O que é fraude contábil para fins fiscais? Onde encontrar seus fundamentos?

Por Elidie Palma Bifano

11/12/2025 12:00 am

Recentemente tivemos a oportunidade de tratar, no evento ABDF/Aconcarf, acerca de tema sobre o qual, há tempos, temos refletido: o uso que as autoridades fiscais fazem do instituto da fraude, muito especialmente da fraude dita contábil, com o objetivo de afastar procedimentos adotados pelos contribuintes. Por trás desse comportamento vislumbra-se, muitas vezes, a finalidade de impor tributação discutível e cobrar multas, às vezes bastante gravosas. Esse procedimento, a nosso ver, é facilitado pela adoção das práticas internacionais de contabilidade, os IFRSs (International Financial Report Standards) que se orientam pela essência econômica dos negócios e não por suas causas jurídicas.

Dado o fato de que a tributação incide sobre negócios jurídicos e não sobre essências econômicas, é possível que certos procedimentos contábeis possam ser tidos como manipulação de conceitos e negócios, uma vez que a tributação da pessoa jurídica tem como base o lucro líquido contábil, ajustado, o chamado lucro real.

A palavra fraude se origina do latim fraus, que significa engano/mentira. Do ponto de vista jurídico é sempre um ato intencional, cuja finalidade é enganar ou/lesar alguém, ilícito, pois, sendo vedado pelo sistema. E o que seria a fraude contábil, a que as autoridades fiscais se referem?

À luz do significado da palavra, a fraude contábil é toda manipulação intencional dos registros financeiros de uma entidade para enganar terceiro, apresentando situação que não corresponde aos fatos realmente ocorridos.

Toda entidade cujas operações sociais são objeto da Contabilidade deve obedecer a Lei nº 6.404/76, Lei das Sociedades por Ações, em especial seu artigo 177, escriturando-as em registros permanentes, os livros contábeis, conforme a legislação comercial, observados para tanto os princípios de contabilidade geralmente aceitos, métodos e critérios contábeis uniformes e regime de competência no que tange às mutações patrimoniais.

Essas entidades, periodicamente, devem elaborar suas demonstrações financeiras, o chamado relatório financeiro, na forma da manifestação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), o CPC00 (R2), que em seu item 1.2 relaciona as finalidades dessa peça contábil, a saber: fornecer informações financeiras úteis para investidores e credores.

Tendo em vista que a fraude contábil é manipulação intencional, logo consciente, de registros financeiros, é certo que investidores e credores restarão prejudicados. Pode-se citar, a título de manipulação contábil, diversos mecanismos como a criação de dados/documentos falsos, a omissão de informações, o registro de transações sem comprovação, ou inexistentes, a aplicação de práticas contábeis inadequadas (omissão de gastos/despesas, aumento de receitas, manipulação de contas patrimoniais, ausência de trânsito em resultado).

Os movimentos na contabilidade com intuito de enganar terceiros, as fraudes contábeis, resultam, pois, em balanço ou em demonstrações financeiras também fraudadas, no que pode resultar sério dano para o mercado, para os investidores e credores e para o Fisco.

É sabido que contabilidade e direito são ciências que atuam em conjunto em muitas circunstâncias: para fins societários, tributários, trabalhistas, previdenciários, dentre outros. Vale a pena examinar, pois, quais são as aproximações e distanciamentos entre elas, no que tange a definir fraude.

A fraude no Direito Civil é definida como ato lesivo praticado contra terceiros (Código Civil, artigo 158, artigo 176, artigo 178) enquanto no Direito Penal é toda ação de obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio (Código Penal, artigo 171). Para fins tributários muitas normas tratam da fraude, mas talvez a mais adequada para os fins que nos propomos seja aquela contemplada no artigo 72, da Lei nº 4.502/64, ou seja a “ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido e evitar ou diferir o seu pagamento”.

A fraude e o erro
A fraude, juridicamente, não se confunde com o erro que é uma noção falsa sobre algo, podendo chegar até mesmo à absoluta ignorância do que se está contratando. Somente o erro substancial ou essencial pode levar à anulabilidade do negócio praticado (artigo 138, Código Civil).

A fraude e o erro são tratados na Contabilidade pela Norma Brasileira de Contabilidade (NBC TI-1), do Conselho Federal de Contabilidade, voltada à auditoria interna, nos seguintes termos:

(i) o termo “fraude” aplica-se a ato intencional de omissão e/ou manipulação de transações e operações, adulteração de documentos, registros, relatórios, informações e demonstrações contábeis, tanto em termos físicos quanto monetários e o (ii) termo “erro” aplica-se a ato não-intencional de omissão, desatenção, desconhecimento ou má interpretação de fatos na elaboração de registros, informações e demonstrações contábeis, bem como de transações e operações da entidade, tanto em termos físicos quanto monetários. (g.n)

Assim, em termos de aproximações é possível verificar que fraude, tanto para fins jurídicos como contábeis, pressupõe a intenção, a vontade de enganar, enquanto o erro, nas duas situações, não exige a intenção de prejudicar alguém, é involuntário.

