Tributação, ajuste fiscal e a lei das consequências não (?) intencionais
Cristiano Carvalho e Luciano Benetti Timm
hamada “lei das consequências inesperadas”, assim denominada pelos economistas, refere-se a efeitos não previstos advindos das tomadas de decisão pelos agentes racionais. Em outras palavras, cada vez que escolhemos agir de determinada forma, optando por alguma alternativa que se apresenta e desistimos de outra(s), há efeitos provenientes dessa decisão. Por mais que calculemos possíveis consequências de nossas escolhas, sempre há margem para o inesperado, para o imponderável. A ação humana é tão complexa, que pequenas variáveis iniciais podem resultar em grandes efeitos inesperados, tal como o famoso “efeito borboleta” da Teoria dos Caos (um pequeno bater de asas de uma borboleta no hemisfério sul pode gerar um tufão no hemisfério norte).
Todavia, em boa parte das escolhas de decisões que tomamos há uma razoável parcela de previsibilidade de seus efeitos, ao menos a curto e médio prazo. Não apenas a experiência de vida demonstra isso, uma vez que a melhor forma de prever o futuro é olhar para o passado, como a ciência produz estudos diversos sobre o comportamento dos agentes e suas consequências. Mais especificamente a Ciência Econômica, aliada a métodos quantitativos, possui instrumentos adequados e com boa margem de acerto quanto aos efeitos que as nossas decisões podem acarretar.
No que se refere ao Direito, a teoria econômica tem oferecido inúmeras ferramentas e produzido estudos empíricos que demonstram a eficiência das normas jurídicas, e de seus impactos no comportamento dos cidadãos. Enquanto a tradicional Dogmática Jurídica concentra suas lentes na interpretação das leis e em sistematizar as relações verticais e horizontais entre os textos normativos, a Análise Econômica do Direito desvia o foco para o comportamento dos agentes emissores e receptores dos comandos legais. E quanto ao fenômeno da tributação?
O tributo é responsável por sustentar o Estado, o qual, por sua vez, deve funcionar como um garantidor da segurança. Em termos muito básicos, o tributo é a forma pela qual o indivíduo renuncia à parte de sua liberdade, transferindo-a para um ente cuja função deverá ser, justamente, a de garantir a preservação daquela liberdade.
A segurança é a função primordial do Estado, e deve ser entendida de forma ampla: segurança contra invasores externos, segurança contra agressores internos, segurança para decidir e resolver litígios entre cidadãos, segurança e certeza para propiciar bom ambiente de negócios. A segurança provida pelo Estado constitui, portanto, a principal falha de mercado, i.e., aquele bem público que este não possui incentivos suficientes para ofertá-lo eficientemente, o que significa dizer, de acordo com a demanda. Outras falhas de mercado (assimetria informacional, externalidades negativas, monopólios, etc…) existem, mas é seguro dizer que a segurança constitui a própria razão de existir do Estado, em essência, uma entidade que reúne instituições (regras do jogo) e organizações que levam a cabo tais regras, conforme nos ensina Douglas North, Nobel de Economia.
Sendo assim, quase sempre há tensão entre tributação e contrato social. Pagar tributo quase costuma ser compreendido como uma relação custo-benefício delicada, pois imediatamente implica retirada de riqueza do contribuinte. Os benefícios são justamente os bens públicos que o Estado pode fornecer, principalmente, a segurança, tal como foi dito. Essa gangorra, ou queda de braço é sempre tensa, e quanto mais a tributação for ineficiente, gerar despesas excessivas para os particulares, for pouco transparente e não refletir em um retorno relativamente rápido na forma de serviços públicos (segurança, infraestrutura, saúde, educação etc), mais vista como punição e confisco será.
Assim sendo, a tendência será inevitavelmente os contribuintes buscarem fugir da tributação, seja de forma lícita (planejamento tributário), forma ilícita (sonegação) ou mesmo física (mudando para outras jurisdições fiscalmente atraentes). E, mesmo assim, seguirão exigindo que o Estado lhes preste aqueles serviços pelos quais não quer pagar, preferindo então agir de forma oportunista, “pegando carona” em outros pagadores de tributos. Não se trata de falha moral ou má-fé, pelo contrário. O sistema jurídico tributário é uma potente máquina de incentivos, e dependendo como esses forem produzidos, será racional (custo-benefício) agir de forma oportunista. Empiricamente, é o que se verifica há muitas décadas no Brasil.
