Formação de preços a partir de 2027: desafios do período de transição da reforma tributária
Por Maysa Pittondo Deligne, Gabriel Almeida Viana
01/12/2025 12:00 am
A Emenda Constitucional nº 132/2023 inaugurou um novo paradigma no Sistema Tributário Nacional, fundamentado na neutralidade [1], transparência e simplificação [2]. Contudo, a concretização desses princípios enfrentará nos próximos anos um desafio operacional: o regime de transição. A partir de 2027, a convivência forçada entre o sistema revogado e o novo paradigma inaugurará um período complexo, em especial com o incremento na complexidade da formação de preços.
Nesse interregno, a operação fiscal das empresas será submetida a uma sistemática híbrida e contraditória. De um lado, opera-se a introdução da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), desenhados sob a lógica moderna do cálculo “por fora” [3]; do outro, persiste a lógica do ICMS, preso ao anacronismo do cálculo “por dentro”.
A complexidade do período não advém apenas da coexistência de tributos, mas, sobretudo, da sobreposição da base de cálculo. Nota-se que, por omissão da EC 132/23 e da Lei Complementar 214/25, o IBS e a CBS, embora concebidos para incidência “por fora”, acabarão por compor a base de cálculo “por dentro” do ICMS, conforme entendimento emanado nas recentes Resolução de Consulta Sefaz-PE n° 39/2025, Solução de Consulta Cotri/DF n° 23/2025 e a Resposta a Consulta Tributária Eletrônica/SP n° 32303/2025. Em contrapartida a esse entendimento, há o PLP 16/2025 que tenta corrigir essas distorções nas bases durante o regime de transição, contudo, sem perspectiva clara de aprovação.
Nesse cenário, a nova lógica da tributação sobre o consumo transcende a simples somatória de alíquotas e impõe o desafio de compreender a interação entre bases de cálculo distintas, em que o tributo federal integrará a base do tributo estadual, criando uma dinâmica de cálculo não linear que demonstraremos didaticamente:
Formação de preços em 2027
Analisemos a formação do preço de venda sob a ótica da necessidade de caixa da empresa (receita líquida), isolando inicialmente os efeitos tributários.
Considera-se uma operação hipotética projetada em 2027, na qual o agente econômico necessite auferir uma Receita Líquida de R$ 1.000. Este montante representa o valor adicionado necessário para a cobertura de custos e a realização da margem de lucro.
Para o exercício, adotaremos as premissas de alíquotas estimadas para o início da vigência plena da CBS e a fase de teste do IBS, bem como a alíquota modal de ICMS:
-CBS: 8,9% (incidência “por fora”) [4];
-IBS: 0,1% (incidência “por fora”);
-ICMS: 20% (incidência “por dentro”).
O desafio técnico reside na correta estruturação da base de cálculo do ICMS, que, por força constitucional, deve absorver o montante devido a título de IBS e CBS.
Como será ilustrado adiante, o processo de precificação deve obedecer a uma lógica sequencial estrita para evitar a substancial redução da margem líquida, quais sejam: 1) a apuração dos tributos sobre a Receita Líquida (IBS e CBS); 2) a composição da base provisória; e 3) o “Gross up” do ICMS e a definição do Preço Final. Para melhor visualização, vejamos abaixo um exemplo de cada uma dessas etapas.
Apuração dos tributos sobre a Receita Líquida (IBS e CBS)
Diferente do ICMS, a base de cálculo do IBS da CBS exclui o próprio imposto e o ICMS. A incidência recai diretamente sobre o valor que a empresa pretende auferir. Com isso, considerando o exemplo hipotético trazido acima, teríamos:
-Base de cálculo: R$ 1.000
-Total IBS/CBS (9%): R$ 90
Composição da base provisória
Integra-se o valor dos tributos federais e do IBS ao preço líquido.
– Subtotal: R$ 1.000 + R$ 90 = R$ 1.090
‘Gross up’ do ICMS e a definição do preço final
Nesta etapa, aplica-se a técnica de embutimento do imposto estadual. Como o ICMS incide sobre o valor total da operação (incluindo a si mesmo e aos demais tributos incidentes), deve-se dividir a base provisória pelo fator inverso da alíquota do ICMS.
-Preço final: subtotal / (1- alíquota ICMS)
-Preço final: R$ 1.090 / (1- 0,20)
-R$ 1.090 / (0,80)
-Preço final: R$ 362,50
Demonstração do resultado:
O resultado aritmético hipotético trazido acima expõe uma peculiaridade que dominará a contabilidade fiscal no período. Ao decompor o Preço de Venda (Faturamento Bruto) de R$ 1.362,50, observamos:
1. ICMS (20%): R$ 272,50. A base de cálculo é o próprio faturamento bruto (R$ 1.362,50), que contém o IBS e a CBS.
2. IBS e CBS (9%): R$ 90. A base de cálculo não é o faturamento bruto, mas a receita líquida (ou o valor da operação excluído o ICMS e os próprios tributos).
3. Receita líquida final: R$ 1.000 (R$ 1.362,50 – R$ 272,50 – R$ 90).
Esse exemplo busca apenas ilustrar que a transição não opera apenas uma mudança de alíquotas, mas uma ruptura na lógica de constituição das bases e, por conseguinte, dos preços. Essa disparidade exigirá atenção redobrada na definição dos sistemas de precificação e compliance fiscal. Ironicamente, a ‘simplificação’ tributária cobrará seu preço antecipado: um aumento momentâneo na complexidade e na carga tributária em prol de uma sonhada e desejada simplificação futura.
[1] Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. § 1º O imposto previsto nocaput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte. (…)
[2] Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: § 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. (…)
[3] Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, e 195, I, “b”, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239;
[4] Dados aproximados, conforme adiantados pelo governo em CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta do governo regulamenta impostos criados pela reforma tributária. Agência Câmara de Notícias, 26 abr. 2024. Disponível aqui
Mini Curriculum
Maysa Pittondo Deligne
é advogada, sócia head da área tributária da Moisés Freire Advocacia, doutora e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), palestrante, professora em cursos de pós-graduação, professora titular do mestrado profissional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Economia (Carf), diretora da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt).
Gabriel Almeida Viana
é advogado tributarista, mestre em Direito Fiscal pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduado pelo Ibet-BH.
Continue lendo
Compensação tributária e mandado de segurança: o vácuo analítico no ARE 1.525.254
Por Daniel Soares Gomes
STF define limite para aplicação de multas por descumprimento de obrigações acessórias
Por Gregório Caballero
Entre a forma e o conteúdo: os efeitos da Súmula 231 do Carf sobre os créditos de PIS/Cofins
Por Andressa Mendes de Souza, Andrezza Barreto Sena Fracetti