Fúria fiscal desenfreada inventa crime juridicamente impossível

Kiyoshi Harada

Como é possível cogitar de apropriação de bem móvel alheio de que tem a posse ou a detenção? Tudo indica que o fisco estadual está fazendo uma equiparação atípica com a figura do art. 168-A do CP que tipifica o crime de apropriação indébita da contribuição social retida na fonte e não repassada à previdência social.

Já vem de longa data a fúria fiscal que tudo indica não ter um limite. É como a ignorância que não tem limite, ao contrário do conhecimento que é sempre limitado. Só Deus tem conhecimento ilimitado.

O furor do fisco por meio de instrumentos legislativos conformados com a ordem jurídico-constitucional vigente é um mal menor. A carga tributária é uma questão política e reflete a capacidade ou incapacidade dos governantes em gerir a administração com zelo e eficiência, sem desvios e desperdícios, sobretudo, sem perdas de recursos financeiros motivados por atos de corrupção dos agentes públicos, que atuam livremente entre os grandes agentes econômicos.

Essa fúria fiscal desmedida vai evoluindo com o passar do tempo, em uma escala hierárquica invertida, como veremos didaticamente:

(a) No topo situam-se as leis inconstitucionais que atropelam os princípios constitucionais da legalidade, da isonomia, da uniformidade geográfica, da capacidade contributiva, da anterioridade etc.

(b) Desrespeito à natureza intrínseca das contribuições sociais que reclamam benefícios específicos, sem o que não passam de impostos inominados para custear despesas gerais do Estado.

(c) Elevação de alíquotas de impostos regulatórios (II, IE, IOF e IPI) por meio de decretos com fins arrecadatórios, além do aumento de tributo vinculado, como a CIDE, para inchar o superávit primário. Em ambas as hipóteses o governante comete ato de improbidade administrativa que, em tese, poderá resultar na perda do mandato ao final do processo judicial.

(d) Arrecadação de impostos antes da ocorrência do fato gerador, por meio de artifício legislativo consistente na substituição tributária para frente, engendrando a figura do fato gerador presumido que a jurisprudência da Corte Suprema convolou em fato gerador fictício, isto é, não mais comporta prova em sentido contrário, porque a substituição tributária seria definitiva. Pergunto, o que isso tem a ver com a figura do fato gerador? É como “embarcar” em um avião, no voo das 10,00 hs, antes da chegada da aeronave na presunção de que o voo estará dentro do horário! Se o avião chegar oito horas depois de embarcado, isto é, às 18,00 hs, dirão: não falei que iria chegar? Está vendo como eu estava certo? O embarque virtual convola-se em embarque físico e nenhuma responsabilidade restará à empresa de aviação. O fato é, que aquele voo das 10,00 hs. não existiu, embora o voo das 18,00 hs. corresponda exatamente àquela aeronave designada para o voo das 10,00 hs.

e) Agora vem o pior: o uso indiscriminado de sanções políticas condenadas por três Súmulas do STF, didática e ilustrativamente editadas, como adiante enumeradas:

e.1) Exigência de certidão negativa para “n” situações, cerceando o livre exercício da atividade econômica assegurado pelo parágrafo único, do art. 170 da CF. Para alienar imóveis é preciso certidão negativa; para alterar contrato social, idem; para participar de certame licitatório, idem; para dar baixa na firma, idem; para homologação do plano de recuperação judicial, idem; para obter crédito público, idem. Essas hipóteses vão crescendo à medida das necessidades de caixa do Tesouro. Daqui a pouco, os que quiserem comprar automóvel para se livrar do transporte público falido vão precisar de certidão negativa.

e.2) Suspensão ou inabilitação da inscrição cadastral do contribuinte inadimplente e inserção de seu nome no CADIN, obrigando o agente econômico a desenvolver sua atividade na clandestinidade.

e.3) Proibição do inadimplente em imprimir talonários de notas fiscais, agora, bloqueio eletrônico da nota fiscal eletrônica, o que equivale à proibição de pagar impostos vincendos, sem quitar os atrasados.

e.4) Protesto da CDA por empréstimo da figura de direito privado, onde as regras são completamente diferentes. No direito privado o protesto significa um alerta aos comerciantes em geral para não fazerem vendas a crédito àquele comerciante ou consumidor inadimplente. É um meio de proteção do sadio comércio, além de instrumento necessário ao pedido de falência, ancorado na impontualidade comprovada por meio de protesto do título líquido e certo. Agora, no setor público, pergunto, qual a utilidade do protesto da CDA? Para alertar os fiscos das três esferas políticas no sentido de se absterem de lançar tributos, porque a sua inadimplência está comprovada, sendo presumível que ele não irá pagar? Pelo exame da motivação descobre-se, facilmente, o desvio de finalidade, caracterizador do ato de improbidade administrativa.

e.5) Bloqueio universal dos bens do executado, sem observância dos requisitos prescritos em lei (art. 185-A do CTN). Eventual excesso de indisponibilidade de bens, diz a lei, será levantado imediatamente por determinação judicial, quando sabemos que entre a data do pedido e a data da apreciação do pedido pelo juiz competente pode levar de 15 a 20 meses. Atualmente, o prazo mínimo é de 6 meses. A lei chama isso de liberação incontinente. Parece com aquela figura do § 7º, do art. 150 da CF que alude a “restituição imediata e preferencial” do imposto recolhido indevidamente por antecipação. O nosso legislador legisla olhando para a lua, que não tem nada a ver com a realidade do dia a dia. Por isso, o novo CPC, que teria vindo à luz para agilizar os processos, irá retardar muito mais do que no sistema anterior, por causa das inúmeras discussões periféricas antes inexistentes. Quando a jurisprudência consegue superar aquilo que é mais ou menos óbvio, após décadas de discussões, logo sobrevém uma legislação nova trazendo outras questões duvidosas. É o império do caos que tomou conta de nossa sociedade e ninguém está interessado em dele se livrar.

Finalmente, chegando ao fundo do poço, na escala hierárquica de instrumentos utilizados pelo fisco para arrecadar à margem da lei e da Constituição, na base do “fim justifica o meio”, temos a nova invenção do fisco estadual que está colocando em polvorosa os contribuintes do ICMS: é a implementação ou tentativa de implementar crime juridicamente impossível, o crime de apropriação indébita do ICMS, um imposto indireto cujo valor integra o preço da mercadoria ou do serviço.

Como é possível cogitar de apropriação de bem móvel alheio de que tem a posse ou a detenção? Tudo indica que o fisco estadual está fazendo uma equiparação atípica com a figura do art. 168-A do CP que tipifica o crime de apropriação indébita da contribuição social retida na fonte e não repassada à previdência social.

Pergunto, o que o valor do ICMS destacado na nota fiscal para fins contábeis e fiscais[1] tem a ver com a posse ou detenção desse valor?

NOTA

[1] Para possibilitar o cálculo do imposto a ser recolhido em cada período de apuração, mediante o confronto de “créditos” pela entrada de mercadorias no estabelecimento e “débitos” pela saída de mercadorias no mesmo estabelecimento, relativamente ao mesmo período de apuração.

Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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