A essencialidade como critério para aplicação da seletividade nos tributos indiretos
Rafael Vega Possebon da Silva
RESUMO
Os princípios da seletividade e da essencialidade, ainda que se apliquem conjuntamente, se referem a institutos muito diferentes. O primeiro consiste em técnica de gradação do ônus fiscal em tributos indiretos, e o segundo é o critério que permitirá esta discriminação. A partir de então, cabe análise dos valores constitucionais e princípios relacionados à essencialidade para aferir seu conteúdo e alcance, em confronto com os conceitos de extrafiscalidade e de capacidade contributiva.
Palavras-chave:
Seletividade, essencialidade, capacidade contributiva, extrafiscalidade.
INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo é investigar o conteúdo da norma constitucional que aponta um critério de gradação do ônus tributário no IPI e ICMS segundo a essencialidade dos produtos, mercadorias ou serviços tributados.
O esclarecimento desta norma nos parece ser de grande relevância para orientar a atividade legislativa e verificar sua conformidade com os preceitos constitucionais que justificam a imposição fiscal e delimitam a competência constitucional destes impostos.
A despeito do grande esforço conduzido por grandes estudiosos do tema, os entes políticos ainda insistem em não conferir plena efetividade a este verdadeiro princípio constitucional, sendo comum vermos a oneração excessiva de itens de consumo elementares, como se uma suposta flexibilidade do termo constitucional pudesse impedir a construção de um conteúdo normativo mínimo.
Para tanto, partiremos das disposições constitucionais para identificarmos a finalidade deste critério e sua forma de aplicação. Em seguida, juntamente com a análise da doutrina, pretendemos delinear com alguma objetividade o conceito de bem ou serviço essencial. E, ao final, analisaremos a aparente dicotomia entre essencialidade e extrafiscalidade.
ESSENCIALIDADE OU SELETIVIDADE? – A ESSENCIALIDADE COMO CRITÉRIO INFORMADOR (CONTEÚDO) DA SELETIVIDADE.
De início, nos cabe esclarecer alguns aspectos dos termos linguísticos ora relacionados, de modo a permitir uma compreensão mais correta do tema, segundo nossa concepção. Isto porque, é comum que a doutrina trate de ambos os termos de forma conjunta, ora se referindo ao princípio da seletividade, ora ao princípio da essencialidade.
Contudo, para a presente análise se faz importante distinguir e delinear cada um destes conceitos. Notadamente, os termos “seletividade” e “essencialidade” não são sinônimos, e revelam significados não só diferentes, como complementares.
Inicialmente, vemos que ambos são trazidos pela Constituição Federal, quando aponta que o Imposto sobre Produtos Industrializados (“IPI”) “será seletivo, em função da essencialidade do produto” (art. 153, §3º, I). Disposição equivalente é apontada ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (“ICMS”), que “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. A questão da facultatividade da seletividade na instituição do ICMS, contudo, não será objeto de análise neste artigo.
Assim, a norma de competência constitucional aponta para que estes dois impostos sejam seletivos em função da essencialidade do objeto da tributação – operações com produtos industrializados (no IPI) ou operações com mercadorias e serviços (no ICMS). Isto é, estes dois conceitos (seletividade e essencialidade) não estão isolados, mas são aplicados conjuntamente – os impostos em tela deverão ser seletivos, em função da essencialidade do que visam tributar.
Com relação à seletividade, podemos extrair que se trata de um comando constitucional em torno da gradação do ônus fiscal destes tributos, tendo como parâmetro a espécie de produto ou serviço que se está tributando. A gradação da carga impositiva pode se dar por diversas formas, como mediante alíquotas diferenciadas ou redução de base de cálculo. Contudo, para fins deste artigo tratemos apenas da gradação das alíquotas, modalidade mais flexível e mais empregada, de modo a simplificar a linguagem, embora as conclusões alcançadas se apliquem, mutatis mutandis, às demais formas de desoneração.
A seletividade, logo, surge como técnica de diferenciação de alíquotas que considera, como critério para sua variação, o tipo do objeto onerado. Em oposição, podemos citar a progressividade, que determina uma variação das alíquotas do Imposto de Renda de acordo com a base de cálculo da materialidade onerada.
