Limites à compensação de créditos reconhecidos por decisões judiciais

Isabela Bandeira, Trícia Barradas

Em mais uma manobra voltada a minimizar o impacto da chamada “Tese do Século” nos cofres públicos, o governo federal editou a Medida Provisória nº 1.202, de 28 de dezembro de 2023 que, dentre outras inovações, alterou a sistemática de compensação administrativa de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado cujo valor total seja igual ou superior a R$ 10 milhões.

Referida norma instituiu a possibilidade de ato da lavra do ministro da Fazenda fracionar a utilização, no tempo, de créditos dessa natureza, mediante fixação de um limite mensal não inferior a 1/60 do seu montante total, demonstrado e atualizado na data da entrega da primeira declaração de compensação.

Nesse contexto, foi publicada a Portaria Normativa MF nº 14, de 5 de janeiro de 2024, estabelecendo seis faixas de limites mensais a serem no particular observados, escalonadas com base no valor total compensável, sendo mais gravosa ao contribuinte aquela aplicável a créditos iguais ou superiores a R$ 500 milhões, para os quais restou estipulado um prazo mínimo de utilização de 60 meses.

Vale sinalizar que tanto a MP nº 1.202/2023 quanto a Portaria Normativa MF nº 14/2024 já estão em plena produção de efeitos, alcançando, portanto, todas as declarações de compensação formalizadas a partir do mês de janeiro deste ano nas quais empregados créditos que se amoldem aos seus parâmetros – reconhecidos pelo Poder Judiciário e cujo importe supere a cifra de R$ 10 milhões —, inclusive aqueles previamente habilitados e cuja utilização já tenha sido iniciada.

E caso estes novos parâmetros não sejam respeitados, vale dizer, na hipótese de que o contribuinte não observe o limite mensal aplicável ao crédito de sua titularidade, terá que arcar com a efetiva penalidade de ter a sua compensação considerada não declarada, o que permite que o Fisco promova a imediata cobrança dos débitos que se pretendia liquidar, com todos os acréscimos cabíveis, sem que lhe seja permitido apresentar defesa ou recursos na esfera administrativa.

Argumentos pelo afastamento das limitações
Assim, não há dúvidas de que o novo regramento acarreta imediato e nocivo efeito caixa, diante do que é natural e até esperado que venha a sofrer questionamentos judiciais por parte de contribuintes diretamente afetados pelos seus termos, como inclusive já se tem notícia.

No particular, o que se observa é que efetivamente existem argumentos jurídicos em prol do afastamento das limitações da MP.

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Isto porque o contribuinte, já desgastado após o enfrentamento de uma verdadeira batalha processual em busca do reconhecimento do seu direito à recuperação de valores indevidamente entregues aos cofres públicos, escolheu reaver o montante sob a forma de compensações administrativas, em detrimento da possibilidade de opção pelo recebimento via precatório, que também lhe assistia.

E assim o fez confiante na possibilidade, até então verificada, de extinguir débitos próprios referentes a tributos federais mediante livre utilização do montante creditório e, portanto, sem qualquer desembolso financeiro, vindo, contudo, a ser surpreendido pela repentina alteração da “regra do jogo no meio da partida”.

Ocorre que nosso ordenamento jurídico não dá margem para inovações tão abruptas e gravosas no contexto das relações travadas entre Fisco e contribuintes, as quais, muito pelo contrário, devem ser balizadas pela confiança legítima.

Decerto, tomando de empréstimo a valiosa lição de Humberto Ávila, a Constituição Federal dá uma nota de previsibilidade e de proteção de expectativas legitimamente constituídas e que, por isso mesmo, não podem ser frustradas pelo exercício da atividade estatal [1], de forma que o particular não pode ser surpreendido com mudanças repentinas nas regras tributárias, à luz das quais já havia programado suas atividades produtivas.

Logo, nos parece verdadeiramente defensável o argumento de que a introdução dos limites à compensação objeto da MP nº 1.202/2023 e da Portaria Normativa MF nº 14/2024 representa manifesta violação aos princípios da segurança jurídica e da moralidade administrativa, que caracterizam autênticas limitações constitucionais ao poder de tributar, afrontando, ademais, a lealdade e boa-fé objetiva.

Jurisprudência
No entanto, é necessário ter claro que a jurisprudência pertinente ao tema está genericamente consolidada em favor da possibilidade de o legislador estabelecer limites para os procedimentos de compensação.