O erro, do ponto de vista jurídico, sempre pode ser corrigido, visto que o seu resultado é apenas um ato anulável. A contabilidade não opera de forma diversa do Direito e orienta a retificação de erros no Pronunciamento CPC 23, voltando-se a omissões e incorreções nas demonstrações contábeis da entidade de um ou mais períodos anteriores decorrentes da falta de uso, ou uso incorreto, de informação confiável que estava disponível e poderia ter sido obtida. Destaque-se que, para a contabilidade, a fraude deve ser corrigida (CPC 23) pois ela não adentra na ilicitude do procedimento, o que cabe ao direito.

Feitas essas considerações, entretanto, é possível observar que as autoridades fiscais, muitas vezes, tratam como fraude contábil situações que não guardam relação com esse fenômeno, quer do ponto de vista jurídico ou contábil, como é o caso a Ato Declaratório Interpretativo, da Receita Federal (ADI RFB nº 4/2024), que objetiva regular o tratamento tributário aplicável às subvenções para investimento, objeto do artigo 30, da Lei nº 12.973/14.

Assim, as entidades que desfrutam de isenções têm autorização do CPC 7 para registrar seus montantes por valores brutos ou líquidos, sendo que no primeiro caso deve ser reconhecido um passivo pelo montante do tributo devido, o qual será baixado por força da isenção concedida (dispensa de pagamento nos termos do CPC 7), em contrapartida de uma receita que será excluída de tributação no cálculo do lucro real.

Observe-se que do ponto de vista econômico, como retrata o CPC 7, o fato de não se pagar tributo resulta sempre em acréscimo patrimonial pelo montante que se deixou de pagar e esse é o enfoque contábil. Há um enriquecimento do beneficiário.

Também, é de se destacar, que do ponto de vista jurídico a isenção é tratada, pelas primeiras escolas de Direito Tributário e pelo Código Tributário Nacional, como uma dispensa/exclusão de pagamento, terminologia adotada pelo CPC 7 e, mais recentemente, como uma não incidência, embora até hoje o Supremo Tribunal Federal nada tenha decidido sobre a matéria e haja decisões que se referem à isenção como dispensa de pagamento do tributo.

Nos termos do artigo 2º do referido ADI, “a finalidade do art.30 da Lei nº 12.973/2014, é impedir que o acréscimo patrimonial proporcionado pela receita correspondente às transferências de recursos qualificadas como subvenções para investimento, realizadas por pessoas jurídicas de direito público, seja computado na determinação do lucro real (…)”, contudo, os parágrafos 1º e 2º desse artigo 2º determinam que a receita a ser excluída da apuração do IRPJ (Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica) e da CSL (Contribuição Social sobre o Lucro) seja aquela reconhecida conforme os requisitos da Lei nº 6.404/76, esclarecendo o parágrafo único do artigo 3°, que para a exclusão da parcela integrante do lucro líquido do período de apuração é fundamental que tal valor corresponda ao acréscimo patrimonial de que trata o artigo 2°.

Ora, o parágrafo único do artigo 3º do ADI e o seu artigo 4º, ao tratarem dos incentivos de ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), limitam a dedução ao valor que “corresponda ao acréscimo patrimonial”, destacando que “caso não haja acréscimo patrimonial para a pessoa jurídica” não haverá valor a ser excluído da apuração do IRPJ e da CSL, o que inviabiliza o uso pleno do CPC 07.

Ora, se o CPC 7 faculta ao contador registrar subvenções por montantes brutos ou líquidos; no primeiro caso reconhecendo uma receita que não deve ser tributada e, no último caso por diferença, quando mais nenhum registro caberá na contabilidade, impedir seu uso é, no mínimo, questionável.

No Acordão 106-050.906, a 2ª Turma /DRJ06, em 19.11.2025, entendeu no mesmo sentido do ADI acima, ausente ingresso patrimonial, haveria mera renúncia fiscal, não havendo base legal para a exclusão dos valores correspondentes da base de cálculo do IRPJ e da CSL. Observe-se que as autoridades do tribunal administrativo enveredam por um caminho que desconsidera a prática contábil, imputa procedimento abusivo ao contribuinte, olvidando-se que a contabilidade é eleição do Direito brasileiro para fins de apuração de tributos sobre o lucro.

