Isenções e o princípio da isonomia tributária
Kiyoshi Harada
As isenções casuísticas que são frequentes na legislação tributária são inconstitucionais, por afronta ao princípio de isonomia.
Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio genérico da isonomia. 2.1 Os dois aspectos do princípio da isonomia. 3 O princípio específico da isonomia tributária. 4 O exame do projeto de lei nº 2.607/2011 que institui a isenção do imposto de renda para os professores da rede de ensino oficial.
1 Introdução
Os tributos em geral devem observar os princípios da generalidade e da universalidade da tributação para que, em tese, todas as pessoas, físicas e jurídicas, sejam tributadas e para que todos os bens, rendas e serviços sejam alcançados pela tributação.
É claro que o fenômeno tributário deve se adequar ao princípio da capacidade contributiva, que é uma decorrência do princípio maior da isonomia tributária, como veremos mais adiante.
O propósito deste artigo é o de demonstrar que as isenções subjetivas casuísticas que permeiam a legislação tributária nas três esferas impositivas são inconstitucionais por afronta ao princípio de isonomia tributária.
2 O princípio genérico da isonomia
O princípio da isonomia veda o tratamento jurídico diferenciado entre as pessoas que se encontram sob o mesmo pressuposto fático, assim como o tratamento igualitário das pessoas que se encontram sob pressupostos fáticos diferentes.
Esse princípio, de aplicação cogente imediata, voltado para o legislador ordinário, tem matriz constitucional no artigo 5° da CF, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país…”.
Essa proibição constitucional ampla abrange, certamente, a proibição de realizar distinção em função do sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas como estava na ordem constitucional antecedente. Proibir distinções de qualquer natureza, como está no texto vigente, significa não distinguir as pessoas em razão de sua individualidade. Significa que as inevitáveis diferenças individuais entre as pessoas são juridicamente irrelevantes, devendo todos os indivíduos merecer tratamento jurídico isonômico.
2.1 Os dois aspectos do princípio da isonomia
O princípio da isonomia deve ser analisado em seu duplo aspecto: de um lado, a proibição de distinguir entre os iguais; de outro lado, o dever de discriminar os desiguais. Examinemo-los separadamente.
A proibição de distinguir entre os iguais ou o dever de não distinguir significa que a lei deve tratar igualmente todas as pessoas ou determinado grupo de pessoas, indiferentes às particularidades de cada pessoa (branca, negra, alta, baixa, gorda, magra, crente, ateu etc.).
Quando o tratamento diferenciado dispensado pelas normas jurídicas guarda relação de pertinência lógica com a razão diferencial (motivo do tratamento discriminatório) não há que se falar em afronta ao princípio da isonomia. É o que ensina Celso Antonio Bandeira de Mello.[1]
Por isso, esse renomado autor afirma que não afrontaria o princípio da isonomia a lei que, regulando o preenchimento de cargos da “Polícia Feminina” [2] excluísse os homens do concurso de ingresso.
Daí porque não há afronta a esse princípio, quando a lei elege determinada situação objetivamente considerada para prescrever a inclusão ou exclusão de determinado benefício, ou imposição de certo gravame. Exemplo: isenção do imposto de renda para aposentados ou pensionistas com mais de 65 anos de idade, isenção para portadores de doenças graves definidas em lei etc. Todos os que preencherem tais requisitos gozam a isenção tributária.
A outra face do princípio da isonomia é o dever de distinguir entre os desiguais.
Não se pode, por exemplo, exigir, a título de imposto de renda, uma quantia fixa sem considerar a renda de cada um. Esse imposto há de ser proporcional à renda de cada um.
A graduação do imposto segundo a capacidade contributiva de cada um é uma imposição dos tempos modernos incorporada na nossa Constituição (§ 1º, do art. 145 da CF), objetivando uma ordem jurídico-tributária justa. Cada um contribui para o cumprimento da finalidade do Estado na medida de sua capacidade contributiva.
Uma lei tributária não pode desconsiderar as desigualdades existentes, prescrevendo tratamento jurídico isonômico, sob pena de afrontar o princípio da capacidade contributiva que, em última análise, resulta do princípio da isonomia, formulado de forma positiva, e não apenas de forma negativa, para proibir a discriminação.
