Carf derruba Cide sobre contrato de rateio de custos
Por Marcela Villar — De São Paulo
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) anulou uma cobrança de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre contrato internacional de compartilhamento de custos e despesas, o chamado “cost sharing”. A decisão da 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção foi unânime. Ela derruba uma autuação fiscal de R$ 5,1 milhões contra a Arcos Dourados Comércio de Alimentos, franqueado master da rede McDonald’s no Brasil.
Os contratos de cost sharing são comuns entre empresas do mesmo grupo econômico para dividir ou redistribuir despesas entre elas. O objetivo da medida é tanto otimizar recursos como manter um padrão entre as filiais. Ela é realizada com base na Lei de Preços de Transferência (nº 14.596, de 2023).
No caso julgado, houve a remessa de valores da empresa brasileira a coligadas em Delaware (Estados Unidos), no Uruguai e na Holanda. Os pagamentos, do ano de 2014, se referem a atividades administrativas e gerenciais, como financeiro, sistemas, recursos humanos, marketing, jurídico e desenvolvimento de estratégias. Para a fiscalização, porém, seria serviço técnico, operação sujeita à incidência de 10% de Cide.
Já para o Carf, trata-se de “contrato de rateio”, que “configura mero ‘reembolso’ dos valores recebidos pela empresa centralizadora em favor das demais companhias do grupo para cobrir custos e despesas”. Por isso, segundo o voto do redator, o conselheiro George da Silva Santos, o tributo não deve ser cobrado (processo nº 16561.720143/2018-53). A relatora do caso foi a conselheira Sabrina Coutinho Barbosa.
Essência da tese é que não houve faturamento, nem geração de receita”
— Luciana R. Galhardo
No voto, Santos disse que “o fato gerador da Cide-tecnologia (Lei nº 10.168/00) é o pagamento, creditamento, entrega, emprego ou remessa, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração em razão do fornecimento de tecnologia em suas mais variadas formas, não figurando como hipótese de incidência da contribuição os acordos de compartilhamento de custos e despesas”.
Segundo especialistas, a jurisprudência do Carf é mais favorável aos contribuintes nessa matéria, mas não é unânime ou pacífico, pois a própria Arcos Dourados já perdeu processos em que discute o mesmo assunto. “Hoje tudo depende da turma de julgamento”, diz a tributarista Luciana Rosanova Galhardo, sócia do Pinheiro Neto Advogados, que atua no caso.
A tese defendida pelo escritório é que como não há transferência de tecnologia – a exemplo de exploração de patentes, marcas, prestação de serviços técnicos ou royalties -, não há motivo para incidir a Cide. Também não deve se exigir o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) ou PIS/Cofins, pois não há lucro ou remuneração, só rateio de despesas. A incidência desses outros tributos é discutida em outros processos. Ao todo, são R$ 16 milhões em disputa.
A autuação havia sido mantida pela delegacia de julgamento (DRJ) com base na Solução de Consulta da Cosit nº 43/2015, que orienta os fiscais do país. Ela determina que independentemente da natureza dos valores pagos em contratos de cost sharing remetidos ao exterior, exige-se a Cide. Esse posicionamento foi reafirmado recentemente na Solução de Consulta da Cosit nº 39/2025.
O redator, porém, se espelhou na Cosit nº 149/2021 – que não trata de Cide, mas sim de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins – aplicáveis a contratos de cost sharing. “Os valores pagos a título de ‘rateio’ estão única e exclusivamente relacionados a reposição ou ressarcimento dos custos arcados pela empresa centralizadora. Não há, neste caso, hipótese de incidência por ausência de subsunção do fato à norma”, afirmou o conselheiro George da Silva Santos.
A advogada Luciana Rosanova Galhardo elogia a decisão e diz que deve ser replicada em outros casos. “Ela deve impactar todos os outros processos favoravelmente, porque a gente não está falando de operações onerosas”, afirma. “A essência da tese é que não houve faturamento, nem geração de receita, nem intenção de lucro”, completa.
Ela lembra que a Lei de Preços de Transferência foi atualizada para regulamentar esse tipo de remessa para o exterior, junto com a Instrução Normativa nº 2161/2023. “Passaram a tratar esses serviços como de baixo valor agregado e, a partir do ano passado, a legislação passou a exigir uma margem [de lucro] de 5% [para haver a tributação]”, adiciona Luciana. “Só o fato de isso ter surgido já fortalece a tese para o passado, porque antes não tinha lei”, completa a advogada.
A tributarista Thais de Barros Meira, sócia do BMA Advogados, diz que o Fisco, de fato, tem a tendência de reconhecer que “qualquer remessa feita para o exterior, no âmbito de um contrato de cost sharing, deveria ser tributada por ser uma prestação de serviço”. Mas, neste caso, o Carf afasta a incidência.
Ela ressalta que a decisão de agosto do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre Cide – citada no acórdão do Carf – não se aplica (Tema 914). “No Supremo, estavam discutindo se precisaria ou não haver transferência de tecnologia para poder cobrar Cide. Nesse acordão, não se discute isso porque sequer tem serviço”, afirma.
Na visão da advogada Gisele Barra Bossa, sócia do Demarest e ex-conselheira do Carf, o entendimento foi adequado. “Uma vez que é mero reembolso e não há margem de lucro nesse repasse, naturalmente, o cenário tende a ser favorável”, diz.
Segundo Gisele, o Fisco tende a desnaturalizar esse tipo de contrato para tributar. “Há a tentativa da autoridade fiscal de desconfigurar a natureza do contrato de cost sharing na intenção de fazer com que incida Cide alocando a operação como se fosse prestação de serviço propriamente dita”, afirma.
Ela ainda diz que existem vários tipos de discussão no Carf sobre Cide. A de cost sharing é a mais favorável para empresas, mas as que tratam de transferência de tecnologia, de software como serviço (SaaS), e de direitos autorais são desfavoráveis. Gisele cita casos recentes julgados pelo tribunal, a exemplo da Disney e da Microsoft (processo nº 15746.722176/2021-11 e processo nº 15746. 727801/2022-93). “Houve uma interpretação extensiva da lei”, diz.
Procurada pelo Valor, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) não deu retorno até o fechamento da edição.