Contudo, arriscamos dizer que a seletividade, sozinha, não é princípio que traz valor intrínseco a orientar a tributação em torno da oneração de um ou outro tipo de mercadoria, por exemplo. Constituindo mera técnica de discriminação, a seletividade implica em dizer que o IPI e o ICMS não poderão ter suas alíquotas alteradas em função do valor do bem tributado (base de cálculo), ou mesmo em razão da origem geográfica do objeto da tributação. A seletividade apenas pontifica que dois produtos podem ter alíquotas diferentes em razão de sua natureza ou finalidade, mas não aponta em que sentido se dará esta disparidade (por exemplo, segundo a seletividade, jóias e alimentos podem ter alíquotas diferentes, mas a seletividade não aponta qual deve ser mais onerado).
Neste ponto, surge a essencialidade como critério informador da seletividade.
Sendo a seletividade uma mera técnica de discriminação, a aplicação isolada da seletividade, tal como o próprio princípio da igualdade, não é possível, demandando um critério para sua efetividade.
Segundo nos ensina Bandeira de Melo, a igualdade aristotélica de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais demanda, para sua aplicação, de um critério de diferenciação (igualdade em relação à que?). Ademais, no âmbito jurídico, este critério deve se apoiar, ou ter relação de pertinência, com a própria finalidade da discriminação que se está fazendo. Logo, a igualdade só é aplicada de forma válida segundo um critério coerente, em relação a uma finalidade constitucionalmente legitimada. De igual sorte ocorre com a seletividade, espécie de aplicação da igualdade para a tributação de diferentes produtos e serviços.
Portanto, quando da diferenciação de alíquotas em função de produto ou serviço objeto da tributação (seletividade), deverá ser aplicado um critério de seleção – critério este que consiste justamente na essencialidade.
A essencialidade, por sua vez, deverá ser examinada para apurarmos se mantém relação de pertinência com aquilo que se pretende diferenciar, e se está apoiada em uma finalidade constitucionalmente legitimada, sob pena de o critério ser inconstitucional – ofendendo, inclusive, a igualdade, conceito elementar por trás desta análise.
ESSENCIALIDADE COMO MÉTODO DE AFERIÇÃO INDIRETA DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Entendemos que a essencialidade, em conjunto com a seletividade, é o método mais apropriado de gradação das alíquotas, em se tratando de tributos indiretos, porque, justamente, permite atingir, nesta modalidade de tributos, algo próximo da capacidade contributiva do sujeito que arca com o ônus fiscal. Esta construção, que de início parece estar recheada de conceitos extrajurídicos e inadequados à exegese normativa, nos parece plenamente justificada.
Primeiramente, a distinção entre tributos diretos e indiretos soa como extrajurídica porque, de fato, tem origem na ciência econômica e não decorre diretamente da norma jurídica, mas das consequências que resultam de sua aplicação. O conceito seria de que, nos tributos diretos, o contribuinte obrigado pela norma é quem arca realmente com o ônus fiscal (comum a tributos sobre a renda e patrimônio), ao passo que os tributos indiretos seriam aqueles que, cobrados no bojo de uma relação econômica entre dois sujeitos, o contribuinte que recolhe o tributo apenas incrementa o valor do mesmo à transação, de modo que o real onerado pelo gravame passa a ser o terceiro, contribuinte “de fato”, que arca com o custo da transação na qual se inclui o custo do tributo (figura comum aos tributos sobre o consumo, eis que é o consumidor final quem arcará com a tributação incidente sobre a cadeia de produção).
Certamente, a legislação não trata desta distinção entre contribuintes “de fato” e “de direito”, mas os resultados da aplicação da norma, ainda que não possam justificar uma construção distorcida dos comandos normativos, não podem ser totalmente ignorados pelo processo hermenêutico. E, de fato, a legislação parece, sim, orientar-se de acordo com estes critérios, especialmente quando a norma constitucional que delimita a competência destes tributos insere um comando de “justiça fiscal” para sua aplicação.
É que a igualdade é princípio basilar do direito tributário. E a tributação, como expressão de realidade econômica, não poderia deixar de tomar como critério de comparação a capacidade contributiva, considerando os valores constitucionais em torno da igualdade material e erradicação da pobreza, por exemplo (artigos 1º, III, 3º, I e III, 6º, entre outros). E, por isso, a capacidade contributiva deve nortear a repartição mais equânime possível do ônus tributário, de modo que o esforço fiscal seja equivalente entre os cidadãos (o que leva à conclusão de tributação mais gravosa sobre aqueles que têm mais poder econômico, e assim por diante).
