Cotitularidade fiscalizatória e a revisão do lançamento conjunto no IBS

Por Lázaro Reis Pinheiro Silva

15/12/2025 12:00 am

Dentre as diversas alterações promovidas pela Emenda Constitucional 132/2023, não parece exagerado afirmar que, seja do ponto de vista teórico, seja numa perspectiva acentuadamente pragmática, a mais desafiadora das inovações empreendidas consiste na substituição dos atuais ICMS e ISSQN, pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência administrativa compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios.

Esta unificação de diferentes materialidades, que, a bem da verdade, não deixa de contemplar uma dualidade de relações jurídicas [1] inconfundíveis, embora parcialmente coincidentes e deflagradas a partir da juridicização de um mesmo evento — operação com bens e serviços —, tem descortinado uma série de desafios relacionados ao regramento infraconstitucional e à futura constituição, desenvolvimento e extinção das relações jurídico-tributárias pertinentes ao novo imposto.

Diante do modelo de competência tributária administrativa de exercício não privativo [2] inaugurado pelo constituinte reformador, o processo de positivação do IBS surge marcado por um fluxo bastante peculiar, no qual a instituição da regra-matriz de incidência tributária coube ao Poder Legislativo da União — exercitada com a edição da Lei Complementar 214/2025 —, porém, a sua aplicação, materializadora das obrigações tributárias de IBS, estará a cargo dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, na medida em que lhes foi assegurada a competência administrativa concernente ao novo imposto.

Todavia, o exercício dessa competência (a administrativa) encontra-se marcado por uma inafastável e desafiadora condicionante: a de ser exercida “de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor”.

Consoante dispõe o artigo 156-B, § 2º, V [3] da Constituição, incumbirá aos estados, Distrito Federal e aos municípios exercer de forma integrada e sob a coordenação do Comitê Gestor, “a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial” referentes ao imposto, o que farão, “no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias”, a revelar, portanto, um novo patamar de cooperação federativa, que, ao fim e ao cabo, anuncia forte tendência à proscrição de iniciativas exclusivas dos entes federados.

No entanto, se inicialmente chegou-se a cogitar de uma verdadeira concentração do exercício da capacidade tributária ativa no próprio Comitê Gestor, em verdadeira substituição aos próprios entes detentores da sujeição ativa do IBS — a qual, aliás, revelaria duvidosa constitucionalidade —, a conformação legislativa trazida no Projeto de Lei Complementar 108/2024 tomou caminho claramente distinto, ao estabelecer uma fiscalização tributária necessariamente compartilhada, buscando evitar o risco à uniformidade e à segurança jurídica que decorreria do exercício descompassado da capacidade tributária ativa pelos entes federados.

Ao exame da disciplina projetada pelo legislador complementar, colhe-se um escopo claro de tolher a possibilidade de fluxos de positivação paralelos para o IBS, fixando-se um exercício necessariamente conjunto da fiscalização tributária, o qual, a despeito de poder congregar uma multiplicidade de entes federados, desaguará em um único auto de infração de IBS, abrangendo a totalidade do imposto (artigo 4º, V [4]).

Lançamento tributário
Não há dúvida de que o modelo de exercício integrado da fiscalização concernente ao IBS provoca importantes reflexões sobre o lançamento tributário, que não mais decorrerá da atuação isolada de uma única administração tributária, e, supreendentemente, poderá resultar de fiscalização que sequer tenha como titular ou cotitular os entes federados destinatários da operação tributada e, por conseguinte, titulares da sujeição ativa do imposto.

Basta cogitar da possibilidade de, ao menos em tese, a fiscalização iniciada por ente federado sequer desaguar na constituição de crédito tributário em seu favor, como, por exemplo, na hipótese de existir controvérsia sobre a efetiva destinação de dadas operações com bens e serviços a seu território, em que se conclui, ao final, que as operações eram efetivamente destinadas a Estado distinto e não àquele por cuja iniciativa o procedimento fiscalizatório foi instaurado.

Nessa hipótese, desde que o município ou estado de efetivo destino da operação tenha, ao menos, se habilitado ou delegado competência administrativa (artigo 4º, V), a fiscalização poderá resultar em lançamento tributário do IBS correspondente, promovido por ente federativo não destinatário das operações e, consequentemente, não detentor da sujeição ativa do imposto.

Situação essa que conforma uma verdadeira descentralização fiscalizatória, de modo que a atuação de uma administração tributária passa a ocorrer em função de todo o sistema do IBS, e não apenas de seu próprio interesse arrecadatório.

