PL do IRPF afeta offshores e dá margem para tributar doação
Por Marcela Villar — De São Paulo
O Projeto de Lei (PL) nº 1087/2025, que amplia a isenção do Imposto de Renda (IRPF) e passa a tributar dividendos, conflita com outras normas tributárias e a Lei das Sociedades Anônimas, o que pode gerar litígios, segundo tributaristas. A atual redação, se mantida, dá margem para tributar doações, hoje isentas pelo Imposto de Renda, e aumenta em, pelo menos, 5% a tributação das offshores.
Advogada Karem Dias: medidas criadas pelo PL são injustas — Foto: Divulgação
Aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, o PL ainda prejudicaria o investimento de sócios em empresas com benefício fiscal. O uso de prejuízo fiscal e ágio para amortizar o IRPJ dificulta, afirmam especialistas, a aplicação do redutor do tributo para essas pessoas físicas, previsto na proposta.
Para eles, a redação do PL hoje é contraditória e beira a inconstitucionalidade, pois permite a bitributação sobre heranças e doações disponíveis (aquelas sem herdeiro necessário), já tributáveis pelo ITCMD, de competência dos Estados.
Alguns defendem que também fere a Constituição condicionar a não tributação dos lucros auferidos até 2025 à aprovação da distribuição em assembleia de acionistas até 31 de dezembro. O motivo é que há precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) que veda a cobrança retroativa (ADI 2588).
O texto foi aprovado na Câmara no dia 1º deste mês e agora está nas mãos do relator no Senado, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O parlamentar, porém, já declarou que irá mexer “o mínimo possível” no texto. Na prática, isso evitaria o retorno do PL à Câmara, onde o relator, Arthur Lira (PP-AL), é seu rival político.
Segundo o governo, a ampliação da base de isenção do IRPF beneficiará 15,5 milhões de brasileiros. Para compensar a perda na arrecadação, passou a tributar a alta renda e dividendos acima de R$ 50 mil ao mês. Desde 1996, os lucros e dividendos para pessoas físicas são isentos no Brasil.
O PL, diz a advogada Karem Dias, sócia do Rivitti e Dias Advogados, instituiu um modelo de tributação híbrido, pois não atinge todos os dividendos, apenas os que ultrapassem R$ 600 mil por ano para fins de retenção na fonte pela pessoa jurídica, com alíquota geral efetiva de 34% – 40% para seguradoras e 45% para bancos. Os que não tenham sido retidos na fonte, serão tributados na pessoa física, em até 10%.
O problema, para Karem, é que poucas empresas têm alíquota efetiva de 34% sobre o lucro, pois prejuízo fiscal, subvenções e ágio reduzem essa base de tributação. “O prejuízo está entrando no cômputo para diminuir a alíquota efetiva”, afirma. Isso impacta a aplicação dos redutores, previstos no artigo 16-A.
“Só se aplica o redutor quando a soma das alíquotas efetivas da pessoa jurídica e pessoa física ultrapassa a alíquota nominal dos 34%. Como a empresa vai ter tributação menor, por causa do incentivo, a alíquota efetiva da pessoa jurídica é menor”, diz o tributarista Roberto Barrieu, sócio do Cescon Barrieu. “Dificilmente a soma vai dar 34% e o redutor é afastado”, conclui.
Com esse efeito, as medidas criadas pelo PL são injustas, segundo Karem. Sobretudo porque muitas empresas, durante a pandemia da covid-19, acumularam prejuízo fiscal e usam parte dele para reduzir o IRPJ e a CSLL a serem pagos. “Uma empresa acumulou anos com sacrifício dos sócios investindo. Quando o negócio começa a dar frutos, a empresa compensa esse prejuízo e tributa os dividendos dos sócios”, afirma.
Ela dá o exemplo de uma empresa com lucro de R$ 100 milhões. Nem toda essa base será tributada se usar prejuízo fiscal, limitado a 30%. Ela vai tributar 70%, mas como a alíquota efetiva do IRPJ continua 34%, parte da tributação será inevitavelmente repassada ao sócio. “A empresa não teve alíquota efetiva de 34% e sim nominal, porque ela pagou 34% sobre 70%. Como não alcançou os 34%, tributa o acionista em 10%”, diz.
