Setor portuário e movimentação de contêineres: sobre a cobrança do SSE
Maria Carolina Feitosa, Matheus de Souza Depieri
O setor portuário é de extrema relevância para a economia brasileira. Como destacado por Quintella, “o transporte marítimo representa cerca de 90% do comércio internacional e mais de 80% das exportações brasileiras são realizadas por meio de portos marítimos”. Além da importância estratégica do setor, o Estatístico Aquaviário da Antaq vem demonstrando um crescimento relevante nos últimos anos: apenas no primeiro semestre de 2024 (janeiro a junho), registrou-se um crescimento de 4,28% em comparação ao exercício anterior, chegando a uma movimentação de 644,8 milhões de toneladas.
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Considerando os números expressivos do transporte aquaviário, as controvérsias relativas à cobrança de preços são constantemente alvo de debates setoriais, especialmente em virtude dos desafios regulatórios. Um dos pontos focais de debate, que se encontra há décadas na agenda regulatória do setor portuário, consiste no chamado Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres (SSE).
Apesar de ser uma discussão antiga, o referido preço voltou recentemente ao centro das atenções, considerando movimentações importantes no âmbito do TCU (Tribunal de Contas da União) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Nesse contexto, tendo em vista a relevância do tema para o setor portuário, este artigo terá como objetivo situar a controvérsia e fornecer um panorama geral do debate, de forma a brevemente comentar (i) as divergências existentes sobre a cobrança do SSE; (ii) os avanços e discussões no âmbito do TCU; e (iii) movimentos recentes no âmbito do STJ.
O que é SSE e quais as controvérsias sobre preço?
Nos termos da Resolução Antaq nº 72/202, a taxa de movimentação no terminal ou Terminal Handling Charge (THC) é um “preço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas”.
De acordo com as definições setoriais e com as práticas de mercado, há uma diferença significativa na abrangência do THC entre importação e exportação. Na importação (quando há a cobrança do SSE), o preço abrange o serviço prestado entre o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário.
Após a alocação do contêiner na “pilha comum”, o importador pode livremente escolher uma série de caminhos diferentes para a sua carga, podendo optar, por exemplo, por: (i) retirar os contêineres para suas instalações; (ii) manter os contêineres no mesmo operador portuário de desembarque, (iii) remover os contêineres para outro operador portuário localizado na zona primária do porto (IPA), ou (iv) remover os contêineres para um terminal retroportuário alfandegado (TRA).
Caso se opte pela opção (iv) acima descrita, incide a cobrança do SSE. Esse preço é exigido quando existe um serviço adicional requerido: o de segregação para posterior destinação aos TRAs. Esse pedido, naturalmente, implica custo adicional — especialmente em função da necessidade de disposição de recursos humanos, tecnológicos e logísticos necessários para atender demandas e trâmites burocráticos (especialmente considerando que as regulamentações aduaneiras demandam a efetiva remessa do contêiner dentro do período de 48 horas).
Apesar da dinâmica setorial acima destacada, a cobrança do SSE é comumente questionada, especialmente por terminais retroportuários. Conforme comumente argumentado, os agentes contrários à referida cobrança argumentam pela inexistência do SSE (considerando que, nessa perspectiva, o trabalho de segregação de contêineres já estaria incluso no THC), pelos efeitos anticoncorrenciais da cobrança (alegando-se que o SSE estaria acarretando um efeito exclusionário dos retroportos), entre outros.
A divergência sobre a natureza e sobre a cobrança do SSE levaram a intensa litigiosidade, bem como a grandes debates regulatórios no âmbito da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Apesar de ser um debate amplo, envolvendo diversos agentes, o presente artigo focará apenas em recentíssimas discussões em curso no TCU e no STJ, que têm o potencial de moldar a regulação setorial no curto (ou médio) prazo.
Suspensão da cobrança pelo TCU e futuros desdobramentos
A discussão sobre a cobrança do SSE não é novidade no âmbito do TCU. A Corte de Contas tem acompanhado a regulamentação do setor portuário há décadas, e decisões anteriores já haviam provocado aprimoramentos regulatórios.
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Apesar disso, a cobrança do SSE teve uma alteração significativa após a prolação do Acórdão nº 1.448/2022, nos autos do Processo TC nº 021.408/2019-0. Nessa decisão, o Plenário do TCU julgou procedente uma denúncia “em face do desvio de finalidade do ato de expedição da Resolução Antaq 72/2022” e determinou à Antaq que “anule todos os dispositivos da Resolução … que dizem respeito à possibilidade de cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner (SSE)”.
A consequência prática do referido acórdão, portanto, foi a proibição, em todo o território nacional, da cobrança do referido preço — de forma que diversos agentes do setor estão sendo obrigados a prestar um serviço, sem que haja a contrapartida remuneratória pelos investimentos e custos dele decorrentes.
