teve como primeiro presidente nada menos que José Leopoldo de Bulhões Jardim, defensor do imposto sobre a renda, e que já havia sido Ministro da Fazenda por duas vezes (1902-1906 e 1909-1910).
O vice-presidente era o ex-ministro da Agricultura João Gonçalves Pereira Lima, e completavam o colegiado Severiano de Andrade Cavalcanti, respeitado tributarista, Levi Carneiro, jurista e ensaísta, primeiro presidente da OAB, e o coronel João Luiz dos Santos, que seria relator do primeiro processo analisado pelo Conselho. [5]
Em 14 de setembro de 1925, houve a sessão de instalação do Conselho de Contribuintes do Imposto de Renda no Distrito Federal. Eis o marco inicial para a contagem dos 100 anos.
Depois do nascimento do “Conselho de Contribuintes” do Imposto de Renda, e a pedido dos próprios contribuintes, o Decreto 5.157, de 12 de janeiro de 1927, permitiu a criação de “Conselhos” para analisar e julgar recursos em matéria fiscal — principalmente sobre impostos ao consumo — que passariam a ser compostos de forma paritária, por funcionários da Administração Pública e representantes dos contribuintes/associações comerciais/industriais, sendo a presidência exercida pelo ministro da Fazenda ou por um funcionário da Administração Pública por ele designado.
O “Conselho” referente a impostos sobre o consumo (que também era responsável por classificação tarifária e valoração aduaneira) foi instalado no Rio de Janeiro, em 1931, com doze membros (sendo o primeiro conselho paritário do país). [6]
Conselho Superior de Tarifa: a origem
Pelo Decreto 24.036, de 26 de março de 1934, os referidos “conselhos” foram substituídos pelo: (i) “1o Conselho de Contribuintes”, encarregado de julgar recursos sobre imposto de renda, imposto do selo e imposto sobre vendas mercantis (artigo 160, “a”); (ii) “2o Conselho de Contribuintes”, com competência para julgar recursos referentes ao imposto sobre o consumo e outros impostos, taxas e contribuições internos (artigo 160, “b”); e (iii) o “Conselho Superior de Tarifa”, com competência para julgar recursos referentes à classificação tarifária, valor aduaneiro, contrabando e outras questões decorrentes de leis ou regulamentos aduaneiros (artigo 161).
Essa estrutura tripartida espelhava a “Reforma Aranha” (do Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha – 1931/1934), que dividiu a Direção Geral da Fazenda Nacional em três diretorias, uma responsável pelo imposto de renda, outra que versava sobre rendas internas e uma terceira, que tratava de rendas aduaneiras. [7]
Ao contrário do Conselho de Contribuintes do Imposto de Renda, integrado por nomes célebres do cenário nacional, o Conselho Superior de Tarifa foi, desde sua origem, um órgão mais especializado, constituído por técnicos com alto nível de profissionalização, sobretudo fiscais aduaneiros e representantes do comércio importador. A primeira sessão desse Conselho ocorreu em agosto de 1934, sob presidência de Antônio Eduardo Lenhoff Britto, chefe de seção da Alfândega do Rio de Janeiro. [8]
A partir de 1938, com o acirramento da política protecionista de Vargas, fruto de acordos com o empresariado nacional, elevaram-se as barreiras tarifárias e, por conseguinte, a quantidade de processos aduaneiros e recursos sobre o tema, sendo o Conselho Superior de Tarifa, então com oito membros e quatro suplentes, dividido em duas câmaras: a primeira, comandada pelo presidente do Conselho, para tratar de recursos relacionados à classificação de mercadorias; e a segunda, liderada pelo vice-presidente, para os demais temas. [9]
Em 1964, com a ascensão dos militares ao poder, houve a maior transformação na estrutura dos Conselhos de Contribuintes desde a década de 1930. O segundo Conselho foi desmembrado para criação de um terceiro Conselho, para deliberar, mormente, sobre recursos impetrados contra tributos estaduais e municipais de responsabilidade da União, e os Conselheiros passaram a ser designados pelo ministro da Fazenda. [10]
Contencioso administrativo a partir da década de 1970
A década de 1970 ficou marcada na história dos conselhos de contribuintes não só pela mudança de sua sede para Brasília, mas também pela regulação do processo administrativo fiscal (pelo Decreto 70.235/1972), e pela alteração de nome do “Conselho Superior de Tarifa” para “Quarto Conselho de Contribuintes”, em 1972, e, posteriormente, para “Terceiro Conselho de Contribuintes”, em 1977 (com a absorção do antigo terceiro conselho pelo segundo).
A mesma década foi ainda precursora da participação das mulheres nos Conselhos: em 1971, Wanda Xavier de Lacerda tornou-se a primeira conselheira suplente e, em 1979, Enila Leite de Freitas Chagas, a primeira vice-presidente do Terceiro Conselho. [11]
No final da década, as várias Câmaras presentes em cada Conselho chegavam a divergentes resultados sobre variados temas, demandando solução para a uniformização da jurisprudência, o que culminou, em 1979, na criação de uma Câmara Superior de Recursos Fiscais, cuja missão era julgar recursos motivados por decisões não unânimes das câmaras (se contrárias à lei ou a evidências da prova) e deliberar sobre a decisão de uma câmara cuja interpretação de lei tributária divergisse de outra câmara ou da própria Câmara Superior de Recursos Fiscais. [12]
Dos conselhos ao Carf
Já na nova ordem constitucional de 1988, a Lei 11.941, de 27 de maio de 2009, em seu artigo 49, dispôs que “O Primeiro, o Segundo e o Terceiro Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, bem como a Câmara Superior de Recursos Fiscais, ficam unificados em um órgão, denominado Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com competência para julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos especiais, sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil”.
