Importador tem que conviver com tribunal ilegal, dizem tributaristas
O empresário que trabalha no setor de importação e exportação no Brasil está à mercê de um tribunal manifestamente ilegal para decidir sobre a maior punição que existe no mercado, que é a do perdimento da mercadoria importada.
Receita Federal – Fachada – Brasília – Agência Brasil – Ministério da Fazenda – Superintendência –
Especialistas apontam ilegalidade em tribunal da Receita que julga atos da própria Receita
Essa é a opinião da unanimidade dos especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a legalidade do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul).
Criado em 2023, o Cejul inicialmente tinha o objetivo de dar ao importador a garantia da dupla jurisdição no caso de perdimento da mercadoria. Sua existência, no entanto, descumpre dispositivos de tratados internacionais assinados pelo Brasil como, por exemplo, o artigo 10.5 do Anexo Geral da Convenção de Quioto Revisada (CQR), internalizada pelo Decreto nº 10.276/2020 quanto ao “direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”.
Isso porque, o Cejul funciona de maneira não paritária — diferentemente do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). Isso quer dizer que, na prática, a Receita é que julga atos da Receita.
Segundo o advogado Augusto Fauvel de Moraes, especialista em Direito Aduaneiro e Fundador e ex-presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-SP, a discussão sobre a garantia do duplo grau de jurisdição começou em 2018. Ele chegou a publicar artigo na ConJur defendendo a necessidade de garantir o duplo grau de jurisdição nas penas de perdimento.
Após estudos e fundamentado no entendimento jurisprudencial, foi inicialmente indicado o PL 10.473/2018 apresentado pelo então deputado federal Goulart sob a justificativa da necessidade de alteração do Decreto-Lei 1.455, narrou Fauvel, “para se permitir a aplicação do dispositivo constitucional do devido processo legal concernente ao duplo grau de jurisdição nas penas de perdimento de mercadorias provenientes do exterior”.
O PL foi modificado de maneira que ficou irreconhecível e não cumpriu a função prometida, na avaliação dele.
O advogado e presidente da comissão de Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Leonardo Branco, tem opinião parecida e já classificou o Cejul como um “tribunal ilegal”.
“O Cejul é um tribunal ilegal, por contrariar diversos tratados e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e internalizados na legislação federal. Os efeitos da atuação deste tribunal, portanto, são nulos, pois, tecnicamente, seus despachos e decisões estão sendo proferidos por autoridade incompetente. A autoridade competente seria aquela independente com relação aos atos e normas editados pela Receita Federal do Brasil”, afirmou.
Opinião semelhante à de Alexandre Tortato, mestre em Direito Tributário pela FGV/SP e ex-conselheiro do Carf. “A criação do Cejul, nitidamente, afronta a exigência de independência contida nos acordos internacionais firmados e internalizados pelo Brasil, pois estabelece o julgamento dos pedidos de revisão das penas de perdimento pelas autoridades do mesmo órgão que as aplicou.”
Renata Amarante Bardella, sócia do escritório Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados (Bratax) segue o mesmo caminho. “O item 10.5 do Anexo Geral da Convenção de Quioto Revisada (CQR) assegura o duplo grau administrativo (visto que o item 10.6 já trata da esfera judicial) na forma do direito de recurso para uma autoridade independente da Administração Aduaneira, o que não se vê na composição do Cejul. O Cejul é composto integralmente por auditores-fiscais da RFB — e quem fiscaliza operações de importação e aplica a pena de perdimento também são auditores-fiscais da RFB. Por mais que sejam subsecretarias distintas, estão debaixo do mesmo guarda-chuva”, explica.
Efeitos do Cejul
Branco explica que os problemas provocados pelo Cejul só tendem a aumentar. “Conforme o Brasil aumenta a sua participação no comércio internacional, as demandas dos importadores, exportadores e da própria Receita Federal sobre o tema vão aumentando em volume e complexidade”.
Tortato, por sua vez, acredita que a atuação do Cejul deve aumentar ainda mais a judicialização do tema. “Ainda que possa ocorrer um ganho de celeridade nos julgamentos dessa matéria, justificativa inclusive para criação do Cejul, o principal efeito será um aumento na manutenção das penas de perdimento aplicadas no julgamento dos recursos que serão realizados pelas autoridades que compõem a mesma estrutura administrativa que aplicou a pena, ou seja, a própria Receita Federal do Brasil”.
Como mitigar o problema
Para sanar o vício de uma decisão contrária a acordos internacionais assinados pelo Brasil, o caminho é levar a questão ao Poder Judiciário, na opinião de Branco. “É levar a questão ao Poder Judiciário para que declare a nulidade de suas decisões, e um caminho imediato, que é extinguir este órgão antes que gere ainda mais prejuízos aos Administrados e, a médio prazo, à própria Administração, que terá inúmeros atos revistos pelo Poder Judiciário”, opina.
“Isso sem contar a violação aos acordos e compromissos internacionais que depõem contra a idoneidade do Brasil na relação com os demais membros da OMC e da OMA em desrespeito à cláusula do tratamento nacional”.
Já Renata explica que existe uma razão que pode justificar um rito separado para a pena de perdimento aplicada sobre a mercadoria e a sua versão multa equivalente ao valor aduaneiro.
“A urgência sobre uma mercadoria apreendida é muito maior; para além de dispêndios vultosos com armazenagem, enfrenta-se a própria finalidade para a qual aquela mercadoria está sendo importada. Projetos dos mais diversos portes, por vezes compreendendo serviços públicos, além de penalidades contratuais por atrasos são questões que demandam um tratamento diferenciado para o perdimento aplicado à mercadoria e não à multa equivalente ao seu valor aduaneiro”.
A especialista entende que o perdimento sobre a mercadoria demanda uma resposta rápida. “Ocorre que a celeridade não pode ser pretexto para insegurança jurídica ou para diminuir os direitos do importador. Um primeiro aspecto para conferir credibilidade ao Cejul consiste na efetiva transparência do teor das decisões e julgamentos, não limitada a ementas. Compreender os argumentos utilizados para manter ou reverter o perdimento permitirá avaliar a real independência do órgão”.
Rafa Santos
é repórter da revista Consultor Jurídico.