A contabilidade é uma ciência social aplicada, com forte interferência, pois, do homem. Com isso pode-se ter diferentes contadores com diferentes escolhas sobre os mesmos temas, aqui prevalecendo o poder de julgamento do contador, aplicável sempre que não se encontra adequado enquadramento nas normas e práticas contábeis (CPC 00 (R2)). O subjetivismo do contador deve ser exercido com cautela e respeito aos fatos e situações concretas e a circunstância de existirem profissionais com diferentes entendimentos, desde que devidamente fundamentados, não se confunde com o erro e, muito menos com a fraude.

O prestígio do contador e de sua função foi reconhecido pelas novas práticas contábeis e deles o profissional não pode e nem deve abrir mão. Em linha com o poder de julgamento do contador vem a exigência de representação fidedigna (CPC 00, C2.12 ) ou seja “informações financeiras úteis não devem apenas representar fenômenos relevantes, mas também representar de forma fidedigna a essência dos fenômenos que pretendem representar. Algumas vezes a essência de fenômeno econômico e sua forma legal são as mesmas. Se não forem as mesmas, fornecer informações apenas sobre a forma legal não representaria fidedignamente o fenômeno econômico”. Também há diferenças entre critérios e práticas contábeis, como descritos na Lei Societária e a fraude.

Com isso os atuais padrões contábeis decretaram o fim da prevalência do conservadorismo que rezava ser melhor registar mais despesas e provisões do que reconhecer receitas, em nítido prestígio do passivo, das provisões e das despesas e gastos, para evitar o crescimento de lucros e ganhos. Tais conceitos foram ultrapassados pelas novas práticas contábeis.

Interessante situação de tentativa de desprestígio do poder de julgamento do contador se observa no Acórdão n. 1102-001.728 – 1ª Seção/1ª Câmara/2ª Turma Ordinária, 23.09. 2025, do Carf, voltado a uma situação de lucro da exploração. No caso, o contribuinte com investimentos incentivados na área da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), alocou despesas com o quadro de administradores, em estabelecimento localizado no sul do país, voltado apenas à administração da entidade, por uma decisão econômico/contábil, baseada no poder de julgamento do contador.

A empresa foi autuada sob o argumento de estar maximizando indevidamente o benefício fiscal da Sudam com a não alocação dessas despesas no estabelecimento incentivado. A falta de rateio, de acordo com as autoridades fiscais, teria levado ao enriquecimento indevido do contribuinte. O julgamento redundou em empate dos conselheiros, mostrando, com nitidez, o desconhecimento do princípio do poder de julgamento do contador.

Há um dado relevante quando se imputa enriquecimento indevido ao contribuinte, especialmente em situação em que sequer ocorre erro, hipótese na qual a tributação pode ser efetivada mediante emprego da denúncia espontânea, enquanto a fraude, no caso o enriquecimento ilícito, exige o recolhimento do tributo acrescido de multas gravosas inclusive representação penal.

A contrariu sensu, em algumas circunstâncias, o Carf e as autoridades fiscais vêm decidindo pela aplicação das regras contábeis em detrimento da letra da lei. É o caso do ágio interno, figura introduzida pela contabilidade à luz do balanço consolidado, visto que nesse caso as entidades que integram um grupo de empresas são vistas como uma única, para fins contábeis, o que não acontece para fins fiscais (artigo 20 e seguintes do Decreto-Lei n. 1598/77, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 12973/14) em que as entidades são independentes e autônomas em sua contabilidade e no cálculo dos tributos sobre o lucro.

Assim, no Acórdão nº 1402-006.078 – 1ª Seção de Julgamento/4ª Câmara/2ª Turma Ordinária, em 21.12.2022, o Carf adotou a orientação contábil, no que tange ao ágio interno, a despeito de reconhecer que, efetivamente, ele só veio a ser regulado para fins fiscais com a Lei nº 12.973/14. Como argumento suplementar para assim decidir, esse Tribunal apegou-se a outros elementos como operações societárias sem substância econômica, exigindo para tanto a comprovação de pagamento de preço de aquisição de participação societária, o que, a depender das circunstâncias e do modelo de negócio jurídico adotado, pode não ocorrer e, nem por isso, deixará de surgir ágio na aquisição.

O que se conclui é que a imputação de fraude a determinado procedimento contábil deve ser usada com cautela, pois os procedimentos contábeis obedecem a princípios e regras que o contador deve observar. A nosso ver a adoção do IFRS, no balanço individual, deu azo para tais especulações. Talvez a adoção de balanço fiscal desconectado do balanço contábil muito possa nos ajudar, como ocorre em outros países. Caso contrário, haverá um longo caminho para conciliar contabilidade e direito, em prejuízo de todos. A neutralidade do IFRS, conforme a Lei nº 12973/14, não parece, até agora, suficiente para resolver tais questões.

Fonte: Conjur

Mini Curriculum

Mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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