Por sua vez, a capacidade contributiva se aplica “sempre que possível” (art. 145, §1 da Constituição Federal), o que pode indicar uma conclusão de que este princípio apenas se revela útil aos tributos chamados “diretos”, ou nos quais é possível aferir com mais certeza a riqueza de quem realiza o fato tributado. Nos tributos chamados indiretos, pelo contrário, seria impossível aferir a capacidade contributiva de quem consome determinado bem. Um maço de cigarros, por exemplo, pode ser adquirido por um trabalhador humilde ou por um rico empresário. Esta é a razão de boa parte da doutrina entender que a capacidade contributiva não se aplica aos tributos indiretos, em que simplesmente a base de cálculo não tem relação direta com o poder econômico do contribuinte.
Contudo, entendemos que, ainda que seja evidente a dificuldade de um tributo sobre uma operação de consumo conseguir aferir a capacidade econômica deste consumidor, a essencialidade nasce como tentativa de atingir, na medida do possível, a repartição equânime do encargo fiscal entre ricos e pobres. Este é, justamente, o conceito da capacidade contributiva, que nada mais é do que, repita-se, a aplicação da igualdade no âmbito tributário, à luz da orientação valorativa da Constituição Federal de 1988.
Em verdade, qualquer tributo sobre o consumo tende a ser regressivo – ou seja, tende a tributar proporcionalmente mais aqueles com menor renda disponível. E isto simplesmente porque um indivíduo com menos renda tende a usar uma parcela maior de seus ganhos no consumo, ao passo que, por mais voluptuário que sejam os gastos de um indivíduo de alta renda, em geral, há uma parcela maior desta renda que não é consumida, e sim destinada a poupança e investimentos. Por mais esta razão, a gradação das alíquotas para a menor onerosidade de itens essenciais tem uma função de contrapor ou ao menos amenizar, na medida do possível, esta regressividade.
Desta forma, certamente não será apurada a renda do consumidor na gradação das alíquotas sobre o consumo de bens e serviços. Mas a distribuição do encargo fiscal em razão da essencialidade dos bens e serviços tributados visará, tanto quanto possível, desonerar os itens mais consumidos pelas pessoas de baixa renda, ou itens mais essenciais à vida e à saúde, por exemplo, e onerar mais os produtos voluptuários. A essencialidade resulta em tentativa de dosar, quanto possível, a carga tributária de acordo com a riqueza de quem arca com seu ônus – ou seja, em última análise, de dosar a tributação de acordo com a capacidade contributiva do consumidor.
Neste exato sentido, cabem citar algumas posições de relevo:
[…] por trás destas ideias [seletividade e essencialidade] está presente, em última análise, o princípio da capacidade contributiva, pelo qual quem, em termos econômicos, tem mais, há de ser tributariamente mais onerado, do que quem tem menos (BOTALLO, Eduardo Domingos. IPI – Princípios e Estrutura. 1ª ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 57. No mesmo sentido, CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 459)
[…] muito embora se tenha entendido que a CF determina que o IPI seja seletivo em função da essencialidade dos produtos (art. 153, §3º, I), realizando, de certo modo, o princípio da capacidade contributiva. Na verdade, existem certos produtos cujo consumo constitui verdadeira demonstração de capacidade contributiva (MELO, José Eduardo Soares de. IPI – Teoria e Prática. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 162)
De outra sorte, há aqueles que entendem que a capacidade contributiva é de impossível aplicação aos tributos sobre o consumo, dada a dificuldade de mensuração desta característica em cada consumidor. Contudo, data vênia, esta posição acaba por fundamentar a essencialidade como outra espécie de manifestação da igualdade no âmbito da distribuição do ônus fiscal (diferente da capacidade contributiva). Parece-nos, isso sim, que esta noção equivale, justamente, à busca pela própria capacidade contributiva, ainda que de forma indireta.
O que se pretende apontar é que a essencialidade, basicamente, é critério de gradação de alíquotas que se apoia nas mesmas bases da capacidade contributiva, mantendo exatamente a mesma justificativa axiológica legitimadora.
Desta feita, temos que a essencialidade justificará uma distinção de alíquotas sempre que a finalidade desta discriminação seja a busca, ainda que indireta, de gradação do ônus segundo a capacidade contributiva do consumidor. Ou ainda, será justificada a diferenciação segundo o critério da essencialidade sempre que esta visar à desoneração dos itens mais adquiridos pelos consumidores de baixa renda, ou dos itens que, por sua natureza, ninguém pode prescindir. É a definição da qual se tratará a seguir
O QUE É ESSENCIAL? CONCEITO DE ACORDO COM A DOUTRINA
Segundo definido pela doutrina, o conceito de bem ou serviço essencial, para fins de aplicação da essencialidade, ou para fins de aplicação de alíquota menos gravosa, se alinha completamente com o quanto definido no tópico anterior.
