O impacto da reforma tributária: as empresas comerciais exportadoras

Arnaldo Diefenthaeler Dornelles Liziane Angelotti Meira

Dando continuidade ao exame da reforma tributária proposto no artigo “O impacto da reforma tributária no comércio exterior (parte 1)” [1], vamos discorrer sobre a atuação das empresas comerciais exportadoras e as novas regras para essa atividade constantes do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68/2024.

Cumpre lembrar que a atividade das empresas comerciais exportadoras no comércio internacional brasileiro remonta formalmente a pouco mais de meio século.

O regime jurídico das trading companies
A publicação do Decreto-Lei nº 1.248, de 29 de novembro de 1972, que, segundo sua exposição de motivos [2], tinha por objetivo criar um mecanismo ágil e flexível que possibilitasse uma maior participação dos pequenos e médios produtores nacionais no mercado internacional, permitiu que as chamadas trading companies [3] adquirissem mercadorias manufaturadas no mercado interno com o fim específico de exportação [4]. A ideia era que as operações fossem estruturadas em volumes adequados para se beneficiarem das economias de escala.

Para os produtores-vendedores, o Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, oferecia os benefícios fiscais concedidos para incentivo à exportação [5]. Para as empresas comerciais exportadoras, além desses benefícios, estava reservada uma dedução do lucro real das parcelas correspondentes à diferença entre o valor dos produtos manufaturados comprados de produtores-vendedores e o valor FOB de venda.

Mas as empresas comerciais exportadoras deviam, efetivamente, exportar as mercadorias adquiridas com o fim específico de exportação, sob pena de, além de não fazerem jus aos benefícios, responderem pelos tributos devidos e pelos benefícios fiscais auferidos pelos produtores-vendedores.

O legislador, devido ao caráter excepcional desses benefícios [6] e visando à proteção e segurança das relações no país, estabeleceu condições mínimas para a atuação dessas empresas comerciais exportadoras: constituição sob a forma de sociedade por ações; registro especial (precário) junto à Receita Federal e à Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços [7]; e ainda um capital mínimo.

As demais empresas comerciais exportadoras e seu regime jurídico
Depois disso, diversos outros diplomas legais atualizaram e complementaram os benefícios relativos às vendas feitas pelos produtores-vendedores às empresas comerciais exportadoras com o fim específico de exportação [8], a maioria deles sem fazer qualquer referência ao Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, ou aos requisitos nele estabelecidos, ampliando, com isso, o alcance dos benefícios concedidos.

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A construção legislativa, da forma como foi desenhada, acabou criando na prática duas espécies de empresas comerciais exportadoras com benefícios muito semelhantes: aquelas constituídas com base no Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, também conhecidas como trading companies, e as demais, que são sociedades empresárias constituídas sem qualquer exigência relativa à sua natureza, à necessidade de registro para controle ou a capital social mínimo [9]. Para essa segunda espécie, basta que a sociedade atue como empresa comercial exportadora, adquirindo no mercado interno produtos com o fim específico de exportação.

As controvérsias sobre as diferenças entre os dois regimes jurídicos
Em relação aos benefícios oferecidos a essas duas espécies de empresas comerciais exportadoras, a principal diferença está no fato de que as trading companies estão autorizadas a manter as mercadorias adquiridas no mercado interno em depósito privativo, pelo prazo de até 180 dias, sob regime aduaneiro especial de entreposto extraordinário na exportação, ao passo que as aquisições das demais devem ser remetidas diretamente para embarque de exportação ou para recintos alfandegados.

Isso é o que temos em termos de legislação. Nesse contexto, há pelo menos uma controvérsia e um problema nessa construção, que fica por conta do conceito relativo a “fim específico de exportação”.

Nos termos do Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, “consideram-se destinadas ao fim específico de exportação as mercadorias que forem diretamente remetidas do estabelecimento do produtor-vendedor para: a) embarque de exportação por conta e ordem da empresa comercial exportadora; b) depósito em entreposto, por conta e ordem da empresa comercial exportadora, sob regime aduaneiro extraordinário de exportação, nas condições estabelecidas em regulamento”, enquanto que a Lei nº 9.532, de 1997, diz que “consideram-se adquiridos com o fim específico de exportação os produtos remetidos diretamente do estabelecimento industrial para embarque de exportação ou para recintos alfandegados, por conta e ordem da empresa comercial exportadora”.

Em síntese, esses dois dispositivos legais dizem a mesma coisa. A diferença dos termos utilizados fica por conta de que o Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, aplicável apenas para as trading companies, que prevê a possibilidade de envio das mercadorias adquiridas no mercado interno para um entreposto extraordinário na exportação, e a Lei nº 9.532, de 1997, estabeleceu uma suspensão do IPI para toda e qualquer empresa comercial exportadora, mesmo aquelas que não fazem jus à manutenção de um entreposto extraordinário na exportação.

