Parceria rural na atividade canavieira: aspectos fiscais
Por Fábio Pallaretti Calcini
15/12/2025 12:00 am
Já tratamos em nossa coluna, em algumas ocasiões, dos contratos agrários e seus aspectos fiscais, sobretudo, em razão do constante debate a respeito da diferença entre o contrato de parceria agrícola/pecuária e de arrendamento rural [1].
Acreditamos, todavia, que tem existido por parte da Receita Federal e, também, do próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) uma má compreensão do instituto, sobretudo, à luz da legislação agrária e fiscal, bem como dos aspectos pragmáticos.
Optamos, neste artigo, por explorar o contrato de parceria no setor canavieiro sob a perspectiva fiscal, fazendo uma análise crítica de recente decisão proferida pelo Carf sobre o tema [2].
Contrato de parceria no setor canavieiro
O contrato de parceria no setor canavieiro tem o mesmo fundamento dos demais contratos agrários, cabendo ser estruturado à luz, principalmente, do Estatuto da Terra (ET), conforme Lei nº 4.504/64, em que se estabelece os principais elementos e requisitos desse negócio jurídico voltado para o setor do agronegócio.
Neste sentido, preceitua o artigo 96, § 1º, dessa legislação:
“§ 1o Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos: (Incluído pela Lei nº 11.443, de 2007).
I – caso fortuito e de força maior do empreendimento rural; (Incluído pela Lei nº 11.443, de 2007).
II – dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais estabelecidos no inciso VI do caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.443, de 2007). [3]
III – variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural. (Incluído pela Lei nº 11.443, de 2007).”
Importante notar que a lei, expressamente, estabelece uma relação de proporções a serem observadas (de 10% a 75%), quando o risco resultar no contrato de parceria “dos frutos, produtos ou lucros”. Isso significa dizer que, do ponto de vista do risco, se houver previsão de caso fortuito ou força maior ou mesmo contrapartida relacionada às “variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural”, a lei não impõe, muito menos limite ou traz como elemento caracterizador do risco o cumprimento dos percentuais de divisão das proporções estabelecidas no artigo 96, VI, do Estatuto da Terra.
Essas ponderações são relevantes, independentemente, do contrato de parceira e merecem muita atenção.
Em geral, é comum, comportando variações, termos nos contratos de parceria agrícola do setor canavieiro voltado à produção rural de cana-de-açúcar, a previsão de cláusula contratual onde o proprietário do imóvel rural cede para exploração do parceiro outorgado mediante partilha de risco prevendo um percentual entre 10% até 30%, a depender do bem cedido.
De outro lado, faz-se também um contrato de compra e venda futura da cana-de-açúcar do parceiro outorgante (ou no mesmo contrato de parceria), onde, em regra, há previsão de pagamento de uma quantidade fixa de tonelada de cana por alqueire ou hectare, fixando, ainda, o ATR (Açúcar Total Recuperável) a ser aplicado. Com fundamento em referida previsão, inclusive, faz-se pagamentos mensais no prazo de duração do contrato.
Dentro deste contexto, iremos analisar a questão tributária.
Questões fiscais
Já é de conhecimento que, para fins fiscais, reconhecer a receita como atividade rural permite uma tributação diferenciada para fins de imposto sobre a renda, na medida em que se aplica a legislação desta atividade, notadamente, a Lei nº 8.023/90.
A grande questão envolve avaliar se, diante de tais condições e previsões contratuais, principalmente, a previsão do ATR e da tonelada a ser adquirida, haveria a desconsideração deste contrato como parceria agrícola e respectiva tributação da atividade rural, requalificando como arrendamento rural, implicando em outra forma de apuração tributária, inclusive, para fins de imposto sobre a renda, mais onerosa.
Seguindo o contexto fático e jurídico proposto, se existe na operação o cumprimento do percentual de produção previsto no contrato de parceria (entre 10% a 30%), a posterior aquisição da cana mediante pagamento de ATR previamente estabelecido por tonelada não nos parece excluir o risco e as características de um contrato de parceria, exatamente como determina a legislação, não havendo, inclusive, qualquer vicio no fato de existir antecipações, que serão ajustadas ao percentual proposto e executado em contrato.
A discussão, entretanto, torna-se mais complexa quando não há previsão contratual de proporções, ou quando existentes, estas não são exatamente cumpridas, ficando o risco atrelado, sobretudo, à variação do ATR estabelecido pelo Consecana (R$/kg ATR). Ou seja, o parceiro outorgante recebe valores variações decorrentes do ATR de sua produção, bem como o preço estabelecido em reais (R$) por quilo de ATR. Em algumas ocasiões, a própria quantidade de ATR por tonelada já é previamente estabelecida, ficando a variação somente em relação ao preço por quilo, que varia mensalmente, inclusive, por estado. Estando em São Paulo em aproximadamente R$ 1,0985 por quilo.
Nesses casos, em que o risco está atrelado ao ATR, seja da produção e/ou do preço fixado pelo Consecana, poder-se-ia questionar o contrato de parceria agrícola sob a perspectiva fiscal?
Recente precedente do Carf
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) avaliou um caso concreto, no qual os contratos de parceria canavieira previam o recebimento pelo parceiro outorgante uma quantidade fixa de cana por alqueire ou mesmo de quilogramas por ATR.