Note-se que a tributação, por gerar custo imediato ao indivíduo, e, por sua vez, não garantir uma contraprestação na mesma rapidez, ocasiona invariavelmente resistência ao seu cumprimento. Quanto menos transparente, mais complexo e mais prolixo for a tributação, maiores serão os custos para o contribuinte – entendidos aqui como custo contábil (a expressão monetária que ele terá que pagar a título de tributos), custo de conformidade (o que ele terá que despender para ter acesso, compreender e cumprir com as obrigações tributárias, principais e acessórias, incluindo recursos para contratar profissionais especializados, e também o tempo gasto para o cumprimento), custo de oportunidade (esses dispêndios poderiam ser utilizados para incrementar a produção) e custo de transação (o quanto a tributação emperra o ambiente de negócios). Já o benefício de pagar tributos, numa análise intertemporal, passa a ser difícil de perceber pelo agente econômico.
Num sistema econômico intervencionista, onde o Estado é um dos principais agentes e um dos piores alocadores de recursos, a lógica da tributação soa contraditória: pelo bom-senso, quanto mais se paga tributos, mais serviços públicos deveriam ser contraofertados. Porém, ocorre o oposto – quanto maior a carga tributária, sintoma de Estado hipertrofiado, menos se verifica a contraprestação estatal. Cabe lembrar que o Brasil é apontado como o país mais difícil de cumprir com as obrigações fiscais (maiores custos de conformidade, medidos em número de horas anuais consumidos pelas empresas para tanto: 2.600 horas, segundo relatório Doing Business, do Banco Mundial) e com maior carga tributária sobre o PIB ( ao redor dos 38%), dentre os países emergentes. O Leviatã consome toda a receita e, insaciável, exige cada vez mais.
Voltando à lógica dos incentivos, percebe-se que tributação excessiva acarreta efeitos não previstos e tampouco desejados pelo Estado, ainda que plenamente conhecidos pela teoria econômica. Por exemplo, um aumento excessivo de alíquota no imposto sobre a renda terá o condão de gerar menos receita em vez de aumentá-la, conforme nos ilustra a Curva de Laffer, visto que os contribuintes farão de tudo para evitar este custo (elidindo, evadindo ou mudando para localidades menos tributadas).
Outro exemplo corriqueiro são aumentos em tributos passíveis de repasse nos preços dos bens e serviços, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e serviços de comunicação e transporte (ICMS). No momento que esse custo tributário repercute no preço e os bens e serviços são passíveis de serem substituídos por outros com menor preço, ocorre distorção no equilíbrio de oferta e demanda e surge o “peso-morto”, ineficiência alocativa que significa menos riqueza produzida, nem apropriada pelo particular, nem pelo estado. Esse efeito-substituição se dá em bens com substitutos perfeitos, como é o exemplo do vinho, que pode ser trocado por outra bebida alcoólica. Novamente, percebe-se que o resultado não gerará, necessariamente, mais receita para o Estado. Pior ainda é quando a tributação sobre determinados bens incentiva o consumo de alternativas ilícitas, que não pagam tributos, como é o caso de produtos piratas. Não apenas não há receita tributária alguma, como também se incentiva um mercado ilícito, que não gera empregos no país e que é muitas vezes proveniente de crime organizado.
Por fim, a crescente complexidade do sistema tributário também motiva a deserção ao seu cumprimento. Novamente o exemplo do ICMS, com 27 diferentes legislações, uma para cada Estado e Distrito Federal, com complicadas regras concernentes a operações mercantis que ultrapassam as fronteiras estaduais. Uma possível solução seria a transformação do ICMS em imposto federal (numa formatação próxima ao IVA – Imposto sobre Valor Agregado, aplicado em outros países), com uma só fonte normativa, evitando-se assim todos os custos de conformidade e custos de transação decorrentes da competência estadual.
De fato, trata-se de uma possível solução, mas o que pensar então das contribuições sociais do PIS e da COFINS, de competência federal, mas que em seu regime não-cumulativo são tão complexas que até hoje geram dúvidas e consequentes conflitos e litígios, consubstanciados em incontáveis soluções de consulta, processos administrativos e judiciais? A insegurança jurídica e os custos decorrentes dessa complexidade estão entre os principais responsáveis pelo “custo Brasil”, que prejudica os investimentos e o desenvolvimento socioeconômico.
Pelo exposto, parece claro que boa parcela de culpa pela atual depressão econômica em nos encontramos se deve ao sistema tributário. Ele é, ao mesmo tempo, causa e efeito de um Estado ineficiente e injusto, que consome da pior forma possível a riqueza duramente produzida pelos particulares. Como sustentar então aumento de tributos para promover o necessário ajuste fiscal, alcançando superávit primário?
