A utilização do seguro garantia nas execuções fiscais

Luísa Carneiro

O processo de execução é o instrumento do qual pode valer o credor para recorrer ao Estado-juiz, objetivando forçar o devedor a cumprir uma obrigação a ele imposta e não adimplida espontaneamente. Tal processo está disciplinado pelo Livro II do Código de Processo Civil (CPC), nos artigos 566 e seguintes.

A execução fiscal, por sua vez, é uma das espécies de execução de título extrajudicial presentes no ordenamento jurídico brasileiro. Essa modalidade processual permite que a União, os Estados, Distrito Federal, Municípios e suas Autarquias recorram ao poder judiciário para forçar o devedor a cumprir sua obrigação de pagar quantia certa, representada pela certidão de dívida ativa. Sua disciplina ocorre por diploma legislativo peculiar, a Lei nº 6.830/80 (Lei das Execuções Fiscais – LEF), e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, naquilo que compatível com as regras gerais dos demais modelos executivos (art. 1º de lei nº 6.830/80).

Uma vez ocorrida a citação, na execução fiscal, o devedor possui o prazo de cinco dias para pagar o débito exequendo ou garanti-lo. Ressalte-se a importância da garantia do juízo a todos os envolvidos no processo executivo, uma vez que assegura a satisfação do crédito, com a constrição de bens do devedor, e possibilita a este a sua defesa, por meio da oposição de embargos à execução (artigo 16, §1º da LEF). Ademais, reconhecendo a certeza da realização do crédito propiciada pela garantia, o legislador concede ao devedor o direito à obtenção de certidão positiva de débitos com efeitos de negativa, nos termos do art. 206 do Código Tributário Nacional, documento imprescindível para as pessoas físicas e jurídicas na obtenção de créditos junto a instituições financeiras, contratações com o poder público, participação em licitações, recebimento de benefícios fiscais, dentre outros.

Nesse contexto, o presente artigo tem como objeto a análise do seguro garantia como instrumento apto a caucionar o juízo nas ações executórias da dívida ativa da União, Estados, Municípios, Distrito Federal e suas autarquias, tendo em vista as alterações legislativas a respeito do tema implementadas nos últimos anos.

O seguro garantia é um negócio jurídico no qual um tomador contrata um segurador para que este assegure, a um terceiro, o adimplemento de uma obrigação. Trata-se de modalidade de garantia fidejussória em favor de terceiros. O instrumento é regulamentado pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), sendo que, atualmente, sua disciplina se encontra na Circular nº 477/2013 dessa autarquia.

O mencionado diploma regulamentar explicita que a aplicação do seguro garantia se dá em dois ramos: público e privado. No âmbito privado, ele visa garantir o cumprimento de obrigações assumidas pelo tomador em contratos resultantes de negócios jurídicos de natureza privada, enquanto no setor público, objetiva garantir o cumprimento de obrigações decorrentes de participações em licitações, em contratos de obras, serviços, compras, concessões ou permissões no âmbito dos Poderes da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou, ainda, as obrigações assumidas em função de processos administrativos, judiciais e parcelamentos administrativos de créditos fiscais, inscritos ou não em dívida ativa.

Nos processos judiciais, a utilização dessa modalidade de garantia se difundiu em meados de 2003, a partir da edição da circular da SUSEP nº 232, de 3 de junho de 2003, que regulamentou o chamado “seguro garantia judicial”. Tal utilização se expandiu nos campos cíveis, administrativos, trabalhistas e, também, tributários, como uma alternativa ao encarecimento da fiança bancária, por esta ser considerada operação de crédito que atinge o limite operacional dos bancos, em um contexto de crescente aumento do controle dos riscos do sistema financeiro global.

Não obstante a prática crescente de utilização do seguro garantia judicial desde 2003, a possibilidade de apresentação deste nas ações de execução somente foi expressamente introduzida no Código de Processo Civil pela Lei nº 11.382/2006, que incluiu o §2o ao art. 656 do diploma processual, determinando que “A penhora pode ser substituída por fiança bancária ou seguro garantia judicial, em valor não inferior ao do débito constante da inicial, mais 30% (trinta por cento)”.

Dessa forma, nos processos de execução disciplinados pelo Código de Processo Civil ficou, indiscutivelmente, facultado ao executado oferecer, em caução, o seguro garantia judicial, bem como substituir a penhora já existente por essa modalidade, desde que o valor do seguro seja superior ao débito em 30% e que o seguro esteja dentro dos requisitos previstos pela legislação regulamentar aplicável ao instituto.

Já no âmbito das execuções fiscais, cabe a análise do artigo 9º da Lei nº 6.830/1980 (LEF), que elenca as possibilidades de garantias válidas para esse tipo de processo. Antes do advento da Lei nº 13.043/2014, a LEF citava, no referido dispositivo, o depósito em dinheiro, a fiança bancária e a nomeação de bens à penhora como aptos a garantir o juízo, mas era silente com relação à modalidade de seguro garantia, razão pela qual muita dúvida surgiu quanto à viabilidade de sua utilização.

Diante dessa controvérsia, o posicionamento majoritário do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi no sentido de que, sendo a Lei de Execuções Fiscais lei especial, deve prevalecer sobre o CPC no regramento do processo executivo fiscal, não havendo que se falar na aceitação dessa modalidade de garantia:

“TRIBUTÁRIO – CAUÇÃO – SEGURO-GARANTIA JUDICIAL – FALTA DE PREVISÃO NA LEI DE EXECUÇÕES FISCAIS – INADMISSIBILIDADE.