O entendimento, por maioria, da turma foi no sentido de que a desconsideração do fisco federal do contrato de parceria, qualificando como arrendamento seria legítima, na medida em que sustenta o voto vencedor, inexistir risco [4]:
“Apesar das variações na forma de apuração do preço a ser pago ao cedente/vendedor, o pagamento com base em valores fixos de ATR foi aplicado em todos os contratos, como bem demonstrado na decisão recorrida.
Verificamos, também, que todos os contratos continham cláusulas estabelecendo o compartilhamento de riscos decorrentes de caso fortuito ou força maior
(…)
No caso concreto analisado, apesar da existência de cláusulas contratuais estabelecendo o compartilhamento de riscos por caso fortuito ou força maior, a pactuação no sentido de fixação do preço, independentemente da produção colhida, torna irrelevante tal dispositivo contratual, já que não alteraria a os valores recebidos. Assim, nos parece que o Recorrente buscou transmitir a ideia de uma eventual aleatoriedade aos contratos, com objetivo de ter reconhecida a parceria rural.
Com relação à variação dos preços dos frutos obtidos, embora constitua elemento suficiente para caracterizar o risco típico dos contratos de parcerias, tal fator não pode ser aplicado ao caso concreto em julgamento. Como bem apontado na decisão recorrida, apesar dos contratos de parcerias estabelecerem a partilha de resultados com base na produção colhida, a celebração de contrato de venda de safra futura pelas mesmas partes descaracterizou a forma originalmente pactuada. Certamente, o legislador ao estabelecer que os riscos, relacionados no §1° do art.96 da Lei 4.504/1964, não necessitariam ser cumulativos, não considerou a hipótese de celebração dos referidos contratos de compra e venda futura. Portanto não cabe interpretação puramente literal do dispositivo.”
A decisão, em síntese, não reconhece ser suficiente a previsão da variação do ATR, prevista no contrato de compra e venda da cana, inclusive, sustentando que tal negócio jurídico não poderia considerado para analisar o risco.
Reflexões a respeito do tema e precedente citado
Nossas reflexões estarão embasadas naquilo que consta do acórdão, uma vez que não tivemos acesso a todo o conjunto fático-probatório.
Entendemos que o Carf não interpretou adequadamente o caso concreto, na medida em que desconsiderou as peculiaridades existentes no setor e, sobretudo, a previsão expressa no ET de que a variação de preço seria uma das hipóteses que caracterizam o risco no contrato de parceria.
Ora, a previsão do ATR traz significativas variações que decorrem da quantidade de quilograma da cana produzida e vendida possui, o que já geraria um risco e uma variação não previsível, além do próprio valor do quilograma (R$ kg/ATR), configurando este último item, em especial, nítida hipótese de “variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural”, caracterizador do risco.
Risco não significa necessidade de perda total, desastre, mas a qualidade própria do setor do agronegócio, com variações, de não se ter, desde logo, a exata dimensão de quanto ao final irá receber, mesmo que tenha uma previsão de tonelada por alqueire ou se ajuste a quantidade de quilogramas por tonelada, uma vez que o preço do ATR irá variar e não se sabe exatamente em que medida. A variação do valor em R$ do ATR por quilograma é variação de preço, não se podendo, simplesmente, ignorar a lei.
O acórdão, ademais, incorre em equívocos, ao ignorar a previsão da cláusula de caso fortuito ou de força maior, que seria também suficiente para se reconhecer o risco.
Infelizmente, o que notamos, em verdade, é uma pura contrariedade em virtude de existir uma tributação favorecida e diferenciada para tais casos. Aliás, este trecho para tal crítica é emblemático, confirmando este aspecto e a subjetividade empregada, ao afirmar que o “fato de o preço da cana-de-açúcar sofrer variações, com possível influência do ATR, não é suficiente para configurar o risco descrito no §1, inciso III do art.96”. Ou seja, o voto reconhece que o preço da cana sofre variações, em decorrência do ATR, mas diz, sem embasamento legal e em total contrariedade à lei que não é suficiente. O que o próprio legislador estabeleceu como risco expressamente, ou seja, “variações de preço dos frutos” não vale?
Busca-se, claramente, a todo custo, em descumprimento da própria lei, desconsiderar tais negócios jurídicos, instaurando um cenário de insegurança jurídica em matéria fiscal quanto ao agronegócio nacional, única e exclusivamente para se cumprir o viés arrecadatório.
Santo Deus!
[1] – Sobre o tema cf. CALCINI, Fábio Pallaretti. Efeitos fiscais para os contratos agrários de parceria e arrendamento; Contrato de parceria agrícola e aspectos fiscais; Eterna novela sobre os contratos de parceria rural e arrendamento
[2] Carf, 1ª Seção, Ac. 2201-012.170 – 2ª SEÇÃO/2ª CÂMARA/1ª TURMA ORDINÁRIA, j. 13/08/2025.
[3] – art. 96, VI – na participação dos frutos da parceria, a quota do proprietário não poderá ser superior a:
a) 20% (vinte por cento), quando concorrer apenas com a terra nua; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007). b) 25% (vinte e cinco por cento), quando concorrer com a terra preparada; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007). c) 30% (trinta por cento), quando concorrer com a terra preparada e moradia; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).(….”
[4] Carf, 1ª Seção, Ac. 2201-012.170 – 2ª Seção/2ª Câmara/1ª Turma Ordinária, j. 13/8/2025.
Mini Curriculum
é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet, sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.
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