A reforma tributária e a Lei da Informática: o Plano Seldon para o setor de tecnologia
Por Pedro Henrique Rodrigues Muniz Fernandes, Bruno Eduardo Budal Lobo
12/12/2025 12:00 am
Isaac Asimov segue atual. Sim, segue atual, pois A Fundação começa com uma tese simples: transições longas não são atravessadas com improviso, mas com método.
No campo tributário, a convivência entre a Lei da Informática e a implementação do IVA Dual (CBS/IBS) impõe exatamente esse tipo de racional: não basta “acompanhar a lei”, é preciso organizar processos, dados e evidências para sustentar direitos creditórios e manter previsibilidade econômico-financeira, ou seja, estruturar um verdadeiro “Plano Seldon” [1], preparando seus núcleos de “Terminus” [2].
O setor de tecnologia será especialmente pressionado porque opera, ao mesmo tempo, com cadeias industriais (hardware, componentes, industrialização, importação), serviços intensivos em intangíveis (SaaS, cloud, licenças), e modelos híbridos que atravessam diferentes elos de tributação e documentação fiscal.
O primeiro elemento técnico relevante é o cronograma. A reforma tributária do consumo, regulamentada pela LC nº 214/2025, institui a CBS (federal) e o IBS (subnacional) e prevê implementação escalonada até 2033. Em 2026, haverá ano-teste, com alíquotas reduzidas (referencialmente CBS 0,9% e IBS 0,1%) e mecanismos de neutralização por compensação com PIS/Cofins no mesmo período de apuração, condicionados ao cumprimento de obrigações acessórias.
O ponto jurídico-operacional é direto: em 2026, o risco predominante não é aumento de carga “por alíquota”, mas falha de conformidade informacional, capaz de comprometer creditamento, gerar inconsistências sistêmicas e produzir passivo quando o modelo ganhar escala.
Em paralelo, a Lei da Informática continua a operar com requisitos próprios: habilitação, cumprimento do PPB, dispêndios mínimos em PD&I e governança documental robusta.
Direito creditório condicionado
A melhor forma de descrever o benefício, em linguagem tecnicamente precisa, é tratá-lo como direito creditório condicionado: o crédito financeiro é calculado em função de parâmetros legais e regulatórios e depende de comprovação e conservação de evidências.
Essa caracterização é importante porque, sob uma ótica de risco, os eventos mais custosos para empresas habilitadas não são “mudanças de alíquota”, e sim glosas e questionamentos por inconsistência entre projetos, despesas, contratos, relatórios e a realidade operacional auditável.
Spacca
A lógica de PD&I exige um padrão probatório que, na transição para o IVA Dual, tende a se tornar ainda mais relevante, porque todo o sistema caminhará para maior dependência de dados e rastreabilidade.
Nessa mesma linha, convém evitar uma narrativa imprecisa do tipo “o crédito compensa IRPJ/CSLL/IPI/PIS/Cofins”. Em transição, listas fechadas envelhecem rápido e induzem erro interpretativo.
A formulação tecnicamente mais segura é: o crédito financeiro se destina à compensação de débitos próprios relativos a tributos e contribuições federais, de acordo com o regramento aplicável (sistemática de compensação e padrões de compliance). A vantagem dessa redação é preservar a validade do raciocínio mesmo quando tributos do consumo forem substituídos e quando o mix de débitos federais relevantes se alterar no horizonte 2026–2033.
Governança de créditos
O ponto de contato mais sensível entre os regimes está na governança de créditos. O IVA Dual não opera como um “imposto único” na prática: CBS e IBS terão apurações segregadas, controles próprios e lógica de conformidade específica, o que impõe uma disciplina operacional que muitas empresas ainda não possuem.
A segregação não é detalhe: impacta parametrização de ERP, cadastro fiscal, reconciliação de ponta a ponta, e governança de saldos. É nesse ambiente que o setor de tecnologia pode sofrer perdas econômicas silenciosas: não por pagar “mais imposto” nominalmente, mas por não conseguir apropriar, manter e monetizar créditos com previsibilidade, seja por inconsistência documental, seja por falha estrutural de dados.
Parte do debate público tem-se concentrado em alíquotas estimadas (muitas vezes na faixa de 28% para a soma IBS/CBS). Para o setor, essa discussão é incompleta se não vier acompanhada do que, juridicamente, é o núcleo do IVA: a não cumulatividade e suas condições reais de funcionamento.