Uma primeira concepção, que se afere da interpretação literal, é que a essencialidade se refere aos produtos ou serviços que sejam essenciais, elementares, básicos. Essencial seriam os bens ou serviços de primeira necessidade, em oposição aos voluptuários, luxuosos.
Outra perspectiva, e que inclusive corrobora nossa aproximação entre a capacidade contributiva e os tributos indiretos, é aquela que impõe alíquota reduzida, com fulcro na essencialidade, para todos aqueles produtos ou serviços dos quais não se possa prescindir, ou seja, daqueles que são de tal forma elementares para a vida e para a saúde do cidadão que o indivíduo não exerça nenhum poder de escolha sobre seu consumo. Assim, considerando que não há exercício de vontade, mas de necessidade, o consumo de tais itens não seria revelador de nenhuma capacidade contributiva.
É o caso, por exemplo, de gêneros alimentares básicos, como o arroz e o pão, e de itens médicos como remédios, cadeira de rodas, etc. Certamente, a aquisição de uma cadeira de rodas, por exemplo, revelaria alguma capacidade econômica, mas nunca capacidade contributiva, eis que este consumo não demostra disposição de riqueza, mas resulta de uma necessidade elementar por parte de um indivíduo deficiente – seja ele rico ou pobre.
Seguindo similar linha de pensamento, também se pode definir bens ou serviços essenciais como aqueles minimamente necessários para que se atinja um mínimo vital de consumo, de modo a se alcançar a dignidade da pessoa humana. Claro que o mínimo necessário para uma vida digna é determinado pelo contexto socioeconômico em determinada sociedade, mas a definição ajuda-nos a reforçar a orientação por trás do próprio conceito de essencialidade.
Por fim, interessante que, em que pese a essencialidade ser fundamentada na menor onerosidade para os consumidores de baixa renda, poucas definições tentam aproximar este conceito de essencial com aquilo que é realmente consumido pelos mais pobres. Evidentemente, esta parte da população gasta parcela maior para conseguir adquirir itens elementares, como os alimentos da cesta básica. Contudo, não é menos verdade que hoje as classes menos favorecidas consomem também comunicação por celular (especialmente na modalidade “pré-paga”), gastam mais com transporte público, etc. Uma avaliação empírica do que efetivamente é consumido pelas classes mais pobres poderia orientar a essencialidade com mais fidelidade ao seu fundamento constitucional, mais do que se apoiar em definições da doutrina (muitas vezes distantes da pobreza) do que se entenderia como adequado para os menos favorecidos, financeiramente.
Assim, entendemos que uma essencialidade, agora revelada como meio de gradação do tributo indireto em torno da capacidade contributiva, deve considerar igualmente esta análise empírica, de modo a orientar a tributação para, realmente, promover uma distribuição equânime do ônus fiscal entre as diferentes classes econômicas.
Outra característica interessante ao chamado produto “essencial” é que esta comparação deverá ser feita em relação à finalidade do bem ou serviço para o consumidor final. Isto é, produto essencial é aquele que é essencial “tomando-se como parâmetro o consumo popular”. Se assim não fosse, evidente que seria essencial qualquer insumo para a respectiva atividade econômica – tal como é o querosene para a aviação comercial, etc.
De qualquer forma, a essencialidade consiste num critério para gradação do encargo fiscal, que se lastreia em um conceito daquilo que se entende por essencial. Mas longe de analisarmos um conflito em torno de diferentes concepções de produto ou serviço essencial, entendemos que, embora seja conceito aferível de diversas formas, não se pode negar a existência de um conteúdo mínimo, aferível da própria norma constitucional, e cuja violação poderá ser, obviamente, tutelada pelo Poder Judiciário.
Contudo, quando o critério orientador da gradação das alíquotas foge à busca, ainda que indireta, da capacidade contributiva, entendemos que se perde a legitimidade apoiada na essencialidade, devendo o intérprete encontrar outro fundamento constitucional, para que a diferenciação seja justificável no ordenamento jurídico.
