2024: o ano em que fizemos contato (parte 1)
Rosaldo Trevisan
Sobre odisseias e Direito Aduaneiro
No ano de 1984 (que, por si só, já renderia uma boa coluna aqui no “Território Aduaneiro” em homenagem à obra-prima de George Orwell!), mais precisamente no dia 7 de dezembro de 1984 (portanto, há quase exatos 40 anos!), foi lançado nos Estados Unidos e no Canadá o filme “2010: O ano em que faremos contato” (no original: “2010: The Year We Make Contact”), dirigido por Peter Hyams, como uma sequência de “2001: Uma Odisseia no Espaço” [1], narrando a experiência de uma expedição conjunta americano-soviética enviada a Júpiter para descobrir o que deu errado com o USS Discovery, em um cenário de crescentes tensões globais. [2]
A humanidade sempre teve um encanto especial em explorar o desconhecido, em desbravar o universo, descobrir novos planetas, novas formas de vida. Esse cenário não é diferente no Direito. No mesmo longínquo 1984, pouco se falava no Brasil sobre Direito Ambiental, Direito do Consumidor e Direito Aduaneiro (nosso tema predileto na coluna!).
De forma (espero que) bem-humorada, sempre brinco em conversas e apresentações, comparando os estudiosos do Direito Aduaneiro daquela época, como Roosevelt Baldomir Sosa e José Lence Carluci [3], e até a nós mesmos (incluo o leitor que pesquisa há algum tempo o Direito Aduaneiro nessa assertiva), a “ufólogos”, que estudavam os objetos voadores não identificados do Direito, falando de ramo jurídico que para muitos não existia (em verdade, para poucos ainda não existe!).
Mas o que mudou de lá para cá? E mais, o que mudou especialmente no ano de 2024? Nesta semana buscamos resgatar especificamente as evoluções do Direito Aduaneiro no Brasil em 2024, várias delas exploradas nos quase cinquenta artigos publicados nesta coluna ao longo do último ano, e que nos levam a crer que 2024 foi o ano em que “fizemos contato”.
Uma retrospectiva de 2024
O ano de 2024 está terminando, e é hora de fazer a tradicional retrospectiva, tratando dos importantes temas debatidos ao longo do ano, vários deles de forma recorrente, desde os campeões de audiência, e que merecerão tópico específico aqui (a Reforma Tributária e seus impactos no Direito Aduaneiro, que respondeu por dez artigos; o Contencioso aduaneiro, com sete artigos; e a Lei Geral de Comércio Exterior, com cinco artigos), até temas igualmente (ou até mais) importantes, mas menos explorados.
Um desses temas que merece menção especial é o das parcerias (a exemplo da existente no filme “2010”, entre americanos e soviéticos), tratado em artigo no início de 2024, no qual avaliamos o slogan escolhido pela OMA para 2024 (Customs Engaging Traditional and New Partners with Purpose), com destaque para a importância das parcerias na área aduaneira (aduana-aduana, aduana-empresa, e aduana-outros órgãos), e antecipamos o desejo de que “…tenhamos todos um excelente 2024, repleto de boas notícias para a área aduaneira” [4], o que, felizmente, acabou se confirmando. Fernanda Kotzias e Renata Sucupira voltaram a explorar o tema em outubro, tratando do engajamento em prol do comércio exterior [5].
Outro destacado tema figura em artigo de março de 2024 [6], que dedicamos às mulheres, que estão ocupando crescente espaço nas atividades aduaneiras (assim como nas atividades aeroespaciais [7] — pano de fundo desta coluna). Ainda nos temas de importância universal, destacamos o estudo elaborado em conjunto com Dihego Antônio Santana de Oliveira sobre um dos principais temas aduaneiros, mundialmente, as “Aduanas Verdes” (“Green Customs”) [8], pois, por enquanto, não há “Plano B” em relação à preservação da nossa vida neste planeta.
Em síntese, a amplitude dos temas tratados nas colunas do “Território Aduaneiro” em 2024 excedeu os tradicionais clássicos aduaneiros (classificação, valoração e origem), tratando ainda de temas especificamente brasileiros, desdobramentos de decisões locais, como “o caso das blusinhas” [9], a política de Ex Tarifário [10], a importação de bens usados [11] e a evolução do Portal Único de Comércio Exterior [12].