Nessa perspectiva, aliás, é revelada a necessidade de que, em sendo o lançamento tributário do IBS fruto de uma atuação conjunta de diferentes administrações tributárias, na mesma medida deve ser compreendida a possibilidade de revisão do lançamento, sob pena de restar contrariada a clara diretriz constitucional da unicidade de exercício da capacidade tributária ativa do IBS e, de outra parte, comprometido o próprio direito do contribuinte ao contraditório efetivo.

Assim, realizado o lançamento tributário de IBS, resultante de uma fiscalização compartilhada, todos os demais entes federados estarão inevitavelmente vinculados aos critérios jurídicos adotados naquela autuação, relativamente àquele contribuinte, àqueles fatos geradores e período, ainda que não tenham tomado parte no procedimento fiscalizatório.

Do contrário, restaria contrariado o artigo 146 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual “a modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua modificação”.

Tal constatação realça a grande relevância dos procedimentos de uniformização a serem estabelecidos no âmbito do comitê gestor e da efetiva participação das administrações tributárias nos processos fiscalizatórios de seu interesse, uma vez que, à luz da disciplina estabelecida pelo legislador complementar, passam a atuar sob o manto da unicidade de exercício da capacidade tributária ativa.

De outra parte, também a possibilidade de revisão de lançamento em decorrência de “fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior” (artigo 149, VIII do CTN) restará impactada. Isto porque nenhuma Administração Tributária poderá considerar como fato novo, a ensejar a pretensão de revisão de lançamento por “erro de fato”, aqueles já conhecidos por qualquer dos entes federados e devidamente apreciados em procedimento de fiscalização, ainda que dele não tenha participado.

Portanto, em se tratando de IBS, afigura-se imprescindível uma releitura do lançamento tributário e das possibilidades de sua revisão, à luz do novo paradigma estabelecido para a constituição dos créditos tributários do imposto, a fim de que seja preservada a plenitude do exercício da capacidade tributária ativa pelos entes federados, sem descurar, contudo, da efetiva possibilidade de exercício do contraditório por parte dos contribuintes, diante das obrigações tributárias que venham a ser constituídas.

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[1] Aqui

[2] Para mais a respeito da questão relativa à identificação da competência efetivamente compartilhada sugerimos leitura do seguinte artigo também desta coluna: aqui

[3] Art. 156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A:
2º Na forma da lei complementar:

V – a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão definir hipóteses de delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os entes federativos;

[4] Em suma, a fiscalização tributária do IBS pressuporá registro em sistema próprio (art. 2º, III), de gestão compartilhada entre o CGIBS e a RFB, e poderá ser iniciada pelas Administrações Tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em cujos territórios estejam situados os contribuintes ou para os quais sejam destinadas as operações com bens e serviços. A iniciativa fiscalizatória, no entanto, longe de ser exclusiva, abre-se à participação de entes potencialmente interessados, inclusive com esteio na existência de indícios de que as operações objeto de fiscalização sejam efetivamente destinadas ao seu território (art. 3, § 1º), devendo ser exercida de forma conjunta e integrada (art. 4º, § 2º), cabendo ao regulamento do IBS estabelecer os critérios para definição dos entes federativos titular e cotitular da fiscalização (art. 4, § 3º), os quais podem, inclusive, pertencer à mesma esfera federativa, e cuja preponderância no processo fiscalizatório não exclui os demais entes interessados, os quais poderão habilitar-se como participantes. Aliás, o inciso IV do art. 4º do PLP 108/2024 ainda estabelece uma presunção de delegação por parte do ente federado que não tenha se habilitado oportunamente no procedimento fiscalizatório, e, ao final, aponta que “as administrações tributárias titular e cotitular do procedimento fiscalizatório realizarão o lançamento tributário, o qual será feito pelo somatório das alíquotas do Município e do respectivo Estado de destino das operações, com créditos tributários individualizados por ente federativo, desde que pelo menos um deles tenha se habilitado ao procedimento fiscalizatório ou tenha delegado competência para o lançamento”. Ademais, o § 4º do art. 4º estabelece que “os atos procedimentais serão exercidos perante o sujeito passivo pelas autoridades das administrações tributárias que figurarem como titular ou cotitular da fiscalização”, os quais, ao final, constarão como responsáveis pelo lançamento no auto de infração do IBS, como se extrai do art. 330, § 1º, VII da Lei Complementar n. 214/2025.

Mini Curriculum

é procurador do estado de Goiás, com atuação nos tribunais superiores, mestre pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet, professor do Curso de Especialização em Direito Tributário e do Curso de Extensão Processo Tributário Analítico do Ibet, pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

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