ADI nº 2.446 trouxe segurança jurídica no âmbito da 3ª Seção do Carf

Por Diego Diniz Ribeiro, Matheus Schwertner Ziccarelli Rodrigues

03/12/2025 12:00 am

O tema planejamento tributário sempre está envolvido em grandes controvérsias doutrinárias e jurisprudencial por tratar dos limites de atuação do contribuinte para se submeter a uma carga tributária menor e, por via reflexa, dos limites de atuação da autoridade fiscal para contestar ou descaracterizar tais planejamentos.

Somado a isto, as particularidades que envolvem cada caso concreto e a incapacidade do texto legal abarcar a infinitude de arranjos fáticos possíveis impedem o seu prévio tratamento legislativo, demandando que as controvérsias sejam resolvidas, em regra, no âmbito da realização prática do direito, ou seja, no contencioso administrativo e/ou judicial.

Importante caminho, todavia, foi trilhado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento da ADI nº 2.446, ao fixar pertinentes premissas para análise do tema. São os reflexos desse relevante leading case para os julgados do Carf que iremos nos debruçar na coluna de hoje, com um particular recorte para os precedentes da 3ª Seção do Tribunal e que trataram da tributação do PIS e da Cofins nas empresas sujeitas ao regime monofásico de tributação. [1]

Julgamento da ADI nº 2.446 e premissas fixadas pelo STF
Na ADI nº 2.446, o STF analisou o parágrafo único do artigo 116 do CTN, [2] introduzido pela LC nº 104/2001, concluindo pela sua constitucionalidade. Apesar de ter julgado a ADI improcedente, o Supremo apresentou pertinentes balizas para a atuação da administração pública diante de planejamentos tributários.

Nesse sentido, a ministra relatora Cármen Lúcia, no seu voto vencedor, dispôs acerca do âmbito de aplicação da referida norma (e, por conseguinte, dos limites à autuação da autoridade fiscal), oportunidade em que deixou claro que a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação desse fato gerador, acrescentando, ainda, que a norma não permite retirar incentivo ou estabelecer proibição ao planejamento tributário das pessoas físicas ou jurídicas. E assim conclui a ministra:

A norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada.
[…]

A despeito dos alegados motivos que resultaram na inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN, a denominação “norma antielisão” é de ser tida como inapropriada, cuidando o dispositivo de questão de norma de combate à evasão fiscal.

Em breve síntese, é possível identificar 05 pontos fundamentais a configurar a ratio decidendi do sobredito julgado:

(i) no ordenamento jurídico pátrio, não existe norma que permita à autoridade fiscal desconsiderar os efeitos jurídicos de atos ou negócios jurídicos válidos e sem simulação, ainda que sua motivação seja exclusivamente minorar a carga tributária;
(ii) o “planejamento tributário” a ser combatido é aquele em que o contribuinte atua de forma a ocultar fato gerador para se furtar do pagamento da obrigação tributária devida (evasão fiscal), e não aquele em que há diminuição lícita dos valores tributários devidos, porque o contribuinte evita a relação jurídica que faria nascer a obrigação tributária (elisão fiscal);
(iii) a simulação é uma só, inexistindo distinção entre a simulação para fins civis e para fins fiscais, de modo que o ato ou negócio jurídico é lícito ou ilícito para todos os fins;
(iv) a desconsideração autorizada pelo parágrafo único do art. 116 do CTN está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação de fato gerador que tenha efetivamente se materializado, fazendo surgir a obrigação tributária; e, ainda
(v) a plena eficácia do referido dispositivo legal depende de lei ordinária estabelecendo procedimentos a serem seguidos.

Interdependência de empresas e desconsideração dos preços praticados para tributação de PIS e de Cofins nas operações sujeitas à monofasia
Nas operações sujeitas à incidência monofásica de PIS/Cofins, como acontece, v.g., no setor de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, é comum que grupos empresariais desenvolvam sua atividade econômica por meio de empresas distintas ao longo da cadeia produtiva, de modo a racionalizar sua operação sob a perspectiva logística, bem como para diluir riscos nas diferentes etapas da cadeia produtiva.

Não há dúvida que subsiste em nosso ordenamento jurídico-tributário a prevalência da substância sobre a forma, inclusive, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Afinal, sendo verificada as circunstâncias materiais necessárias para que produza os efeitos que normalmente lhes são próprios, considera-se ocorrido o fato gerador, abstraindo-se a validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos sujeitos passivos.