Apesar de o dispositivo não tratar especificamente de matéria aduaneira, não havia nem sombra de dúvida de que competia ao Carf a apreciação dos temas anteriormente tratados pelo Conselho Superior de Tarifa, depois transformado em quarto, e em terceiro conselho. Em que pese haver substanciais debates doutrinários sobre o tema, a palavra “tributário”, nas normas processuais de ordem legal, a exemplo do Decreto 70.235/1972, nunca teve a pretensão de excluir o universo aduaneiro, embora se apresente às vezes de forma isolada e às vezes ao lado de “e aduaneiro”. [13]
Nesse sentido, seguiram-se diversos Regimentos Internos do Carf (aprovados pelas Portarias MF 256/2009, 343/2015 e 1.634/2023), sempre tratando de matérias aduaneiras, à luz da competência legal do Carf para julgar a “aplicação da legislação referente a tributos”. O próprio acesso à Câmara Superior de Recursos Fiscais sempre foi limitado à comprovação de divergência de interpretação sobre a “legislação tributária”, ainda que para processos com temas aduaneiros.
A estrutura de julgamento de temas aduaneiros está, atualmente, no âmbito da 3ª Seção de Julgamento do Carf, ao lado de outras matérias, relativas a tributos e contribuições sem relação com o comércio exterior. E, recentemente, o Carf passou a ter uma Câmara Especializada em matéria aduaneira, o que registramos como um grande avanço. Mas isso já é assunto para a parte 2 de nossa trilogia!
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[1] SÁNCHEZ, Ildefonso. La aduana: pasado, presente y futuro. In: Estudios Aduaneros. Madrid.: Instituto de Estudios Fiscales, 1974.
[2] ALLENDE, Héctor Hugo Juárez. La Organización Mundial de Aduanas, pasado, presente y futuro. Tirant lo Blanch, 2020. Texto publicado ainda em inglês e francês.
[3] Não é correto considerar que exista um Direito Aduaneiro ou Tributário verdadeiramente brasileiro antes da Proclamação da Independência, embora haja registros de Aduanas e de tributos desde o Século XVI, e não se desconheça que, em 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, ditou-se uma “Carta Régia – de abertura dos portos às nações amigas”, com a disciplina do imposto de importação, complementada por normas sobre outros tributos, como mencionam: TREVISAN, Rosaldo. Direito Aduaneiro e Direito Tributário – Distinções básicas. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex, 2008, p. 25-26; BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. História do Tributo no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 70-73; e COSTA, Alcides Jorge. História do Direito Tributário. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 58-59. Da mesma forma, seria incorreto designar como verdadeiramente brasileiro o contencioso administrativo criado pelo Marquês de Pombal, em Lei de 22 de dezembro de 1761, que tratava de simples aplicação da legislação portuguesa no Brasil, então considerado uma colônia (na época colonial, a maior parte dos tributos não era arrecadada diretamente, mas por intermédio de “contratadores” ou “arrematantes”, e, em geral, as divergências entre esses intermediários e os contribuintes que se tornavam objeto de julgamento pelas provedorias, e, mais tarde, pelas juntas, conforme: MARTINS, Ana Luísa. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais. Rio de Janeiro: Capivara, 2010, p. 41).
[4] Daí haver livro comemorativo de 100 anos do CARF datado de 2024, contando o centenário da data de criação (e não de efetiva instalação) do tribunal administrativo (OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de; PURETZ, Tadeu. Coletânea 100 anos do CARF. São Paulo: NSM, 2024).
[5] MARTINS, Ana Luísa; OLIVEIRA, Francisco Marconi de. CARF – 95 anos: cada vez mais transparente, efetivo e conectado. São Paulo: ALM Comunicação, 2020, p. 28-34.
[6] MARTINS, Ana Luísa. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais. Rio de Janeiro: Capivara, 2010, p. 44.
[7] MARTINS, Ana Luísa. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais. Rio de Janeiro: Capivara, 2010, p. 44.
[8] MARTINS, Ana Luísa. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais. Rio de Janeiro: Capivara, 2010, p. 44.
[9] MARTINS, Ana Luísa. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais. Rio de Janeiro: Capivara, 2010, p. 55-56.
[10] Em protesto à possibilidade de o Ministro da Fazenda nomear conselheiros, houve renúncia coletiva dos representantes dos contribuintes (MARTINS, Ana Luísa; OLIVEIRA, Francisco Marconi de. CARF – 95 anos: cada vez mais transparente, efetivo e conectado. São Paulo: ALM Comunicação, 2020, p. 59-60).
[11] MARTINS, Ana Luísa; OLIVEIRA, Francisco Marconi de. CARF – 95 anos: cada vez mais transparente, efetivo e conectado. São Paulo: ALM Comunicação, 2020, p. 63.
[12] MARTINS, Ana Luísa; OLIVEIRA, Francisco Marconi de. CARF – 95 anos: cada vez mais transparente, efetivo e conectado. São Paulo: ALM Comunicação, 2020, p. 62.
[13] A invisibilidade dos temas aduaneiros, escondidos por detrás da palavra “tributário”, e a evolução paulatina, mas ainda titubeante, por vezes, na distinção entre institutos tributários e aduaneiros não é apanágio brasileiro, e não pode ser atrelada unicamente ao contencioso no âmbito do CARF. Trata-se de tema denso, e que mereceria, por si só, artigos específicos, como: TREVISAN, Rosaldo. Direito Aduaneiro e Direito Tributário – Distinções Básicas. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex, 2008, p. 11-55.
Mini Curriculum
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).
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