Cláusula PPT, segurança jurídica e legalidade
Por Sergio André Rocha
01/12/2025 12:00 am
Como amplamente noticiado, em 20 de outubro, o Brasil aderiu à Convenção Multilateral para a Aplicação das Medidas Relativas aos Tratados Tributários Destinadas a Prevenir a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros.
Em 2015, quando os relatórios finais das ações do Projeto Beps foram publicados e o Brasil sinalizou que não pretendia assinar a Convenção Multilateral, ouviram-se vozes de crítica que argumentavam que, mais uma vez, o Brasil teria escolhido um caminho de isolamento internacional. O principal argumento que justificou a postura brasileira foi a oportunidade de renegociação de nossa rede de acordos bilaterais para adaptá-la às recomendações mandatórias para os participantes do marco inclusivo do Projeto Beps.
Passados dez anos, nota-se que poucas renegociações foram concluídas e que, menos ainda, são os tratados já renegociados que estão em vigor. Além disso, esta última década testemunhou uma guinada na política fiscal internacional brasileira, com o país alinhando-se aos padrões internacionais mais do que antes.
A assinatura da Convenção Multilateral, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional, foi recebida novamente com críticas, o que evidencia a ciclotimia de setores de especialistas em tributação. Provavelmente, a maioria delas é dirigida a um dispositivo, a chamada “Cláusula PPT” (Principal Purpose Test), que já está em vigor em alguns tratados brasileiros, como as convenções celebradas com a Argentina, os Emirados Árabes Unidos, a Índia, a Noruega, o Uruguai e Singapura.
A Cláusula PPT tem suscitado diversos questionamentos, dentre os quais a sua compatibilidade com os princípios da segurança jurídica, da legalidade e da tipicidade tributárias. Este tema será analisado neste breve artigo.
Cláusula PPT
A Cláusula PPT foi desenvolvida no contexto da Ação 6 do Projeto Beps, que teve por propósito prevenir o uso abusivo de convenções tributárias. Nossa primeira Cláusula PPT foi a inserida no Tratado Brasil-Argentina, em seu artigo XXVII (1), cuja redação é a seguinte:
“Não obstante outras disposições da presente Convenção, um benefício da presente Convenção não será concedido em relação a um componente de renda ou de capital se for razoável concluir, com base em todos os fatos e circunstâncias relevantes, que obter esse benefício constituiu um dos objetivos principais de um acordo ou operação que tenha resultado, direta ou indiretamente, nesse benefício, a menos que seja demonstrado que a concessão de tal benefício nessas circunstâncias estaria de acordo com o objeto e propósito das disposições pertinentes da presente Convenção.”
Nota-se, de plano, que a Cláusula PPT é uma regra que permite aos estados contratantes deixar de conceder um benefício convencional. Nesse particular, parece correto afirmar que ela é uma regra que permite aos Estados deixar de observar dispositivos previstos no tratado sem que se possa considerar que estejam descumprindo obrigações assumidas no acordo internacional.
Ao autorizar a negativa de aplicação da convenção, a Cláusula PPT vale-se de conceitos claramente indeterminados, prevendo que o Estado Contratante negue um benefício convencional se for “razoável concluir”, com base nos “fatos e circunstâncias relevantes”, que obter tal benefício é “um dos objetivos principais” de um acordo ou operação.
Estamos, portanto, diante de uma regra bastante aberta de competência decisória, que confere amplos — mas não discricionários ou arbitrários — poderes para que os benefícios da convenção sejam negados tendo em vista as circunstâncias do caso concreto.
Alegada violação do ‘princípio da legalidade’
A partir da chegada ao Brasil do professor Alberto Xavier, desenvolveu-se por aqui uma certa visão da regra da legalidade, usualmente referida como princípio, segundo a qual os textos normativos tributários deveriam ser redigidos de modo a reduzir a liberdade de conformação do intérprete, valendo-se, para tanto, de conceitos claros, certos e determinados, no que se convencionou chamar de “princípio da tipicidade”.
Diante das características da Cláusula PPT, antes mencionadas, diversos autores e autoras têm sustentado que sua inclusão nos tratados tributários brasileiros seria inconstitucional por violar os “princípios” da legalidade e da tipicidade. Outros afirmam que haveria uma violação potencial do próprio princípio da segurança jurídica, como comentaremos adiante.
Há quase duas décadas vimos sustentando que a utilização de conceitos indeterminados em textos normativos não implica violação à regra da legalidade insculpida no artigo 150, I, da Constituição. Dessa forma, temos uma discordância geral quanto às posições que defendem que a Cláusula PPT acarretaria um vício de inconstitucionalidade com esse fundamento.