A não cumulatividade proposta é mais ampla que os modelos tradicionais, mas não deve ser apresentada como absoluta: há hipóteses de vedação ou limitação (especialmente em situações desconectadas da atividade econômica tributada, como usos pessoais) e, sobretudo, há condicionantes operacionais, como documento fiscal idôneo, integridade cadastral, trilha de auditoria e regras de ajustes/estornos.
Custos em tecnologia
Em tecnologia, em que custos típicos envolvem nuvem, licenças, ferramentas, serviços técnicos, marketing digital e infraestrutura, a consequência prática é a necessidade de classificação robusta e coerência entre contrato, execução, faturamento e escrituração. A empresa que não tratar isso como projeto tende a transformar “crédito esperado” em “crédito contestável”.
Além disso, comparações com o regime atual de serviços precisam ser tecnicamente corretas para não induzir conclusões erradas. Não é adequado somar ISS e PIS/Cofins e, ao final, afirmar uma carga equivalente apenas a um dos componentes.
O correto é reconhecer que a carga atual varia conforme o município, o regime (cumulativo/não cumulativo) e a estrutura de custos. No IVA, a carga efetiva será determinada por um conjunto de fatores:
proporção B2B/B2C,
capacidade de repasse,
intensidade de insumos creditáveis,
gestão de saldos credores e tempo de recuperação, e
qualidade da conformidade digital.
Ou seja: o problema não é “a alíquota” isoladamente; é o modelo econômico de captura e uso de crédito.
Nesse contexto, o período 2026–2029 deve ser lido como janela crítica e de oportunidade. De um lado, a Lei de TICs permanece operante e o planejamento de PD&I pode maximizar valor econômico, desde que o desenho de projetos, contratos e governança documental seja consistente e auditável.
De outro lado, 2026 inaugura um ciclo em que fiscalidade passa a exigir, em nível mais alto, uma infraestrutura informacional adequada. O caminho tecnicamente adequado é estruturar um programa integrado com três eixos:
eixo PD&I e Lei de TICs (pipeline plurianual, comprovação e governança),
eixo de monetização/compensação do crédito financeiro (previsibilidade de débitos federais e estratégia de compensação), e
eixo IVA Dual (segregação CBS/IBS, parametrização de sistemas, qualidade de DF-e, reconciliação e controles).
Quando esses eixos são tratados separadamente, o risco típico é que a empresa preserve “a teoria do benefício”, mas perca parte do resultado econômico por falhas de execução.
Método na transição da Lei de TICs
Por fim, há um marco incontornável: se o regime setorial de TICs mantiver seu horizonte atual sem substituição equivalente, a partir de 2030 as empresas enfrentarão uma mudança estrutural de competitividade.
Isso não significa, automaticamente, inviabilidade; significa que a vantagem comparativa tende a migrar do “incentivo setorial” para a “eficiência de operação” dentro de um IVA plenamente implementado.
Assim, a pergunta estratégica não é apenas se o incentivo existirá; é se a empresa chegará a 2030 com processos, sistemas e governança capazes de operar o IVA Dual com crédito efetivo, sem perdas por inconsistência e com capacidade de defender seus saldos e direitos.
Em síntese, a transição entre Lei de TICs e reforma do consumo não é um evento pontual: é um percurso regulatório que exige método.
Como em A Fundação, o diferencial não está em adivinhar cada detalhe do futuro, mas em construir a governança que permite atravessar a mudança sem colapsos de evidência, de dados e de previsibilidade econômica. Para o setor de tecnologia, isso significa tratar 2026 como um ano de teste não apenas do governo, mas da própria empresa, e usar 2026–2029 como período de consolidação do que será, na prática, a nova normalidade tributária do consumo no Brasil.
[1] O Plano Seldon é o projeto histórico de Hari Seldon, no livro A Fundação, de Isaac Asimov. Nele, o objetivo é reduzir os impactos da queda do império atual, armazenando o conhecimento e o gerindo para o nascimento do segundo império.
[2] Terminus é o planeta remoto escolhido para sediar a Primeira Fundação na série Fundação do Asimov.
Fonte: Conjur
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Pedro Henrique Rodrigues Muniz Fernandes
é advogado tributarista no escritório Lobo e Vaz Advogados Associados, pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e em Direito Digital e Compliance pelo Instituto Damásio/Ibmec e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC.
Bruno Eduardo Budal Lobo
é advogado, sócio-fundador do escritório Lobo & Vaz Advogados Associados, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB), especialista em Direito Aduaneiro e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professor na Pós-graduação em Direito Aduaneiro e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali)
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