Desejo que os valores supremos do Preâmbulo da CF/88 nos guiem em 2021

Élida Graziane Pinto

Por Élida Graziane Pinto – Conjur

2020 se encerra em breve, junto com a década. Uma triste síntese para ambos é a falta de progresso efetivo e equitativo. Fazer balanço e indicar desejos de futuro, nesse contexto, são esforços tão doloridos, quanto necessários.

Nada é mais sintomático para a última coluna Contas à Vista deste ano do que o balanço de baixo crescimento acumulado desde 2011, na medida em que o PIB brasileiro cresceu 2,2%, enquanto a economia mundial avançou 30,5% nesse período. Tal como noticiado pela Folha:

“A taxa de 2,2% numa década, que seria fraca até como um resultado anual, é bem inferior à do crescimento da população brasileira ao longo desses dez anos, estimada pelo IBGE em 8,7%. Em outras palavras, a renda média nacional por habitante encolheu.

Para além da estatística, a cifra se traduz em óbvia perda de bem-estar da população, mensurável em índices como os de desemprego e pobreza.

Significa, ainda, que o país se distanciou mais profundamente do padrões mundiais de riqueza e desenvolvimento.

Nem na década que primeiro mereceu o epíteto de perdida, a dos anos 1980, houve tamanha diferença. Naquele época, o produto brasileiro teve expansão de 16,9%, e o do planeta, de 37,9%.”

Na década empobrecemos não só economicamente, mas também do ponto de vista civilizatório, porque entraremos em 2021 sem resguardar proteção suficiente, na mais tímida das hipóteses, para cerca de 20 milhões de brasileiros.

O fim do Orçamento de Guerra, por força do término da vigência da calamidade reconhecida pelo Decreto Legislativo 6/2020, imporá risco de descontinuidade abrupta aos imprescindíveis serviços públicos essenciais. O art. 65 da LRF deixará de incidir e, por conseguinte, as regras fiscais excepcionais não mais vigorarão a partir do réveillon.

É substantivamente contraditório e factualmente inconsistente, contudo, o final da vigência da calamidade na seara fiscal, quando contrastado com a vigência da Lei 13.979/2020. Vale lembrar que aludida Lei dispõe sobre as medidas cabíveis para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da Covid-19.

Ora, segundo o art. 1º, §§2º e 3º da Lei 13.979/2020, a vigência das regras ali dispostas é vinculada materialmente à duração da própria situação de emergência sanitária, em consonância com as orientações do Ministério da Saúde e, em última instância, da Organização Mundial de Saúde.

Não obstante a necessidade de proteção suficiente na saúde pública e a dramática realidade econômico-social em que vivemos, o Executivo federal insiste — de forma contrafactual — na volta da plena vigência do teto no próximo ano. Para cumprir tal desiderato juridicamente temerário, já se antecipa o horizonte de severa contenção de gastos no PLOA-2021, cuja tramitação somente será retomada em fevereiro.

Iniciaremos, pois, o próximo exercício financeiro com riscos consideráveis nas dimensões sanitária, econômica e social do enfrentamento à pandemia da Covid-19. Ao assumir tais riscos, o poder público ofende aos deveres de planejamento, prevenção e precaução e, por conseguinte, dá ensejo a diversas hipóteses de responsabilização. Muito em breve colheremos os resultados práticos do quão irracional foi o debate orçamentário na transição de 2020 para 2021.

O cenário é preocupante, pois, como bem suscitado por Marcos Mendes (em artigo disponível aqui), o PLDO-2021 — aprovado apenas em 16/12 — foi capturado por uma espécie de balcanização orçamentária:

“Em meio à maior crise fiscal da história, simultaneamente a uma pandemia persistente, o documento trata o Orçamento como o “business as usual” da política paroquial, da falta de prioridades, da balcanização do Orçamento e da complacência com a baixa responsabilidade fiscal.

Nada no texto aprovado chega perto de um esforço coordenado para lidar com os grandes problemas nacionais.

Em destaque, o aumento das verbas para emendas parlamentares e a permissão para liberar esses recursos mesmo que não haja projeto de engenharia, na metade do prazo atual.

Não importa a urgente necessidade de reforçar a assistência social em quadro de alto desemprego. Não importa que estejamos com déficit recorde de mais de 3% do PIB. Na hora da decisão, o essencial parece ser garantir a obra na base eleitoral e seus contratos.”