O aspecto negativo do princípio da isonomia (proibição de discriminar entre os iguais) está para o princípio da generalidade da tributação, enquanto que o aspecto positivo desse princípio (dever de discriminar os desiguais) está para o princípio da proporcionalidade da tributação, ou da graduação do tributo segundo a capacidade contributiva de cada um.
3 O princípio específico da isonomia tributária
Tendo em vista as várias isenções subjetivas que ofendiam o princípio da isonomia em seu duplo aspecto retro examinado, o constituinte de 1988 prescreveu o aludido princípio de forma bem enfática como se pode depreender do seu artigo 150, II:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
…
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”
A redação detalhada do texto retro transcrito impede seja contornado o princípio da isonomia por meio de rótulos dados aos rendimentos, títulos ou direitos, bem como veda expressamente a distinção em razão da ocupação profissional ou função exercida pelo contribuinte.
4 O exame do projeto de lei nº 2.607/2011 que institui a isenção do imposto de renda para os professores da rede de ensino oficial
Feitas as considerações retro, examinemos a constitucionalidade ou não do Projeto de Lei n° 2.607/2011 de autoria do nobre Deputado Felipe Bornier que instituiu a isenção do imposto de renda a favor dos professores da rede pública, nos seguintes termos:
“Art. 2º Inclua-se ao art. 6º da Lei n.º 7.713, de 22 de dezembro de 1988, o seguinte inc. XXIII:
XXIII – os valores recebidos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a título de remuneração, quando o beneficiário for professor lotado e em efetivo exercício na rede pública de educação infantil, fundamental, média e superior.”
Em suas justificativas o nobre proponente da medida legislativa aduz, dentre outras coisas, que:
a) “… o professor tem sido sacrificado, não só na fixação do salário em relação ao emprego, como também na tributação de seus ganhos;”
b) “… os educadores têm lugar de honra nos três poderes constituídos: muitos de nossos juízes, legisladores e altos funcionários da administração pública são originários da carreira acadêmica, e têm usado a experiência adquirida no trato com os alunos para o desempenho de suas funções públicas.”
Com a devida vênia, não são apenas o professores que são sacrificados na tributação de seus ganhos. Todos os são. A isenção de uns implicará sacrifício maior de outros, porque não há como o Estado manter o seu padrão normal de prestação de serviços públicos com a diminuição de sua receita.
Quanto ao fato de que muitos juízes, legisladores e altos funcionários da administração pública são originários da carreira acadêmica tem-se que todos eles (magistrados, legisladores e altos funcionários) são contribuintes do imposto de renda, a partir do advento da Constituição de 1988, que não mais permite a distinção em razão da ocupação profissional ou função exercida pelo contribuinte.
Em que pese a louvável preocupação com a nobre classe de professores, a propositura legislativa esbarra em dupla violação do princípio da isonomia tributária.
Primeiramente, porque a atividade do professor não apresenta uma singularidade de guarde pertinência lógica com a razão do tratamento diferencial pretendido. A profissão de professor é tão importante e árdua quanto a de um magistrado, de um legislador, de um consultor jurídico, de um militar etc.
Em segundo lugar, porque o projeto legislativo discrimina os professores da rede privada que ficam à margem do benefício tributário. Pergunta-se, há fator de discrimen adotado pelo legislador que guarda relação de pertinência lógica com a diferenciação de regime adotado? Os professores da rede particular não estão sofrendo a mesma imposição tributária? Esses professores não estão igualmente ingressando nas carreiras de magistrados e de altos funcionários de administração? Eles não estão ingressando igualmente na carreira política?
Daí a dupla discriminação constitucionalmente vedada.
E mais, o texto redigido como está – professor lotado e em seu efetivo exercício – quando o professor beneficiado por essa singular propositura legislativa se aposentar perderá o favor fiscal.
Admirável a luta do nobre Deputado a favor da classe dos professores a que já pertenci, mas a propositura não deve passar pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em razão dos vícios apontados.
Notas
[1] O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 55-60.
[2] Ob. cit., p. 23.
Kiyoshi Harada
Jurista. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Professor. Especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP.