A Guerra Contra o JCP e Seu Novo Capítulo: Reinterpretações Infralegais e Erosão da Base

Por Fernando Dubeux Mattos

04/12/2025 3:39 pm

1. Contexto normativo da recente alteração e a finalidade econômica original do JCP.

A Instrução Normativa RFB nº 2.296/2025 alterou a base de cálculo dos Juros sobre o Capital Próprio (JCP) previstos no art. 75 da IN nº 1.700. O ponto crítico está na mudança do conceito de “lucros acumulados”, que sempre foi entendido, inclusive pela própria RFB no texto anterior da IN, como o lucro apurado no decorrer do exercício, antes da destinação societária.

Com a nova redação, só poderão integrar a base do JCP os lucros do exercício anterior, incorporados ao patrimônio líquido após o encerramento do período. Isso é uma virada de 180º no entendimento vigente e cria uma defasagem artificial: os lucros “de hoje” deixam de ser patrimônio líquido para fins de JCP, enquanto os “de ontem” continuam sendo. Não há justificativa técnico-contábil, apenas efeito fiscal.

Essa mudança não está prevista na Lei 9.249/95 nem na Lei 6.404/76. É uma restrição infralegal, com impacto direto na dedutibilidade para IRPJ e CSLL. Na prática, trata-se de aumento indireto de carga, via erosão da base, e não por alteração de alíquota.

O JCP nasceu para equilibrar a tributação entre capital próprio e de terceiros. Hoje, vem sendo delapidado por atos normativos sucessivos, cada um reduzindo um pouco mais sua eficácia. Se a política pública for extinguir o instituto, que seja por lei e debate transparente, não por reinterpretações que distorcem conceitos contábeis consolidados.
Pode-se discordar do JCP por razões econômicas, mas é inegável: esse tipo de mudança reduz segurança jurídica, amplia litigiosidade e compromete a coerência entre direito societário, contabilidade e tributação.

Para compreender a gravidade das mudanças recentes, é preciso retomar a razão de existir do JCP quando foi criado pela Lei nº 9.249/1995. À época, o Brasil enfrentava um cenário de forte dependência do financiamento por dívida, com grande assimetria entre capital próprio e capital de terceiros. A remuneração do sócio por meio de dividendos era não dedutível, enquanto a remuneração do credor (juros bancários) o era. O resultado era um incentivo fiscal perverso ao endividamento, contrariando princípios básicos de solidez empresarial e aumentando risco sistêmico.

O JCP foi concebido exatamente para neutralizar essa distorção: permitir a dedução dos juros presumidos sobre o capital próprio, aproximando o tratamento tributário do equity ao do debt, e incentivando as empresas a capitalizarem-se. A lógica original era simples: capital próprio não é “gratuito”, tem custo de oportunidade. A remuneração pelos JCP reflete esse custo, de forma transparente, calculada sobre contas reais do patrimônio líquido.

Mais do que um benefício fiscal isolado, o JCP é um instrumento de política pública que visa a capitalização empresarial, redução da alavancagem estrutural e incentivo ao investimento produtivo interno. Ao longo do tempo, consolidou-se como uma ferramenta eficiente de planejamento legítimo, reconhecida pela doutrina societária e tributária.
É justamente essa finalidade, histórica e econômica que vem sendo desmontada pela erosão fragmentada da base de cálculo.

2. Da Fragmentação normativa, erosão da base e efeitos tributários indiretos

A mudança no conceito de “lucros acumulados” não é um ponto isolado. Nos últimos anos, a Receita Federal tem promovido uma série de alterações que, somadas, resultam em forte redução da eficácia do JCP como mecanismo de neutralidade.

Outro recente movimento relevante veio com a exclusão da reserva de incentivos fiscais da base de cálculo dos JCP. O passo seguinte foi ainda mais agressivo: após excluir a reserva de incentivos fiscais, a própria RFB passou a afirmar que quando essa mesma reserva é capitalizada, passando a compor o capital social, também não poderia integrar a base de cálculo do JCP. Ou seja, o valor deixa de compor a base como reserva e continua excluído mesmo depois de incorporado ao capital o que representa verdadeira dupla penalização. Nesse ponto, supera-se o argumento da proteção de recursos públicos e chega-se ao cerne da erosão: redução da base por reconstrução conceitual, mesmo quando os valores já perderam sua característica original.

Essa lógica representa uma ruptura com a concepção legal do patrimônio líquido e sua composição nos termos da Lei das S.A. A reserva deixa de existir, passa a integrar o capital, mas continua “contaminada” para fins de JCP, como se fosse uma espécie de “memória fiscal” retroativa. Nenhum fundamento societário sustenta essa interpretação.
Dentro desse contexto de restrições sucessivas, a IN RFB nº 2.296/2025 representa o movimento mais explícito de reinterpretação 180 graus de um conceito contábil consolidado. A norma anterior reconhecia que, ao longo do exercício, a conta de “lucros acumulados” reflete o resultado já apurado, ainda que pendente de destinação.
A nova norma muda essa lógica e introduz uma distinção temporal inexistente em lei:

lucro do exercício: não integra a base do JCP;
lucro do exercício anterior: integra.

O efeito prático é simples: redução imediata, automática e crescente da base de cálculo do JCP. E não há argumento técnico que sustente a ideia de que apenas após o encerramento formal do exercício o lucro passa a integrar o patrimônio líquido: essa interpretação contraria a própria lógica da contabilidade societária.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, o problema central é a forma: não houve alteração de lei. A Lei nº 9.249/95 continua autorizando a dedução dos juros calculados sobre as contas do patrimônio líquido. A Lei nº 6.404/76 continua definindo que o lucro líquido do exercício compõe o patrimônio da sociedade.
O aumento da tributação se dá por via infralegal, alterando definições contábeis e criando restrições que não constam em lei. Trata-se de aumento indireto de carga tributária, via erosão de base.

3. Conclusão

O JCP não está sendo extinto, está sendo desconstruído. Não por revogação legislativa, mas por sucessivas interpretações administrativas que restringem sua base até o ponto de torná-lo irrelevante. Se existe convicção técnica ou política de que o JCP deve deixar de existir, o caminho adequado é a lei, com debate transparente sobre impactos, custos e benefícios. A via infralegal, silenciosa e fragmentada, apenas aumenta a insegurança jurídica, a litigiosidade e compromete princípios estruturantes da tributação da renda no Brasil.

Pode-se discutir o JCP sob várias perspectivas: estímulos econômicos, justiça fiscal, impacto arrecadatório. Mas o que não se pode ignorar é que a guerra contra o JCP vem sendo travada por via regulatória, alterando conceitos contábeis consolidados e enfraquecendo um instrumento que, no passado, representou uma resposta sofisticada a um problema real do sistema tributário brasileiro.

Fonte: Rota da Jurisprudência – APET

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Bacharel em Ciências Contábeis (CRC n° PE030317), especialista em Perícia e Contabilidade Tributária. Consultor e auditor tributário com mais de 15 anos de experiência profissional. Professor na APET e coautor de livros sobre PIS, COFINS e IRPJ/CSLL.

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