Mas a controvérsia propriamente dita reside no termo “diretamente”, utilizado em ambos os conceitos. A Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 24, de 2019, entendeu que o único significado possível para o conceito de “remetidos diretamente” é de que a remessa dos produtos destinados a exportação “deve ser imediata, sem paradas, sem desvios, do estabelecimento industrializador-vendedor para o embarque de exportação ou para os recintos alfandegados”.

Esse também tem sido o entendimento do Carf em grande parte de suas decisões, a exemplo do que foi decidido no Acórdão 9303-014.389, da 3ª Turma da Câmara Superior, que traz, no voto da Conselheira relatora, o argumento de “que não basta comprovar a venda para uma comercial exportadora ou que a exportação foi por ela realizada. A operação de venda tem que ter sido feita com o ‘fim específico de exportação’ e cumpridos os requisitos para tal, que estão expressamente previstos na Lei (não cabendo interpretação ampliativa, como obsta o artigo 111, do CTN), e que permitem o efetivo controle aduaneiro exercido pela administração tributária”. Importante ter presente que essa interpretação ainda tem sido objeto de críticas no sentido de que seria muito restritiva.

Outro ponto a ser considerado diz respeito ao fato de que a Constituição de 1988, diferentemente da Constituição de 1967, trata expressamente da imunidade do IPI na exportação e da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins sobre as receitas decorrentes de exportação [10]. Além disso, o próprio STF decidiu no RE nº 759.244 que a imunidade tributária alcança as exportações de produtos por meio de empresas comerciais exportadoras, se bem que em matéria relacionada com contribuição previdenciária, tendo produzido a seguinte tese de repercussão geral (Tema 674): “A norma imunizante contida no inciso I do §2º do artigo 149 da Constituição da República alcança as receitas decorrentes de operações indiretas de exportação caracterizadas por haver participação de sociedade exportadora intermediária”.

Quanto ao problema, ele parece trazer consequência um pouco mais grave. Ao estender os benefícios para outras empresas comerciais exportadoras que não aquelas constituídas nos termos do Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, a legislação abriu caminho para a prática de fraudes.

Ressalte-se que há muitas e muitas empresas que trabalham com seriedade no comércio exterior, mas é preciso reconhecer também (e a prática demonstra isso) que a falta de requisitos mínimos para a atuação de empresas comerciais exportadoras facilita que algumas empresas inidôneas adquiram mercadorias no mercado interno com desoneração de tributos e destine essa mercadoria não para exportação, mas sim para o próprio mercado interno. Nessa operação, o produtor-vendedor recebe todos os benefícios relativos aos tributos federais e a responsabilidade passa a ser da empresa comercial exportadora que, quando autuada, encerra suas atividades e desaparece, deixando um crédito incobrável para o fisco federal. Essa conduta, além de frustrar o recolhimento de tributos, prejudica, por meio de concorrência desleal, as empresas idôneas.

O novo regime trazido pelo PLP nº 68, de 2024
Com o objetivo de afastar essa controvérsia e pensando em resolver esse problema, que o grupo de trabalho que participou da elaboração do texto que resultou no PLP nº 68, de 2024, procurou construir uma solução para a questão envolvendo o IBS e a CBS no fornecimento de bens materiais a empresa comercial exportadora.

A consciência de que as vendas para empresas comerciais exportadoras destinadas para exportação são, em última análise, equiparadas à exportação, e, por isso mesmo, (potencialmente) imunes do IBS e da CBS, exigia que quaisquer requisitos que se pretendesse estabelecer para a atuação das empresas comerciais exportadoras estivessem especificados na lei complementar.

É por esse motivo que o caput do artigo 81 do PLP nº 68, de 2024, traz em seus incisos cinco requisitos de observância obrigatória para que possa ser aplicada a suspensão do IBS e da CBS no fornecimento de bens materiais com o fim específico de exportação a empresa comercial exportadora: (1) certificação no Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (OEA); (2) patrimônio líquido igual ou superior ao maior entre os seguintes valores: R$ 1 milhão e uma vez o valor total dos tributos suspensos; (3) opção pelo DTE; (4) manutenção e apresentação de escrituração contábil em meio digital; e (5) regularidade fiscal perante as administrações tributárias federal, estadual ou municipal de seu domicílio.

Não cumprir tais requisitos não significa dizer que a empresa não é uma comercial exportadora, ou que não possa fruir dos benefícios estabelecidos pelas demais leis que tratam da matéria, mas sim que não poderá ser habilitada [11] para fins de suspensão do IBS e da CBS.

Note-se que a presença desses requisitos na Lei Complementar, juntamente com o rito de cancelamento da habilitação previsto no artigo 82, mostra-se importante não para restringir o acesso das empresas à atividade de comercial exportadora, mas sim para mitigar a ocorrência de fraudes nesse tipo de operação.