Não foi por falta de aviso que entramos nesse caos patrimonialista em matéria orçamentária (como debatido aqui). Ideal seria que tivéssemos elaborado um plano bienal de enfrentamento da pandemia, algo que tenho insistentemente suscitado há meses aqui nesta Coluna. Não vou cansar os parcos leitores que me acompanham, repetindo o “eu avisei”. Hoje apenas desejo lembrar que, no início deste conturbado mês de dezembro, até o Fundo Monetário Internacional recomendara que prorrogássemos os estímulos fiscais, mas nossos agentes políticos mantiveram-se atados às suas insanidades, a começar pela busca de retorno pleno ao teto da Emenda 95/2016, como âncora fiscal de 2021.

Assim caminhamos para o agravamento da pandemia, sem capacidade de resguardar custeio suficiente ao nosso Sistema Único de Saúde, tampouco sem garantia de renda básica emergencial para a população mais vulnerável. A retração econômica tenderá a acompanhar o ritmo dos casos de contaminações e mortes, até porque o Ministério da Saúde atrasou-se terrivelmente no seu indelegável papel de elaboração e coordenação federativa do Plano Nacional de Imunização.

Algumas agências de risco já se preocupam mais com a retirada abrupta dos estímulos fiscais do que com a própria necessidade de revisão iminente do teto:

“A agência de classificação de risco Fitch Ratings melhorou sua previsão para o desempenho da economia do Brasil neste ano, mas reduziu a expectativa para 2021, citando “vários riscos de baixa” para o próximo ano, incluindo efeitos da retirada do auxílio emergencial e o desemprego persistentemente alto.”

Terminaremos este 2020 sem termos acesso amplo às vacinas, sem controle sanitário da Covid-19, sem leitos suficientes de UTI, sem renda básica emergencial, sem sustentação mínima da atividade econômica, sem orçamento anual, sem planejamento sobre nossos próximos passos…

A realidade dura desafia nossa capacidade de sonhar e construir ideais de futuro. Como mudar o cenário para 2021? Onde encontrar sentido para nossa trajetória republicana e democrática no ano que começa daqui a alguns dias?

A luta recente no âmbito do Projeto de Lei 4372/2020, em prol da regulamentação constitucionalmente adequada do Fundeb permanente (de que trata a Emenda 108/2020), serve de exemplo de construção cívica da defesa dos direitos fundamentais. Pessoalmente tenho imensa gratidão por haver atuado ao lado de gigantes e por nos somarmos em nota assinada por 303 juristas, a qual foi divulgada pela ConJur na véspera da votação pelo Senado. Foi uma batalha tão colossal quanto relevante para que os recursos do Fundeb permanecessem vinculados às escolas públicas, sobretudo nos ensinos fundamental e médio.

O aprendizado que fica é o de que não podemos abdicar da defesa íntegra e integral da Constituição. Para tanto, há de haver clareza acerca dos seus valores supremos, tal como enunciados desde o seu Preâmbulo. Ali fundamos nosso eixo civilizatório comum e nos unimos em prol de um “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. (grifos nossos)

A ministra Cármen Lúcia, no julgamento da ADI 2649-6/DF (voto disponível aqui), destacou que o Preâmbulo da nossa Constituição Cidadã “contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988”. Ainda segundo a ministra:

“Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se afirme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos.”

Diante de tantas incertezas acerca do que nos aguarda no próximo ano, o desejo de um futuro melhor passa pela compreensão do que deve nos unir, para além de quaisquer divergências e diferenças. Valores supremos hão de nos resgatar essa essência constitucional: eis meu sincero desejo para 2021.

Retrocessos se acumularam ao longo da década que agora finda. Para superá-los, precisamos nos comprometer com a construção do Estado Democrático, ressignificando a relação entre orçamento e Constituição, até porque aquele é meio de consecução dessa.

Cabe reiterar, por extremamente oportuno e necessário: o orçamento deve assegurar cumprimento à Constituição, jamais deve servir de pretexto para limitar sua efetividade. Eis a pragmática e forte função diretiva, a que o professor José Afonso da Silva (tal como citado no voto da Ministra Cármen Lúcia) se referia:

“O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’ tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico” (Comentário contextual à Constituição. Malheiros, 2006, p. 22)

Acima de enviesadas e contingentes rotas de ajuste fiscal, seletivamente incidentes apenas sobre as despesas primárias, hão de estar os valores supremos do exercício de direitos sociais e individuais, do bem estar, da liberdade, da segurança, da igualdade, da justiça e do desenvolvimento sustentável. Para construirmos um Estado Democrático efetivamente comprometido com nosso pacto constitucional civilizatório, guiemo-nos, pois, em torno de tais valores neste ano e nesta década que se iniciam!

Élida Graziane Pinto

Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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