Sobre a modernização do contencioso
Os debates sobre a modernização do contencioso tributário e administrativo, iniciados em 2022, a partir de diagnóstico que não dedicou tópico específico às melhores práticas internacionais, ou mesmo ao conhecimento de como funciona o contencioso em outros países de estrutura similar ao Brasil, culminaram, como anotamos em colunas, à época [13], em nove anteprojetos elaborados por comitê especificamente designado. Tais anteprojetos só tiveram avanço agora, no final de 2024, com redação que ensejaria uma parte 2 à coluna em que denunciamos que medidas propostas para reduzir o contencioso tinham potencial de, em verdade, incentivar e ampliar o contencioso [14].
Na semana passada, em 5 de dezembro, de 2024, a comissão temporária encarregada de modernizar os processos administrativo e tributário aprovou 8 das 36 emendas apresentadas em Plenário ao projeto que consolida e atualiza, em um único texto, as normas que regulamentam, na esfera federal, o processo administrativo fiscal, o processo de consulta sobre a aplicação da legislação tributária e aduaneira e a mediação [15] tributária e aduaneira.
O PL 2.483/2022 [16] segue para a votação pelo Plenário, e demandará atenção (e, certamente, novas colunas aqui no “Território Aduaneiro” em 2025).
No âmbito do contencioso a cargo do Carf, três artigos da coluna [17] de 2024 direcionaram elogios à especialização em matéria aduaneira, promovida no âmbito da Terceira Seção de Julgamento, com a criação de Câmara composta por duas Turmas com competência para analisar processos referentes à temática aduaneira, destacando-se ainda a elaboração de Súmulas sobre temas aduaneiros e a inclusão do julgamento de temas aduaneiros na missão institucional do Carf [18].
Ainda tratando de contencioso, mas no que se refere a perdimento, dois artigos do “Território Aduaneiro” [19] analisaram as atividades do Cejul, que representou inegável evolução no julgamento da pena de perdimento, adequando a legislação brasileira à Convenção de Quioto Revisada, e o primeiro ano de trabalho de tal tribunal administrativo especializado aduaneiro, que, ultrapassada a etapa inicial, já busca aprimoramento no que se refere à publicidade, buscando fornecer fonte jurisprudencial sólida aos operadores de comércio exterior.
Também em relação ao contencioso administrativo, e interseccionando nosso próximo tema, cabe destacar que estão em fase de amadurecimento, e merecem atenção (também aqui nesta coluna) os debates sobre a composição da instância julgadora do IBS e da CBS, inclusive quando vinculados a operações de importação.
Interrompemos aqui nossa retrospectiva aduaneira 2024, em função dos limites de caracteres imposto por esta coluna, prometendo que trataremos, na próxima semana, da reforma tributária, da Lei Geral de Comércio Exterior, de eventos e publicações em 2024, e das “cenas dois próximos capítulos”, para 2025.
Apontaremos ainda na próxima semana outros acontecimentos dos últimos meses no cenário nacional e internacional que marcaram 2024, justificando nossa observação de que foi o “ano em que fizemos contato”.
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[1] Fernando Pieri já fez referência ao “2001: Uma odisseia no espaço” em sua coluna “2050: uma odisseia aduaneira”, aqui na coluna Conjur “Território Aduaneiro”, em 4 de junho de 2024 – disponível em: 2050: uma odisseia aduaneira.
[2] O leitor pode encontrar ver um trailer do filme, e encontrar dados acionais em: 2010: O Ano em que Faremos Contato (1984) – IMDb.
[3] Aliás, Roosevelt Baldomir Sosa, um dos desbravadores do Direito Aduaneiro no Brasil, foi homenageado em nossa coluna Conjur “Território Aduaneiro” de 12 de julho de 2022 (Por que ler os clássicos? versão Direito Aduaneiro) – disponível em: Por que ler os clássicos? (versão Direito Aduaneiro). E foi ainda homenageado em nosso artigo: TREVISAN, Rosaldo. “O Aduaneiro e o Tributário” em Roosevelt Baldomir Sosa. In: SARTORI, Ângela; TESSER, Daniel Bettamio; GUIMARÃES, Thaís (Org.). Controvérsias Atuais do Direito Aduaneiro: Homenagem ao Mestre Roosevelt Baldomir Sosa. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 11-42.