Quanto ao fato de o caput do artigo 81 ter estabelecido uma suspensão do pagamento do IBS e da CBS ao invés de uma “não incidência”, o que seria mais alinhado com a ideia de que estamos diante de uma imunidade, a explicação está na resistência encontrada no sentido de se conceder um crédito antes de a exportação ser efetivada, ou antes de a empresa comercial exportadora recolher o IBS e a CBS em razão da não exportação dos bens materiais.

No que diz respeito à controvérsia sobre o conceito de “fim específico de exportação”, apesar de o caput do artigo 81 do PLP nº 68, de 2024, manter a mesma expressão, o § 3º deste mesmo artigo 81 traz uma definição mais adequada ao que se espera nesse tipo de operação.

Além de ter sido retirado do conceito o termo “diretamente”, foi acrescentado ao final aquilo que efetivamente se quer vedar, ou seja, que a mercadoria seja objeto de qualquer operação comercial ou industrial entre a saída do vendedor e o embarque para exportação ou a chegada em recinto alfandegado [12].

Ademais, os incisos I e II do § 10 desse mesmo artigo 81 permitem que o regulamento estabeleça hipóteses em que os bens possam ser remetidos para locais diferentes daqueles previstos no § 3º (sem que reste descaracterizado o fim específico de exportação) e também que estabeleça requisitos e condições para a realização de operações de transbordo, baldeação, descarregamento ou armazenamento no curso da remessa a que se refere o § 3º.

Considerações finais
Tudo isso, nos parece, torna o conceito de “fim específico de exportação” mais aderente à realidade das operações de exportação realizadas por meio de empresas comerciais exportadoras.

Talvez não tenhamos evoluído tudo aquilo que seria possível, ou desejável, em relação à atuação das empresas comerciais exportadoras na proposta de reforma tributária expressa por meio do PLP nº 68, de 2024, mas nos parece que há uma evolução significativa em relação ao que temos hoje em nossa legislação. Agora é esperar para ver o que o Congresso aprovará.

[1] Artigo de autoria de Liziane Angelotti Meira, (Disponível em . Acesso em: 26.jul.2024).

[2] Publicada nas páginas 39 e 40 do Diário do Congresso Nacional do dia 21 de março de 1973.

[3] Expressão utilizada para se referir às empresas comerciais exportadoras que atendem aos requisitos estabelecidos pelo Decreto-Lei nº 1.248, de 1972.

[4] O Decreto-Lei nº 1.248, de 1972, define como destinadas ao fim específico de exportação as mercadorias remetida diretamente do estabelecimento do produtor-vendedor para embarque de exportação ou para depósito em entreposto, sob regime aduaneiro extraordinário de exportação.

[5] O Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, alterou a redação do art. 3º para restringir o aproveitamento de créditos tributários sobre as vendas para o exterior, concedidos como ressarcimento de tributos pagos internamente, apenas para as empresas comerciais exportadoras.

[6] A Constituição de 1967 (com a emenda de 1969), vigente à época, tratava tão somente da não incidência do ICMS na exportação de produtos industrializados (e outros que a lei indicasse), sem qualquer referência ao IPI ou às contribuições na exportação.

[7] Havia necessidade, também, de um registro especial junto à Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil S/A (Cacex).

[8] A Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, equiparou as vendas feitas para as empresas comerciais exportadoras à exportação para fins de não incidência do ICMS; a Lei nº 9.363, de 13 de dezembro de 1996, permitiu que os produtores-vendedores apurassem crédito presumido do IPI; a Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997, suspendeu o pagamento do IPI nessas operações; a MP nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, isentou da Cofins (cumulativa) as receitas auferidas pelos produtores-vendedores; e a Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e a Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, estabeleceram a não incidência, respectivamente, da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins sobre as receitas decorrentes dessas operações.

[9] A Receita Federal reconheceu essas duas espécies de empresas comerciais exportadoras, e os benefícios aplicáveis a elas, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 80, de 24 de janeiro de 2017, e da Solução de Consulta Cosit nº 24, de 18 de janeiro de 2019.

[10] Imunidade introduzida pela Emenda Constitucional n º 33, de 2001.

[11] Para fins de suspensão do IBS e da CBS, a empresa comercial exportadora deverá ser habilitada em ato conjunto da RFB e do Comitê Gestor do IBS (§ 1º do art. 81 do PLP nº 68, e 2024.

[12] § 3º. Consideram-se adquiridos com o fim específico de exportação os bens remetidos para embarque de exportação ou para recintos alfandegados, por conta e ordem da empresa comercial exportadora, sem que haja qualquer outra operação comercial ou industrial nesse interstício.

Arnaldo Diefenthaeler Dornelles Liziane Angelotti Meira

Arnaldo Diefenthaeler Dornelles
é auditor-fiscal da Receita Federal e exerce mandato de conselheiro representante da Fazenda Nacional, na 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, participou do GT1 – Importação e Regimes Aduaneiros Especiais do Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo, graduado em Direito e em engenharia elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em mercado de capitais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Liziane Angelotti Meira
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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