Nada obstante, este não é o foco neste breve ensaio. Há uma questão prévia que, há tempos, vem provocando minhas reflexões: é juridicamente possível o conflito entre um tratado internacional tributário e a legalidade tributária?
Recolocando a natureza dos tratados internacionais tributários
Se considerarmos as origens dos tratados internacionais tributários, certamente poderemos defender a existência de uma importante relação entre tais convenções e a proteção do contribuinte contra a dupla tributação da renda. Contudo, com o passar do tempo, nota-se uma prevalência cada vez maior de dispositivos convencionais destinados à proteção das pretensões fiscais dos Estados Contratantes, como as relevantes regras sobre transparência e troca de informações, bem como o próprio sistema de prevenção do uso abusivo dos tratados.
Este fato nos recorda um aspecto que há muito destaco: a principal função de um acordo tributário é a repartição do poder fiscal entre os estados contratantes.
Nada obstante, embora os estados sejam, de fato, os protagonistas do Direito Internacional Tributário, é possível notar que boa parte dos intérpretes e comentadores dos tratados internacionais no Brasil tem uma visão deles que venho chamando de “contribuintecêntrica”, como se o sujeito passivo de deveres fiscais, e não os Estados, fosse o centro gravitacional das convenções tributárias.
Essa abordagem, segundo vejo, é equivocada. Os atores principais dos tratados internacionais tributários são os Estados, e tais acordos, como limitação ao poder de tributar soberano dos Estados Contratantes, devem ser exercidos nos exatos limites em que tais Estados concordaram em limitar a sua soberania em matéria fiscal.
É com essa premissa em mente que deve ser compreendida a Cláusula PTT. Ela é tipicamente uma regra cujos protagonistas são os Estados. Afinal, eles aceitaram limitar sua soberania, desde que fossem atendidas certas premissas e condições. O objetivo da Cláusula PPT é autorizar os Estados a deixar de observar determinado dispositivo convencional sem que, com isso, estejam violando o tratado e sujeitando-se, por consequência, às sanções típicas do Direito Internacional.
Vale observar que este tipo de abordagem não é nova nos acordos tributários. Vejamos, por exemplo, as regras de proteção da confidencialidade das informações nas trocas de informação. Ao analisarmos os dispositivos convencionais sobre a proteção de segredos comerciais, industriais, profissionais, de processos comerciais ou industriais, ou de informações contrárias à ordem pública, notaremos que sua redação assegura ao Estado que não será obrigado a fornecer tais informações e não prevê ao sujeito passivo o direito de que elas não sejam fornecidas.
Nessa linha de ideias, parece-nos que o objetivo da Cláusula PPT é proteger os Estados Contratantes, não os contribuintes.
Porém, não é só. Considerando que os tratados internacionais tributários não criam deveres tributários, não parece fazer sentido qualquer alegação de violação à legalidade tributária. Vejamos.
Tratados internacionais não criam o dever de pagar tributos
Ao considerarmos essa questão, devemos recordar que as convenções tributárias internacionais não criam o dever de pagar tributos. Elas afastam, em determinadas circunstâncias, deveres devidamente válidos e eficazes nos ordenamentos jurídicos domésticos.
De outra parte, os estados não são obrigados a evitar a dupla tributação internacional por meio de tratados internacionais. É só pensarmos que o Brasil não tem acordo com os Estados Unidos, com o Reino Unido ou, ainda, com a Alemanha. Nesses casos, o afastamento da dupla tributação nas transações entre residentes desses países passa a depender integralmente de regras previstas nas legislações domésticas.
A alegação de que haveria, na Cláusula PPT, uma violação à regra de legalidade tributária, ou à tal tipicidade tributária, parece partir de uma premissa equivocada de que os acordos celebrados pelo Brasil, discricionariamente, para afastar a dupla tributação da renda, teriam que se pautar por regras que regem o ordenamento jurídico tributário doméstico, as quais não parecem servir de pauta para o agir do Estado brasileiro em âmbito internacional.
Alegação de violação do princípio da segurança jurídica
Há quem alegue que a Cláusula PPT violaria o princípio da segurança jurídica e, assim, seria incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Esta é outra afirmação que nos parece insustentável.
Temos defendido que é possível identificar princípios no Direito Internacional Tributário, como a não dupla tributação, a transparência, o princípio antiabuso, entre outros. Nessa linha, certamente é possível considerar a existência de um princípio da segurança jurídica no contexto da tributação internacional.
