A inconstitucionalidade da Instrução Normativa SMF/SP nº 19, de 16/12/2011
Gabriel Machado Marinelli
No último dia 17 de dezembro foi publicada, no Diário Oficial do Município de São Paulo (01), a Instrução Normativa SMF/SP nº 19/2011, da lavra do Secretário Municipal de Finanças. A partir da aludida Instrução Normativa, o Município de São Paulo disciplinou a suspensão da autorização para emissão da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica ("NFS-e") para contribuintes considerados inadimplentes.
De acordo com a Instrução Normativa, que passou a produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 2012, contribuintes que deixarem de recolher o Imposto Sobre Serviços ("ISS") por 04 (quatro) meses consecutivos ou 06 (seis) meses alternados (dentro de um período de doze meses) estarão proibidos de emitir as chamadas NFS-e.
A questão muito se assemelha com diversas discussões já travadas no âmbito dos Tribunais brasileiros, com cenário amplamente favorável aos contribuintes. Na prática, o Fisco Municipal, ao invés de buscar o recebimento de seu crédito por meio dos procedimentos administrativos e/ou judiciais legalmente previstos, tolhe o particular de exercer normalmente suas atividades econômicas, atividades estas, aliás, que permitirão ao contribuinte regularizar sua situação perante o Fisco.
A lógica do Fisco Municipal paulistano é rigorosamente a mesma já utilizada pela Administração Pública nos casos de apreensão de mercadoria como meio de forçar o contribuinte ao recolhimento de tributo ou multa. Situações como essas são absolutamente inconstitucionais, já que o contribuinte fica impedido do exercício de sua atividade empresarial, violando, assim, o quanto disposto tanto pelo artigo 5º, inciso XIII, quanto pelo parágrafo único do artigo 170, ambos da Constituição Federal (02). Vale lembrar que o Poder Público dispõe de processo administrativo e judicial próprio para apuração e combate à inadimplência por parte do sujeito passivo da obrigação tributária, sendo indevido o uso de métodos que inviabilizem a própria atividade econômica do sujeito.
Aceitar a prevalência da vontade da Secretaria Municipal de Finanças do Município de São Paulo implica reconhecer como legítimas situações que, há tempos, são combatidas pelo Supremo Tribunal Federal. Basta lembrar, por exemplo, do teor das Súmulas 70, 323 e 547, in verbis:
"Súmula 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo."
"Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos."
"Súmula 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais."
De fato, a nosso ver – apesar da posição externada pelo Ilustre Secretário Municipal de Finanças que, em matéria veiculada no Jornal Valor Econômico de 06 de janeiro de 2012, sugeriu ser essa uma causa perdida para as empresas – a malfadada Instrução Normativa SMF/SP nº 19/2011 fere frontalmente o direito constitucional à livre iniciativa econômica, uma vez que cria mecanismo coercitivo (não autorizado pelo sistema jurídico-tributário nacional) para exigir o cumprimento de obrigações tributárias. Nesse sentido, aliás, já se manifestaram diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal, cujas lições podem ser sintetizadas por meio dos votos proferidos pelos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello no Recurso Extraordinário nº. 413.782-8 (SC):
"Nota-se a tomada de empréstimo de meio coercitivo, objetivando a satisfação de débito tributário. Em síntese, a legislação local submete o contribuinte à exceção de emitir notas fiscais individualizadas, quando em débito para com o Fisco. Entendo conflitante com a Carta da República o procedimento adotado. A Fazenda há de procurar o Judiciário visando à cobrança, via executivo fiscal, do que devido, mostrando-se impertinente recorrer a métodos que acabem inviabilizando a própria atividade econômica, como é o relativo à proibição de as empresas em débito, no tocante a obrigações, principal e acessórias, vir a emitir documentos considerados como incluídos no gênero fiscal." (trecho do voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, Relator do RE nº. 413.782-8/SC).
"O litígio em causa revela-se impregnado de inquestionável relevo jurídico. É que fez instaurar, na presente sede recursal extraordinária, discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita.
No caso ora em análise, põe-se em destaque o exame da legitimidade constitucional de exigência estatal que erigiu a prévia satisfação de débito tributário em requisito necessário à outorga, pelo Poder Público, de autorização para a impressão de documentos fiscais.
Cabe acentuar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, tendo presentes os postulados constitucionais que asseguram a livre prática de atividades econômicas lícitas (CF, art 170, parágrafo único), de um lado, e a liberdade de exercício profissional (CF, art 5º, XIII), de outro – e considerando, ainda, que o Poder Publico dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários -, firmou orientação jurisprudencial, hoje consubstanciada em enunciados sumulares (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, Rel. Min. OCTAVIO GALOTTI).
Esse entendimento – cumpre enfatizar – tem sido observado em sucessivos julgamentos proferidos por esta Suprema Corte, quer sob a égide do anterior regime constitucional, quer em face da vigente Constituição da República (RTJ 33/99, Rel. Min. EVANDRO LINS- RTJ 45/859, Rel. Min. ADAUCTO CARDOSO – RTJ 73/821, Rel. Min. LEITÃO DE ABREU – RTJ 100/1091, Rel. Min. DJACI FALCÂO – RTJ 111/1307, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RTJ115/1439, Rel. Min. OSCAR CORREA – RTJ 138/847, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RTJ 177/961, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 111.042/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, v.g.).
(…)
O fato irrecusável, nesta matéria, como já evidenciado pela própria jurisprudência desta Suprema Corte, é que o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles – e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional – constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso.
Esse comportamento estatal – porque arbitrário e inadmissível – também tem sido igualmente censurado por autorizado magistério doutrinário (HUGO DE BRITO MACHADO, "Sanções Políticas no Direito Tributário", in Revista Dialética de Direito Tributário nº30, p. 46/47):
(…)
A importância da nota fiscal ou AIDF para o desenvolvimento das atividades comerciais de uma empresa seja ela de indústria ou comércio, decorre do fato de que somente por meio destas é que se torna possível oficializar e documentar operações de circulação de mercadorias, a ponto de que sem essas, a circulação de mercadoria é atividade ilícita, punível, inclusive, com a respectiva apreensão das mesmas.
(…)
Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados.
A análise dos autos evidencia que o acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina diverge da orientação prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (RE 409.956/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 409.958/RS, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 414.714/RS, Rel.Min JOAQUIM BARBOSA – RE424.061/RS, Rel.Min SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 434.987/RS Rel.Min. CEZAR PELUSO, v.g.).
(…)
Sendo assim, e com estas considerações, peço vênia para acompanhar o douto voto do eminente Ministro MARCO AURÉLIO e, em consequência, conhecer e dar provimento ao presente recurso extraordinário." (trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, no RE nº. 413.782-8/SC).
Vê-se, portanto, que, ao contrário do que pretende fazer crer o Secretário Municipal de Finanças, a Instrução Normativa SFM/SP nº 19/2011 apresenta-se em absoluto desacordo com o posicionamento historicamente defendido pelo Supremo Tribunal Federal acerca da matéria.
Notas
(01) Ret. pelo DOM de 20 de dezembro de 2011.
(02) "Art. 5º. (…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;"
"Art. 170. (…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei."
Gabriel Machado Marinelli
Advogado. Sócio de Tilkian e Marinelli Sociedade de Advogados.