Neste sentido, Heleno Taveira Torres, pautado nas lições de Alberto Xavier, admite como perfeitamente possível a recaracterização ou requalificação jurídica do ato, negócio ou pessoa jurídica, já que esta é ainda uma operação que visa atribuir a qualificação jurídica correta a um ato ou negócio em face dos seus reais efeitos jurídicos, pela simples correção de qualificação ou denominação (nomen iuris) dada pelas partes. [3]

Tal perspectiva, por sua vez, traz como contrapartida a conclusão de que a tributação só pode incidir sobre fatos efetivamente ocorridos e, por óbvio, possam ser efetivamente verificados/provados em sede de lançamento. Caso contrário, estar-se-ia admitindo que a autoridade fiscal pode, muito além de verificar a ocorrência do fato gerador, “fabricar” a sua ocorrência. Nos termos do artigo 167 do Código Civil, [4] é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância ou na forma. Ou seja, afasta-se a simulação, para alcançar aquilo que efetivamente ocorreu. Jamais se afasta um fato, para criar outro (antes inexistente).

É justamente por isso que, ao nos depararmos com a presente controvérsia, verificamos, de pronto, que não se trata de uma discussão acerca da prevalência da substância sobre a forma, ou da verificação dos fatos geradores efetivamente ocorridos. A controvérsia se resume à possibilidade da fiscalização desconsiderar a segregação das atividades realizadas entre empresas interdependentes, por considerar “ilícito” o planejamento tributário cuja única finalidade seria alcançar a economia de tributos.

Ainda que, na maior parte das vezes, reste demonstrada a existência de diversas razões econômicas para segregação entre as atividades industrial e comercial, o que, por si só, já afastaria o argumento fazendário, cabe perquirir se um planejamento tributário seria ilícito pelo simples fato de ter como finalidade a economia de tributos e, nessa linha, se seria possível a desconsideração dos preços praticados entre as empresas em razão da maior margem de lucro na venda da mercadoria pelo estabelecimento comercial.

Trazendo as premissas fixadas na ADI nº 2.446 para análise da presente questão, verificamos que, sendo os negócios jurídicos válidos, com a segregação concreta das atividades entre as empresas e sem a comprovação de subfaturamento (declaração de preço diverso do efetivamente recebido ou a receber pelo produto) nos preços praticados, não há, em princípio, qualquer ilícito na atuação do grupo econômico.

Sem adentrar nas minúcias das atividades econômicas, as quais poderiam demonstrar, eventualmente, as razões pelas quais a margem de lucro é maior na venda pela comercial do que naquela realizada pela industrial, [5] fato é que, diferentemente da legislação do IPI, em que há o estabelecimento de regras de VTM (Valor Tributável Mínimo) nas operações realizadas entre partes interdependentes (artigos 195 e 196 do Decreto nº 7.212/10), a legislação que disciplina a incidência do PIS e da Cofins não traz qualquer dispositivo legal neste sentido. [6]

Assim, apesar da inegável incoerência sistêmica, no que se refere às contribuições sociais não há qualquer padrão legal a ser observado pelas partes, só existindo um ato ilícito (frise-se) caso reste demonstrado que houve simulação ou subfaturamento.

Neste sentido, no acórdão nº 3102-002.895, [7] o Carf manifestou o entendimento que no ordenamento jurídico pátrio, não existe norma que permita à autoridade fiscal desconsiderar os efeitos jurídicos de atos ou negócios jurídicos válidos e sem simulação, ainda que sua motivação seja exclusivamente a busca por menor carga tributária. Com base na referida decisão, o planejamento tributário combatido seria somente aquele em que o contribuinte atua de forma a ocultar fato gerador materializado para omitir-se ao pagamento da obrigação tributária devida (evasão fiscal), e não aquele em que há diminuição lícita dos valores tributários devidos, pois o contribuinte evita relação jurídica que faria nascer a obrigação tributária (elisão fiscal).

De igual modo, nos acórdãos nº 3301-010.236 [8] e 1402-002.337, [9] além de ser pontuada a inexistência de norma que estipule valores mínimos a serem praticados entre empresas do mesmo grupo para fins da incidência das contribuições ao PIS e da Cofins no regime monofásico, entendeu-se que [o] arbitramento e desconsideração do negócio jurídico em razão de subfaturamento derivado de um planejamento tributário abusivo, depende da comprovação da existência de fraude, dolo ou simulação nas operações, como a inexistência de substância econômica nas atacadistas, criadas apenas para simular operações e fraudar o Fisco.