Qualquer dono ou dona de casa sabe que se gastar mais do que a sua restrição orçamentária permite, o resultado serão dívidas. Portanto, busca limitar-se a sua capacidade financeira, preferencialmente gastando menos do que ganha. O Estado brasileiro – aqui entendido como União, Estados e Municípios – quase nunca age dessa forma responsável, pelo contrário: gasta muito mais do que arrecada. Qual a costumeira “solução”? Nunca é diminuir gastos, mas sim aumentar sua receita, invariavelmente pelo aumento de tributos.
Podemos citar como exemplo, a tentativa de recriação da CPMF, contribuição incidente sobre movimentações financeiras. A bem dizer, vista isoladamente, a contribuição continha características que a aproximavam do chamado tributo “ótimo”, ou seja, eficiente, que não temos espaço aqui para explicar. Tal, todavia, implica não em ressuscitá-la, como mais um tributo além de todos os demais, mas em transformar todo o sistema tributário em um sistema ótimo. Alguns sustentam que a CPMF, dentre outros aumentos fiscais, serviria como um mecanismo “provisório”, uma ponte temporária para o ajuste fiscal, sendo devidamente abandonada quando aquele fosse atingido, permitindo então que se fizessem as necessárias reformas de base, dentre elas, a tributária.
Ledo engano. Novamente, quem sustenta essa “transição”, seja o governo, sejam comentaristas externos, desconhece como operam os incentivos ao comportamento humano. Permitir ao governo cobrir seus gastos e mascarar sua ineficiência com aumento de tributos é sinalizar custo zero para sua incompetência gerencial. Em síntese, “governar mal compensa”. Em termos de teoria econômica, significa permitir o “risco moral” (moral hazard), uma estrutura de incentivos perversos cuja consequência não é consertar erros, mas perpetuá-los. Basta lembrar que a original CPMF (primeiro criada como imposto, o “IPMF”, em 1993, extinto no ano seguinte)) surgiu supostamente como “provisória”, com a promessa de duração limitada a poucos anos, destinada a suprir custos decorrentes do sistema público de saúde. Instituída em 1996, pela Emenda Constitucional n. 12, sua previsão era de vigência por dois anos. Acabou vigorando por mais de uma década, sendo revogada apenas em 2007.
Em suma, aumento de tributação não é a solução eficiente para alcançar ajuste fiscal e retomar o crescimento econômico. A consequência não intencionada pelo governo, porém conhecida pelos estudiosos da análise econômica do direito, será muito provavelmente um agravamento da crise. A única forma de quebrar esse círculo vicioso seria enfrentar, de uma vez por todas, o processo de reforma tributária.
A dificuldade em implementar reformas profundas também é explicada pela teoria econômica e pela lógica dos incentivos. A Teoria da Escolha Pública e a Teoria dos Jogos, ambas vertentes da Ciência Econômica, demonstram que usualmente há poucos incentivos para que governantes (principalmente em sistemas federativos) cooperem e abram mão de certas prerrogativas (como transferir o ICMS para a União), e a prova disso é que fala-se em reforma tributária pelo menos desde a criação da Constituição de 1988, e até agora, apesar de diversos projetos de lei, nada foi feito.
Se servir de algum consolo, a experiência mostra que reformas de base ocorrem em poucas situações: em ditaduras, o que sempre acarreta um custo altíssimo em termos morais, sociais e políticos, sendo, portanto, indesejável; quando o governante, eleito democraticamente, possui tanto respaldo popular que pode convencer o parlamento a implementar a reforma; e, finalmente, quando a crise é tão profunda, que reforma o sistema passa a ser a alternativa entre sobreviver ou sucumbir.
Nos encontramos na última situação. A gravidade econômica e política em que o país se encontra pode ser o gatilho, de que tanto necessitamos, para reformar o sistema em prol de uma tributação ótima, que sirva de propulsor de crescimento e não como seu obstáculo.
Cristiano Carvalho e Luciano Benetti Timm
Cristiano Carvalho
Livre-Docente em Direito Tributário (USP), Pós-Doutor em Direito e Economia (U.C. Berkeley), mestre e doutor em Direito Tributário (PUC-SP), advogado.
Luciano Benetti Timm
Mestre e doutor em Direito pela UFRGS, LLM Warwick, vice-presidente da ABDE, Prof UNISINOS/RS e CEU/IICS, advogado.