[4] Parcerias no setor aduaneiro facilitam comércio internacional, em 30 de janeiro de 2024 – disponível em: Parcerias no setor aduaneiro facilitam comércio internacional.
[5] Engajamento em prol do comércio exterior, em 29 de outubro de 2024 – disponível em: Engajamento em prol do comércio exterior.
[6] Mulheres e as atividades aduaneiras: uma combinação exitosa, em 5 de março de 2024 – disponível em: Mulheres e as atividades aduaneiras: uma combinação exitosa.
[7] No filme “Hideen Figures” (“Estrelas Além do Tempo”) o leitor pode encontrar uma pertinente denúncia sobre a “invisibilidade” de mulheres brilhantes que ajudaram a Nasa na corrida espacial – trailer e dados do filme em: Estrelas Além do Tempo (2016) – IMDb.
[8] Aduanas verdes e ‘uma verdade inconveniente’, em 14 de maio de 2024 – disponível em: Aduanas verdes e ‘uma verdade inconveniente’.
[9] TREVISAN, Rosaldo. Benefícios fiscais e o caso das ‘blusinhas’ (parte 1), em 18 de junho de 2024 – disponível em: Benefícios fiscais e o caso das ‘blusinhas’ (parte 1).
[10] KOTZIAS, Fernanda. As reviravoltas do regime de Ex-tarifário, em 16 de junho de 2024 – disponível em: As reviravoltas do regime de Ex-tarifário.
[11] BRANCO, Leonardo. Importação de bens usados: tratamento aduaneiro e tributário, em 16 de abril de 2024 – disponível em: Importação de bens usados: tratamento aduaneiro e tributário.
[12] PIERI, Fernando; ZAMBRANO, Alexandre. Facilitação do comércio e controle aduaneiro? Portal Único do Comex, em 25 de junho de 2024 – disponível em: Facilitação do comércio e controle aduaneiro? Portal Único do Comex.
[13] Contribuições aduaneiras para a melhoria do contencioso administrativo, em 3 de maio de 2022 – disponível em: Contribuições aduaneiras para melhoria do contencioso administrativo; e Contencioso aduaneiro: uma luz no fim do túnel?, em 20 de setembro de 2022 – disponível em: Há uma luz no fim do túnel do contencioso aduaneiro de 2022?.
[14] Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira), em 26 de setembro de 2023 – disponível em: Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira).
[15] Sobre mediação e arbitragem aduaneira também tivemos coluna específica: MEIRA, Liziane; FELIX, Talita Pimenta. Mediação e arbitragem tributária e aduaneira, em 23 de abril de 2024 – disponível em: Mediação e arbitragem tributária e aduaneira.
[16] O PL está disponível em: PL 2483/2022 – Senado Federal, e a notícia sobre a aprovação e o encaminhamento a plenário (com um resumo das principais alterações) pode ser encontrada em: Aprovado na Comissão, novo texto sobre processo administrativo fiscal segue para o Plenário — Senado Notícias.
[17] TREVISAN, Rosaldo; MEIRA, Liziane. Especialização aduaneira no Carf está chegando, em 26 de março de 2024 – disponível em: Especialização aduaneira no Carf está chegando; PIERI, Fernando. A hora e a vez da especialização aduaneira, em 30 de abril de 2024 – disponível em: A hora e a vez da especialização aduaneira; e TREVISAN, Rosaldo; MEIRA, Liziane; MACEDO, Leonardo. Por um contencioso aduaneiro especializado, em 9 de julho de 2024 – disponível em: Por um contencioso aduaneiro especializado.
[18] TREVISAN, Rosaldo. Seminário Carf e o papel das súmulas no Direito Aduaneiro, em 1o de outubro de 2024 – disponível em: Seminário Carf e o papel das súmulas no Direito Aduaneiro.
[19] MEIRA, Liziane. Neste novo ano, podemos começar a falar em um processo administrativo aduaneiro?, em 6 de fevereiro de 2024 – disponível em: Neste novo ano, podemos começar a falar em um processo administrativo aduaneiro?; e KOTZIAS, Fernanda. Balanço aduaneiro: um ano de Cejul, em 3 de dezembro de 2024 – disponível em: Balanço aduaneiro: um ano de Cejul.
Rosaldo Trevisan
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).