ESSENCIALIDADE X EXTRAFISCALIDADE
Ao se tratar da essencialidade, ou seletividade em função da essencialidade, é comum vermos alusões à extrafiscalidade, de modo que a essencialidade seria uma forma ou espécie do gênero extrafiscalidade. Data máxima vênia, não nos parece ser o caso.
Como vimos, a essencialidade busca simplesmente atenuar a regressividade que acompanha os tributos indiretos, de modo que se busque respeitar, mínima e indiretamente, a capacidade contributiva.
Por outro lado, a extrafiscalidade é o reflexo dos tributos na formação da vontade dos agentes privados. Algumas figuras tributárias são usadas, inclusive, deliberadamente neste sentido, de modo a orientar a conduta dos contribuintes em torno de algum princípio ou valor constitucionalmente designado. Assim, ora se tributa mais gravosamente algo que se pretende desincentivar, ora se alivia o ônus fiscal da conduta que se deseja fomentar, sendo o critério seletor de condutas um valor constitucionalmente protegido.
Este critério, na esteira do que mencionamos acima, será o que permitirá a diferenciação de condutas, e deverá ter relação de pertinência com algum valor positivado e perseguido pelo sistema normativo. Se, por exemplo, no Imposto sobre Propriedade Rural (“ITR”), o fim perseguido é a produtividade rural, o critério será a produtividade da terra, e o resultado será a menor tributação do imóvel produtivo e a maior cobrança sobre o imóvel improdutivo.
Assim, a extrafiscalidade age para induzir comportamentos, ou alterar condutas em determinado sentido, o que se permite a despeito da capacidade contributiva (e não em razão dela). Permite-se que a capacidade contributiva seja flexibilizada (ou desconsiderada) em prol do uso de outro critério que não a riqueza do contribuinte. No nosso exemplo do ITR, não se considera se o proprietário de uma determinada fazenda tem mais ou menos riqueza, mas se o imóvel é mais ou menos produtivo.
Em outras palavras, a extrafiscalidade visa alterar comportamentos, e não repartir o ônus fiscal de modo equânime, considerada determinada situação do contribuinte.
Desta forma, não nos parece que a essencialidade seja subespécie do gênero extrafiscalidade, mas que se tratam de dois institutos diferentes, que visam orientar a gradação do ônus fiscal de acordo com critérios determinados, cada um visando finalidades diversas.
Enquanto a extrafiscalidade tenta alterar condutas dos particulares, a essencialidade não visa orientar conduta alguma; enquanto a essencialidade busca dividir de modo equânime o encargo fiscal de acordo com uma aferição indireta da capacidade contributiva, a extrafiscalidade age a despeito da capacidade contributiva, e visando atender outros valores apontados no texto constitucional.
Em sentido semelhante, o recente trabalho de Fábio Canazaro conclui:
A melhor conclusão está com aqueles que desvinculam a essencialidade da extrafiscalidade. A extrafiscalidade não é forma de manifestação (ou meio de concretização) da essencialidade. (…) O grau de essencialidade é pressuposto constitucional à tributação sobre o consumo como meio fiscal.
Por outro lado, quando os impostos sobre o consumo assumem papel de instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada, dirigindo-se imediatamente à orientação de condutas do cidadão, o critério de comparação poderá não ser a essencialidade. (CANAZARO, Fábio. Essencialidade Tributária: igualdade, capacidade contributiva e extrafiscalidade na tributação sobre o consumo. 1ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 138)
Desta forma, entendemos que, quando há a gradação de alíquotas no IPI ou ICMS para desonerar produtos da cesta básica, há exercício de essencialidade. Mas o mesmo não ocorre quando há tributação do IPI sobre cigarros, por exemplo, à alíquota de 200%. Considerando que o hábito de fumar não é luxo exclusivo das classes mais abastadas, vemos que apenas a extrafiscalidade poderia justificar uma alíquota tão elevada.
Note-se que não estamos apontando que há vício na imposição de tal alíquota, mas apenas que, neste caso, a justificativa constitucional não é a busca pela capacidade contributiva do consumidor, e nem o critério informador desta diferenciação é (apenas) a essencialidade. A sobretaxação deste item se apresenta coerente com o ordenamento jurídico apenas sob a ótica da extrafiscalidade, considerando que o consumo de cigarros deve ser desestimulado, diante do valor constitucional da preservação da vida e dos enormes custos que o cigarro traz ao sistema de saúde pública.