Merece destaque que, mesmo nos casos em que se reconhece a existência de fraude e simulação, o Carf não traz como fundamento único a intenção de pagar menos tributos, apontando elementos como confusão patrimonial, abuso de direito, ausência de estrutura física da comercial, preços substancialmente inferiores aos praticados com terceiros, inexistência de lucro ou substrato econômico na operação de venda da industrial para a comercial, como elementos a justificar a exigência tributária, como se verifica, v.g., dos acórdãos nº 3401-007.239, [10] 3301-014.025 [11] e 3202-002.871. [12]

Assim, apesar de se tratar de matéria que demanda o exame particular de cada caso concreto, parece haver um consenso — ainda que haja divergência quanto à interpretação dos fatos — no sentido de que o planejamento tributário ilícito não resta configurado apenas pelo mero intuito de pagar menos tributo, mas em razão de condutas praticadas com a intenção de simular operações que não correspondem efetivamente à realidade.

Conclusões
Como vimos, em matéria de planejamento tributário, é imprescindível que se busque uma interpretação harmônica da legislação, de modo a impedir o emprego da discricionariedade por parte da autoridade fazendária e, por outro lado, o desvirtuamento do sistema jurídico por parte dos contribuintes.

Um grande passo em prol da certeza do direito e da segurança jurídica em tais situações foi tomado pelo STF, no julgamento da ADI nº 2.446, ao fixar pertinentes premissas para a análise do tema, as quais devem ser observadas em sede de fiscalização e julgamento administrativo e judicial, a fim de trazer um mínimo de certeza e previsibilidade, delimitando o campo disponível para que os contribuintes possam planejar suas operações e, por outro lado, para que a autoridade fiscal combata abusos.

No que se refere ao julgamento administrativo, nos parece de extrema pertinência que, ao examinar casos em que a fiscalização imputa ao contribuinte a realização de fraude e/ou simulação, sejam adotadas, especialmente, as premissas de que:

(i) não existe norma que permita à autoridade fiscal desconsiderar os efeitos jurídicos de atos ou negócios jurídicos válidos e sem simulação, ainda que sua motivação seja exclusivamente a busca por menor carga tributária;
(ii) o planejamento tributário combatido é somente aquele em que o contribuinte atua de forma a ocultar fato gerador materializado para omitir-se do pagamento da obrigação tributária devida (evasão fiscal), e não aquele em que há diminuição lícita dos valores tributários devidos, quando o contribuinte evita relação jurídica que faria nascer a obrigação tributária (elisão fiscal); e
(iii) a simulação é uma só, inexistindo distinção entre a simulação para fins civis e para fins fiscais, de modo que o ato ou negócio jurídico é lícito ou ilícito para todos os fins.

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[1] Fazendo uma pertinente análise do tema a partir da SC Cosit nº 72/2025 e da jurisprudência da 1ª Seção do Carf, destacamos texto de Maria Carolna Maldonado Kraljevic, aqui.

[2] Art. 116 (…).
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

[3] TÔRRES, Heleno Taveira. Responsabilidade de Terceiros e Desconsideração de Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. In Grandes Questões Atuais do Direito Tributário – 16º Vol. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 2012. p. 137-138.

[4] Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

[5] Apenas a título de exemplo, uma justificativa econômica plausível é o risco da inadimplência, que é menor para a industrial, já que esta vende sua produção no atacado para um número reduzido de clientes, diferentemente de uma empresa varejista, que comercializa de forma pulverizada seus produtos, o que potencializa o risco da inadimplência.

[6] Tratando do tema: DANIEL NETO, Carlos Augusto; LAURENTIIS, Thais De. Normas Antielisivas e Segurança Jurídica: Análise da Jurisprudência do CARF sobre a Tributação na Segregação de Atividades Empresariais. Revista Direito Tributário Atual, n.42. ano 37. p. 188-213. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019.; DANIEL NETO, Carlos Augusto; RIBEIRO, Diego Diniz. O valor tributável mínimo (VTM) no IPI e o conceito de “praça” na sua apuração. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 39, p. 36-55, 2018.

[7] Conselheiro Relator Matheus Schwertner Ziccarelli Rodrigues.

[8] Conselheiro Relator Salvador Cândido Brandão Júnior.

[9] Conselheiro Relator Fernando Brasil de Oliveira Pinto.

[10] Conselheiro Relator Lázaro Antônio Souza Soares.

[11] Conselheiro Relator Rodrigo Lorenzon Yunan Gassibe.

[12] Conselheiro Relator Wagner Mota Momesso de Oliveira.

do Paraná.

Mini Curriculum

Diego Diniz Ribeiro
é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutor em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Matheus Schwertner Ziccarelli Rodrigues
é vice-presidente de turma da 3ª Seção do Carf. Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário na USP. Graduado e mestre em Direito Tributário pela UFPR. Professor seminarista do Ibet. Membro do Instituto de Direito Tributário

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