Princípios de interpretação constitucional. Sua importância prática
Kiyoshi Harada
É do conhecimento geral que a interpretação de preceitos normativos deve ser feita de cima para baixo, isto é, a partir da Constituição Federal e não ao contrário, pois são os textos da Carta Magna que dão fundamento de validade aos demais textos da legislação infraconstitucional, inclusive daqueles oriundos de Emendas.
Mas, para tanto, é preciso distinguir na Constituição as normas-princípios, ou simplesmente princípios, das normas-disposição, ou simplesmente regras que estão espraiadas no corpo do Estatuto Magno. Os princípios se distinguem das regras, porque são representados, quando expressos, por normas munidas do mais alto grau de abstração situando-se em uma posição acentuada dentro do ordenamento jurídico, pairando acima das normas gerais que têm função diretiva e unificadora.
É certo, também, que uma regra não pode ser interpretada contra um princípio expresso ou implícito.
O problema surge quando há um conflito entre os princípios constitucionais. Não há, nem pode haver entre os diversos princípios uma hierarquia em sentido normativo. Daí a importância prática de conhecer os princípios de interpretação constitucional para superar eventuais conflitos de princípios constitucionais. Examinemos em apertadíssima síntese os principais princípios interpretativos.
O princípio da unidade da Constituição, bastante enfatizado por Canotilho, obriga o intérprete a considerar a Constituição em sua globalidade e procurar harmonizar as normas constitucionais a serem aplicadas.
O princípio da concordância prática ou da harmonização obriga o intérprete a não extrair a validade e aplicação de um determinado princípio à custa do esvaziamento total ou parcial de outro princípio inserido no mesmo plano normativo.
O princípio da máxima efetividade impõe ao intérprete extrair das normas constitucionais o sentido que empreste maior eficácia, isto é, evitar interpretações que conduzam a projeção de seus efeitos apenas para o futuro, como acontece normalmente na interpretação de normas de eficácia limitada que não podem ser confundidas com normas de eficácia contida.
O princípio da interpretação conforme à Constituição visa evitar declaração de inconstitucionalidade de lei, senão quando não puder ser declarada em harmonia com a Constituição. A aplicação desse princípio interpretativo normalmente se faz em face de preceitos normativos infraconstitucionais polissêmicos, ensejando diferentes alternativas de interpretação, tanto em desconformidade com os textos constitucionais, como em conformidade com os textos da Carta Magna, hipótese em que a segunda alternativa deve prevalecer sobre a primeira delas, evitando-se a declaração de inconstitucionalidade. A interpretação conforme não implica redução do texto interpretado.
Há ainda outros princípios, como o da proporcionalidade que se desdobra em três aspectos fundamentais: a adequação, concernente ao meio adequado para a consecução do objetivo visado; a necessidade significando que o meio escolhido não deve ultrapassar os limites indispensáveis à consecução dos fins visados; e a proporcionalidade em sentido estrito que significa a obtenção do máximo de eficácia com o mínimo de restrição imposta pelo emprego de meios necessário e adequado.
Sem conhecer os princípios de interpretação constitucional, analisando determinado princípio constitucional de forma isolada, como é bastante comum na seara do direito tributário, o resultado alcançado pelo interprete será necessariamente falho. E julgados existem que, fundados exclusivamente em um determinado princípio constitucional, alcançaram conclusões que não traduzem a vontade expressa na Constituição como um todo.
Para ilustrar, um determinado autor de nomeada sustenta, por exemplo, a constitucionalidade da tributação progressiva fundada na faixa de valores do faturamento no regime de tributação pelo Simples Nacional, apoiando-se exclusivamente no princípio da isonomia. Esse princípio proíbe distinção entre os iguais e determina a distinção entre os desiguais. Assim quem se situar na faixa de valores de faturamento maior do que outro contribuinte que se situa na faixa de valor menor deverá ser tributado por uma alíquota maior. Só que se essa progressão conduz, por exemplo, à aplicação da alíquota de até 22,45%, como a prevista no Anexo VI acrescido pela Lei Complementar nº 147/14. Há, no meu entender, uma clara afronta ao princípio constitucional que determina tratamento “favorecido” ou “diferenciado” para incentivar as micro e pequenas empresas mediante “simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias”.
De fato, se pelo regime comum do lucro presumido a alíquota gira em torno de 11% ou 12%, conforme o caso, resta claro que a aplicação de uma alíquota de até 22,45% afronta ao princípio do tratamento “favorecido” ou “diferenciado” que está expresso no corpo da Constituição.
No caso, impõe-se a interpretação de acordo com os princípios interpretativos retromencionados para alcançar o resultado conformado com a Constituição Federal.
Outro exemplo concreto diz respeito à legislação do IPTU de São Paulo que, a pretexto de obter a tributação de acordo com a capacidade contributiva de cada proprietário de imóvel,, aplica fatores de redução e de aumento do imposto em função de faixa de valor venal, só que distinguindo os percentuais de redução e de aumento em função da destinação dos imóveis que se situam na mesma faixa de valor venal, isto é, espelham a mesma capacidade contributiva. Quem é proprietário de um terreno cujo valor venal é de R$ 200.000,00 ostenta a mesma capacidade de quem é proprietário de prédio residencial cujo o valor venal é igualmente de R$ 200.000,00, pelo que não há explicação plausível para esse proprietário de imóvel residencial ser contemplado com uma redução menor e ao mesmo tempo um acréscimo maior do que o proprietário de um terreno de idêntico valor venal. No caso, além da violação do princípio de capacidade contributiva, haverá afronta ao princípio da isonomia, porquanto a base de cálculo do IPTU é o valor venal. Afrontará, também, o princípio da razoabilidade conduzindo a um imposto de efeito confiscatório, desencadeando uma corrente de violações de princípios constitucionais. Essa progressividade só poderia ser corretamente examinada de acordo com o princípio da unidade de Constituição, de sorte que os diversos princípios tributários se harmonizem e não conflitem.
Na prática do dia a dia deparamos com uma série de escritos e de jurisprudência que consagram a aplicação de um determinado princípio constitucional que implica anulação de outro princípio constitucional. É verdade que julgados posteriores vêm eliminado essas antinomias à medida que forem sendo detectadas, acarretando insegurança jurídica decorrente de constantes alterações jurisprudenciais sem que houvesse alteração legislativa.
SP, 8-9-14.
Kiyoshi Harada
Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.