1. Por ausência de previsão na Lei de Execuções Fiscais, a jurisprudência desta Corte não admite o seguro-garantia judicial como modalidade de caução da execução fiscal.

2. Recurso especial provido.”

(Superior Tribunal de Justiça. REsp 1215750 / RS – Relator(a): Ministra ELIANA CALMON; Julgamento: 14/05/2013; Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA; DJe 20/05/2013).

Todavia, os defensores da aplicabilidade do seguro garantia às execuções fiscais, levavam em consideração a interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, bem como de dois princípios norteadores do processo executivo: o princípio da máxima utilidade da execução e o princípio da menor onerosidade ao executado.

O primeiro prevê o direito de o exequente ter o seu crédito satisfeito pelo patrimônio do devedor, de modo a atingir o resultado mais próximo que se teria se não tivesse havido a transgressão de seu direito. Já o segundo, previsto expressamente no artigo 620 do Código de Processo Civil, preza o direito de o devedor ser o menos onerado possível com a execução que recairá sobre o seu patrimônio.

Impende salientar que as etapas que compõem o processo executivo não podem ser consideradas isoladamente, como um fim em si mesmo. Não se pode esquecer que os atos de constrição, em uma execução, devem sempre buscar o direito material protegido por essa via processual: a satisfação do credor.

O seguro garantia possui a aptidão para produzir os mesmos efeitos jurídicos da fiança bancária (satisfação do crédito exequendo). No que se refere à liquidez, ambos muito se assemelham ao dinheiro, uma vez que, assim que acionadas pelo Juízo, as instituições garantidoras pagarão o valor acordado. Tais instrumentos de garantia, em verdade, possuem liquidez extremamente superior a de bens passíveis de serem ofertados à penhora, que estão sujeitos à depreciação e, não raro, são arrematados por valor muito inferior ao mercado.

Logo, em sendo o CPC aplicado subsidiariamente às Execuções Fiscais naquilo em que compatível (o que é o caso), desde o advento da Lei nº 11.382/2006 já afirmamos que o Seguro Garantia Judicial é instrumento hábil a garantir o cumprimento das obrigações em execuções fiscais (ao contrário do decidido pelo STJ). A recusa do seguro garantia nessas hipóteses era prática que em nada beneficiava o credor e penalizava, e muito, o devedor, indo exatamente na contramão dos princípios aplicáveis ao processo executivo (menor onerosidade ao executado conjugado com a máxima utilidade da execução).

Diante dessa situação, a própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), desde 2009, já reconhece que  o seguro garantia é instrumento hábil para garantir débitos inscritos em dívida ativa da União, tanto em processos judiciais, quanto em parcelamentos administrativos, regulamentando, pela Portaria nº 1.153/2009 os requisitos necessários para aceitação da apólice nesses casos. Em 2014, tais requisitos sofreram alteração, com a edição da Portaria nº 164 do mesmo órgão, atualmente em vigor.

Levando em consideração a evolução interpretativa e as vantagens da utilização dessa forma de garantia às execuções fiscais, sobreveio, em 14 de novembro de 2014, a Lei nº 13.043 que, dentre outras inovações, alterou a Lei de Execuções Fiscais para incluir, expressamente, o seguro garantia no rol do mencionado art. 9º, resultando na seguinte redação:

Art. 9º – Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá (…)

II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;”

Destarte, não obstante nosso entendimento de que o art. 656, §2º do CPC já era aplicável, subsidiariamente, às execuções fiscais, a alteração da LEF veio a colocar uma pá de cal na polêmica, deixando clara a possibilidade de oferecimento do seguro garantia nesses feitos.

Imperioso destacar que, tendo o legislador, na redação do dispositivo supra, equiparado o seguro garantia à fiança bancária, considera-se plenamente viável a substituição da fiança já apresentada em processo de execução pelo seguro garantia (tendo em vista que o custo de manutenção deste último é normalmente inferior).

Outra dúvida que gravita sobre o assunto em debate refere-se aos requisitos que devem se fazer presentes no instrumento do seguro garantia para sua aceitação pelo Juízo e pelos credores. Isso porque o Código de Processo Civil prescreve que o seguro garantia deve ser feito em valor 30% superior ao débito, enquanto a Lei de Execuções Fiscais nada dispôs a respeito.

No âmbito federal, como dito, há regulamentação da matéria pela já citada Portaria PGFN nº 164/2014, que, simplificou a documentação a ser apresentada no ato de oferecimento do seguro e suprimiu o acréscimo de 30%, mostrando-se suficiente a previsão de atualização monetária permanente do valor da apólice, de forma a acompanhar a atualização do débito garantido.

Nas esferas estaduais e municipais, contudo, não há regulamentações específicas quanto aos requisitos da apólice do seguro garantia, o que gera insegurança nos executados no momento de sua contratação.  De qualquer forma, como a LEF, ao regulamentar especificamente a matéria, não trouxe a necessidade do acréscimo de 30%, é possível interpretar que vigora a regra geral de que a garantia deve ser suficiente a cobrir o exato valor da dívida. Ademais, tal exigência também estaria na contramão dos princípios da máxima utilidade da execução combinado com a menor onerosidade ao executado.

Portanto, em vista das recentes alterações promovidas pela Lei nº 13.043/2014, estando o seguro garantia em consonância com as regulamentações da SUSEP (no caso, Circular nº 477/2013), e estando o executado atento às regras atinentes ao processo executivo fiscal, impõe-se o dever de aceitação do seguro garantia nos feitos envolvendo a cobrança da dívida ativa da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

 

Luísa Carneiro

Advogada
Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP
Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito de Empresa pela PUC/MG

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