Com efeito, o entendimento há muito adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de decisões proferidas pelas duas Turmas de Julgamento que compõem a sua 1ª Seção, em casos em que debatidas limitações diversas ao instituto, é no sentido de que não existe óbice à regulamentação quanto à forma e procedimentos para a efetivação da compensação tributária, bem como à imposição de limites ao seu exercício, por parte do legislador ordinário, desde que obedecidos os parâmetros estabelecidos no Código Tributário Nacional (vide AgInt no REsp 1956537/SP, 1ª T., rel. min. Paulo Sérgio Domingues, DJe 20/09/2023. No mesmo sentido, vide AgInt no REsp nº 1.979.019/SP, 1ª T., rel. min. Regina Helena Costa, DJe de 5/10/2022; AgInt no REsp 1887236/SP, 2ª T., rel. min. Francisco Falcão, DJe 29/04/2021 e AgInt no REsp 1762857/SP, 2ª T., rel. min. Mauro Campbell Marques, DJe 27/11/2019).

Além disso, cabe atentar para a existência de decisão vinculante da Corte Superior no sentido de que a lei que regula a compensação tributária é a vigente à data do encontro de contas entre os recíprocos débito e crédito da Fazenda e do contribuinte (vide REsp Repetitivo 1164452/MG, 1ª Seção, rel. min. Teori Zavascki, DJe 02/09/2010, objeto de reiterada aplicabilidade, até os dias atuais, como ilustram AgInt no REsp 2090833/RJ, 1ª T., rel. min. Regina Helena Costa, DJe 14/12/2023 e AgInt nos EDcl no REsp 1751881/SP, 2ª T., rel. min. Francisco Falcão, DJe 27/09/2023).

Tais posicionamentos, portanto, nos parecem apontar para o insucesso de eventual questionamento judicial do novo regramento em abordagem.

Prazo de cinco anos
Por outro lado, não se pode perder de vista que a nova disciplina conferida às compensações de créditos reconhecidos pelo Poder Judiciário, de forma positiva, afastou a necessidade de que sejam integralmente utilizados dentro dos cinco anos posteriores ao trânsito em julgado da decisão que reconhece a sua existência.

Até então, era esse o prazo de que o contribuinte dispunha para dar vazão ao montante, conforme previsto no artigo 106, caput, da IN RFB 2.055, de 8 de dezembro de 2021, atualmente incumbida de disciplinar a compensação de créditos tributários federais — dispositivo ainda não revogado, vale registrar — e corroborado em pronunciamento vinculante do órgão consultivo fazendário (vide Solução de Consulta Cosit nº 239, de 19 de agosto de 2019 e o Parecer Normativo nº 11, de 19 de dezembro de 2014).

No entanto, a própria Receita Federal, por meio de “Perguntas e Respostas” recém veiculado em seu site, confirma a possibilidade de o montante continuar a ser compensado, até o seu completo exaurimento, mesmo após o decurso do referido prazo, ressalvando, apenas, que a primeira DComp na qual empregado deverá ser apresentada nesse ínterim.

Atualmente, portanto, o prazo de cinco anos contados a partir do trânsito em julgado é dado ao contribuinte para que inicie os procedimentos de compensação do crédito de que é titular, mediante apresentação da primeira DComp, não estando obrigado, contudo, a esgotar o montante nesse mesmo ínterim, em linha com o entendimento que já vinha sendo a esse respeito externado pelo STJ, em resposta a questionamentos pertinentes ao tema que até então lhe eram direcionados (vide AgRg no REsp 1.469.926/PR, 2ª T., rel. min. Humberto Martins, DJe 13/04/2015; 1.469.954/PR2ª T., rel. min. Og Fernandes, DJe 28/08/2015 e REsp 1.480.602/PR, 2ª T., rel. min. Herman Benjamin, DJe 31/10/2014 e decisões monocráticas mais recentemente proferidas com base em seus termos).

Resta, contudo, acompanhar de perto a tramitação da MP n 1º 1.202/2023, a fim de verificar se a disciplina ali veiculada será convertida em Lei, permanecendo em vigor tanto no que tange ao aspecto positivo acima destacado, quanto do que diz respeito aos limites anteriormente abordados.

Isabela Bandeira, Trícia Barradas

Isabela Bandeira
é advogada formada em 1999 pela Universidade Federal da Bahia, pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), com experiência em consultoria e contencioso tributário, ex-conselheira da OAB-BA e conselheira do Conselho para Assuntos Fiscais e Tributários - Caft da Fieb.

Trícia Barradas
é advogada formada em 2004 pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), com experiência em consultoria e contencioso tributário desde 2002.

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