Em outro exemplo, entendemos que a essencialidade não poderia justificar a imposição de uma alíquota diferenciada (menor) sobre o biodiesel, em relação ao diesel produzido a partir do petróleo. Como visto acima, a gradação em torno da seletividade é feita em torno da finalidade do bem, tendo em vista o consumidor final e, evidentemente, o consumidor final sequer conseguiria distinguir entre o diesel normal e o biodiesel.
Mas, igualmente, não se defende a impossibilidade de uma alíquota menos gravosa ao biodiesel – apenas a justificação constitucional desta discriminação é que deve encontrar lastro na extrafiscalidade, e obviamente em algum critério válido para sua aplicação. No caso do biodiesel, esta justificação se faz em consideração ao valor ambiental, ou da proteção ao meio ambiente, considerando que o consumo de biodiesel lança menos CO² na atmosfera.
Não se nega, contudo, que há posições divergentes na doutrina, no sentido que a essencialidade poderia justificar uma menor tributação tanto em torno do que seria essencial para o consumo de um indivíduo, como para a coletividade, quando se estaria prestigiando valores como o desenvolvimento econômico.
Bottallo, por exemplo, entende que as principais modalidades de atuação extrafiscal seriam (i) o desenvolvimento econômico; e (ii) a justiça social – colocando lado a lado a busca da tributação em razão da capacidade contributiva e a extrafiscalidade como modulação de condutas. Reconhece, ainda, que os valores de proteção ambiental poderiam motivar a extrafiscalidade.
Desta forma, nos parece que a seletividade em função da essencialidade, embora tenha previsão constitucional expressa para o IPI e para o ICMS, não é o único critério informador da gradação de alíquotas nestes tributos. Outras diferenciações poderão ser aplicadas, visando o atendimento à extrafiscalidade, mas a distinção se faz relevante porque a extrafiscalidade imporá a demonstração do atendimento de outras normas, princípios e valores, a justificar a discriminação constitucionalmente válida – o que diverge da simples definição de se determinado é considerado mais ou menos essencial para o consumo.
CONCLUSÃO
Diante das premissas levantadas, concluímos que a seletividade é conceito diferente da essencialidade: (i) o primeiro consiste em técnica de gradação do ônus fiscal, próprio dos tributos indiretos, que implica em onerar diferentemente bens ou serviços de natureza ou finalidade diferentes; e (ii) o segundo é o critério informador do primeiro, permitindo que se faça a discriminação entre bens e serviços visando a menor oneração daqueles entendidos como essenciais.
O conceito de essencialidade surge como método de amenizar a regressividade própria aos tributos indiretos, visando à distribuição mais equânime da carga tributária entre as diversas classes sociais. Assim, guardadas as devidas proporções, a essencialidade nasce como método indireto de aferição da capacidade contributiva nos tributos indiretos. Mesmo que não seja viável captar a efetiva capacidade contributiva no bojo da tributação sobre o consumo, fato é que a essencialidade tenta se aproximar, tanto quanto possível, desta grandeza, considerada como um todo. Busca-se a distribuição equânime do esforço fiscal entre diversas classes de contribuintes, justamente o mesmo conceito por trás da aplicação da igualdade no âmbito tributário.
A definição do que se entende por essencial é fluida e pouca objetiva. Ainda assim, não vemos tal fluidez como empecilho para sua aplicabilidade como critério por trás da essencialidade, tendo em vista ser totalmente possível a aferição de um conteúdo normativo mínimo a partir da norma constitucional que estabelece a competência tributária do IPI e do ICMS. Em uma concepção simplificada, entende-se como essencial aquilo que é elementar, de primeira necessidade, minimamente necessário para o atendimento da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que ninguém pode prescindir destes itens e, logo, sobre sua aquisição não se demonstra exercício de capacidade econômica, mas de verdadeira necessidade básica. Em oposição, estão os produtos não essenciais, ou voluptuários, de luxo, de aquisição sobretudo voluntária.
Por fim, entendemos importante diferenciar a distinção de produtos e distribuição do ônus fiscal em razão da essencialidade, daquelas diferenciações em função da extrafiscalidade. A extrafiscalidade, a nosso ver, deve atender a outros critérios que não a capacidade contributiva ou a distribuição equânime do esforço fiscal entre os contribuintes, e deve se apoiar em outro critério lastreado por valor constitucional que legitime a discriminação adotada. E sua finalidade, diferentemente da essencialidade, será a orientação de condutas.
Rafael Vega Possebon da Silva
Advogado
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