Contudo, cremos que tal princípio, se serve como pauta hermenêutica para a interpretação de tratados internacionais, não pode ser considerado seu critério de validade, de modo que jamais será possível falar em violação a um princípio internacional da segurança jurídica, comumente referido como legal certainty.
Por outro lado, se considerarmos o ordenamento jurídico doméstico, certamente poderemos afirmar a existência de um princípio constitucional implícito da segurança jurídica. Nada obstante, parece-nos impensável uma análise de validade de um tratado internacional à luz do princípio constitucional doméstico.
Em primeiro lugar, temos que lembrar o que comentamos acima. A regra é a incidência. O tratado é um acordo que estabelece os limites em que os estados contratantes aceitam restringir o seu poder tributário. Esta é uma situação completamente distinta de outra em que houvesse um direito assegurado pela Constituição, que viesse a ser limitado por um tratado internacional.
De outra parte, não temos notícia de que um texto normativo tributário doméstico tenha sido julgado inconstitucional por ser “excessivamente vago ou indeterminado”. Se a Cláusula PPT for inconstitucional, certamente vários dispositivos da lei de preços de transferência (Lei nº 14.596/2023) e da lei que introduziu o adicional de CSLL (Lei nº 15.079/2024) serão igualmente inconstitucionais, assim como diversos outros dispositivos da legislação tributária. Se existe o tal princípio da tipicidade, provavelmente é o mais ineficaz de nosso sistema tributário constitucional.
Mesmo em termos domésticos, a segurança jurídica, em sua dimensão de previsibilidade, não é absoluta. Ainda mais quando se consideram os planejamentos tributários, área na qual haverá sempre uma zona de penumbra e incerteza, inevitável e não desconsiderada pelo contribuinte ao estruturar suas operações.
Dessa forma, certamente o princípio da segurança jurídica será relevante para a interpretação e aplicação da Cláusula PPT. Contudo, não parece possível questionar a sua validade com base nesse princípio.
Naturalmente, tem que haver provas
Nada do que foi dito até aqui deve ser interpretado de modo a restringir o ônus probatório substancial que deve ser exigido para a aplicação da Cláusula PPT. Reconhecer a sua validade não significa desconhecer a sua amplitude, os riscos de abuso ou desvio de finalidade em sua aplicação. Dessa forma, o que é realmente relevante, segundo vemos, é que se desenvolvam critérios aplicativos concretos que pautem a aplicação deste dispositivo, com a efetiva proteção da segurança jurídica do contribuinte.
Mecanismos de solução de controvérsias
Um último ponto importante a destacar é que, como se sabe, os tratados internacionais são dotados de mecanismo de solução de controvérsias, o procedimento amigável, atualmente regulamentado no Brasil pela Instrução Normativa nº 1.846/2018.
Dessa forma, caso a aplicação da Cláusula PPT acarrete dupla tributação, o sujeito passivo poderá valer-se do procedimento amigável para promover a busca de solução negociada entre o Brasil e o outro estado contratante.
É verdade que temos pouca tradição com procedimentos amigáveis, uma situação que, segundo acreditamos, deveria ser reconsiderada pelos contribuintes, muito acostumados a recorrer, em primeiro lugar, ao Poder Judiciário, com vistas à solução de controvérsias envolvendo a interpretação de tratados internacionais.
Conclusão
De forma um tanto surpreendente, muitos especialistas seguem apegados a modelos de discussão que, nesta quadra histórica, já deveriam ser considerados ultrapassados. Em 2025, argumentar que um tratado internacional viola o princípio da segurança jurídica ou a legalidade tributária parece nos enviar para a década de 1990, numa máquina do tempo tributária.
O pior é que esta fórmula tem apresentado resultados péssimos na defesa dos interesses legítimos dos sujeitos passivos de deveres tributários. As soluções binárias, constitucional/inconstitucional, verdadeiro/falso, têm sido reiteradamente rejeitadas pelos tribunais e pelos órgãos administrativos de julgamento, com destaque para o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
A Cláusula PPT expõe o sujeito passivo à incerteza e à insegurança relativas? Sem dúvida. Logo, devemos trabalhar para criar parâmetros aplicativos mais claros, brigar por um procedimento específico para o seu manejo pelas autoridades fiscais, defender a criação de um órgão especial com competência e capacidade técnica para sua aplicação, etc.
Tivéssemos feito isso em relação ao planejamento tributário doméstico em 2002, estaríamos num ambiente de maior segurança jurídica e previsibilidade, sem a menor dúvida. As mesmas vozes que, mais de 20 anos atrás, interditaram o debate sobre a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN, voltam agora, com a capa de defensores dos contribuintes. Com protetores assim, quem precisa de agressores?
Mini Curriculum
professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.
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