Recentemente, no entanto, o TCU parece ter avançado no seu entendimento sobre o SSE. Nos autos do processo acima citado, foi dado prosseguimento ao processo de análise do pedido de reexame da Antaq, com a conclusão da instrução do caso pela área técnica. Apesar de manifestação contrária do auditor-chefe, a instrução da 1ª Diretoria da Unidade de Auditoria Especializada em Recursos se manifestou pelo provimento parcial do recurso da Antaq, para que:
“Se adote entendimento que reconheça o papel regulador da Antaq na matéria em questão e, admitindo-se a continuidade da sua atuação nesse ponto, se mantenha a suspensão da cobrança do THC-2/SSE até que a Antaq expeça regulamento que inclua (i) metodologia para identificação de abusividade na cobrança do SSE para apuração de denúncias; e (ii) procedimento para o cálculo dos preços admitidos na cobrança do SSE para cada complexo portuário.”
Ao contrário da decisão atualmente vigente, a sugestão de encaminhamento da unidade técnica reconheceu a racionalidade econômica da cobrança do SSE, mas apontou a necessidade de melhorias regulatórias.
Entendimento similar também foi adotado no relatório final da auditoria operacional sobre a prestação do serviço portuário (TC 020.789/2023-8). A auditoria operacional em comento teve o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento da regulação e da fiscalização da Antaq quanto à prestação adequada dos serviços de transporte e de movimentação de cargas em contêineres e, para a sua elaboração, contou com visitas técnicas em terminais portuários e recintos alfandegados de zona secundária, entrevistas com stakeholders, especialistas e usuários dos serviços, além de requisição, coleta e análise de dados e documental.
Após amplo estudo do setor portuário, concluiu-se, entre outros, que: (i) “há custo incremental relacionado à cesta SSE em razão do uso mais intenso de recursos de movimentação, tendo em vista o requisito de prioridade de entrega do contêiner para o trânsito aduaneiro”; e (ii) “os serviços da cesta SSE, assim como outros prestados após a colocação na pilha de armazenagem, são passíveis de cobrança, mas devem ser acompanhados pela Antaq para evitar práticas abusivas”.
Considerando a vasta instrução e coleta de informações sobre a temática, portanto, o TCU se encaminha para prolatar novas determinações sobre a referida cobrança, de forma que a expectativa do setor é que as decisões que venham a ser proferidas, nos autos da denúncia e da auditoria, sejam convergentes e harmônicas, e prestigiem todo o trabalho da área técnica na coleta de informações setoriais.
Recentes discussões no STJ sobre SSE
Em complementação a todas as movimentações recentes verificadas no âmbito do TCU, os agentes interessados nas discussões sobre o SSE também devem destinar especial atenção para possíveis desdobramentos de debates em curso no STJ.
Apesar de a cobrança do SSE já ter chegado ao STJ anteriormente por meio de recursos especiais, encontra-se em julgamento um dos primeiros casos no qual o tribunal analisa efetivamente o mérito da controvérsia. Nos Recursos Especiais nºs 1.899.040 e 1.906.785, dois agentes do setor portuário contendem, justamente, sobre a possibilidade da cobrança do SSE.
O que chama atenção desses casos, no entanto, é o possível escopo da decisão a ser prolatada. Isso porque, antes de prosseguir com o julgamento do mérito dos recursos, o STJ deverá analisar a extensão da decisão a ser proferida. Atualmente, há visões divergentes sobre o que deveria ser analisado:
(i) por um lado, a ministra Regina Helena defende que o STJ, ao julgar os processos acima citados, não estaria fazendo uma análise a respeito do aspecto anticoncorrencial do SSE em si (mas apenas definindo se, à vista das competências normativas, a previsão de cobrança do SSE afasta a aplicação das normas protetivas da competitividade); e (ii) por outro lado, o ministro Gurgel de Faria defendeu a análise ampla dos aspectos concorrenciais do SSE, para que o STJ possa enfrentar o mérito da controvérsia em toda a sua extensão.
Apesar de o recurso especial ter efeito inter partes, é possível, caso o posicionamento do ministro Gurgel de Faria prevaleça, e caso o STJ analise a legalidade do SSE em termos mais gerais, que a decisão a ser proferida acabe por impactar significativamente toda a discussão setorial da cobrança do SSE. O julgamento está previsto para continuar em data próxima, e certamente haverá interesse de todo o setor portuário em acompanhar os possíveis desdobramentos dessa nova frente de discussão sobre o SSE.
Conclusão
As discussões sobre a cobrança do SSE perduram no setor portuário há décadas. Apesar de significativas controvérsias, e de todo o avanço regulatório nas agências especializadas, o debate voltou à tona recentemente, com o avanço de discussões relevantes tanto no âmbito do TCU quanto do STJ.
Considerando que os debates nessas instâncias ainda estão pendentes de deliberação, resta aos interessados no setor portuário, por ora, o acompanhamento dos desdobramentos dos referidos julgamentos, tendo em vista todos os impactos e alterações regulatórias que podem decorrer do julgamento dos processos no TCU e no STJ.
Maria Carolina Feitosa, Matheus de Souza Depieri
Maria Carolina Feitosa
é advogada, doutoranda em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) e mestre pela mesma universidade.
Matheus de Souza Depieri
é advogado. Mestre em Direito (LL.M.) pela Universidade de Cambridge. General editor da Cambridge International Law Journal; associate editor da Cambridge Law Review; e associate editor da International Review of Constitutional Reform.