Há ainda as deduções como Sudam e Sudene, criados para incentivar o desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, que reduzem 75% do IRPJ a pagar sobre o lucro do empreendimento, além do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e atividades audiovisuais, que reduzem o IRPJ em 4%, dentre outros benefícios. Quanto mais eles reduzem para a empresa, mais o sócio paga de tributo, dizem os especialistas.
Na visão de Thais De Laurentiis, do Rivitti e Dias, há uma “dislexia” no projeto. Ele considera apenas o Prouni, que oferta de bolsas de estudo, como incentivo fiscal que entra no cálculo. “Se tem política pública de incentivo de determinada atividade, não adianta dar com uma mão o incentivo para a pessoa jurídica e tirar com outra, que é tributar a pessoa física que investe naquela empresa”, afirma.
Sobre a condição para não taxar dividendos neste ano, a advogada diz que, além de inconstitucional, não é fácil de cumprir. “Para o lucro estar preservado, é preciso deliberar até o fim do ano o exato montante que a empresa disser que vai pagar em 2026, 2027 e 2028”, afirma Karem. “Ela nem está com o balanço fechado para determinar essa distribuição.”
Como as empresas listadas em bolsa só estão obrigadas a publicar o balanço e determinar a distribuição de dividendos de 2025 até abril de 2026, a tributarista recomenda a publicação de um balanço intercalado no mês de novembro, se a companhia não quiser judicializar.
Para Roberto Barrieu, há um conflito da permissão de distribuir até 2028 com o artigo 205 da Lei das S.A., que determina a deliberação e distribuição do lucro no mesmo ano. “Por um lado, a lei tributária está dizendo que pode pagar até 2028, mas tem que deliberar em 2025. Mas pela Lei das S.A., quando delibero em 2025, tenho que pagar até fim de 2026”, diz.
O ideal, acrescenta, seria que o Senado ajustasse o texto para dizer que lucros apurados até o dia 31 de dezembro de 2025 poderiam ser deliberados posteriormente e pagos até abril de 2028.
Há ainda a possibilidade de as empresas enfrentarem ações judiciais de acionistas, se pagarem dividendos com atraso, pois a jurisprudência determina aplicar correção. “Se a companhia fixar data e não pagar o dividendo, está sujeita à correção, o que é mais um problema”, afirma Barrieu.
Em relação às offshores, o tributarista alerta que eventual ganho da variação cambial, quando distribuídos os lucros no Brasil, não está na lista de exceção do artigo 16-A do PL, que garante a isenção. “Como o rol é taxativo, só posso excluir o que estiver ali”, diz. E não está ali o crédito de dividendos, isento pelo artigo 5º, parágrafo 5º da Lei das Offshores, a nº 14.754/2023.
“Como esse rendimento isento não foi contemplado na lista do PL, ele estaria sujeito à tributação em eventual recebimento do dividendo”, afirma Lucas Resende, também do Cescon Barrieu. Assim, além da cobrança de 15% pela Lei das Offshores (ou 10% de retenção ao sair do Brasil), os valores podem ser tributados novamente em 10% na declaração da pessoa física – o que aumenta a carga tributária em, no mínimo, 5%.
Já sobre a possível tributação de doações, o PL estabelece como exceção “os valores recebidos por doação em adiantamento da legítima ou herança”. A menção é diferente do previsto na legislação do IR. “O ideal, para evitar litígios, seria excluir a expressão ‘em adiantamento da legítima’, pois ela gera dúvidas e contraria o disposto no inciso XVI do artigo 6º da Lei nº 7.713/88, que isenta do IRPF ‘o valor dos bens adquiridos por doação ou herança’”, diz Thais De Laurentiis.
Para Karem Dias, é uma “pegadinha”. “A doação que não vai entrar é só a legítima, no montante da herança necessária, que é metade do patrimônio”, afirma. “O PL não tirou as doações de modo geral. Isso é muito perigoso, porque está se tributando o patrimônio pelo imposto sobre a renda.”
Procurado pelo Valor, o Ministério da Fazenda não quis comentar o assunto. O senador Renan Calheiros não deu retorno até o fechamento da edição.