Julgamentos por arbitragem rendem mais de R$ 200 bilhões para a União
Por Marcela Villar — De São Paulo
A resolução de conflitos por arbitragem rendeu R$ 222,5 bilhões para a União, entre ganhos e perdas evitadas, segundo levantamento da Advocacia-Geral da União (AGU). Ao todo, o órgão, que representa o governo e agências reguladoras nesses casos, só perdeu um dos 36 processos desde 2006, quando a administração pública passou a adotar o procedimento alternativo ao Judiciário para a resolução de disputas. Metade ainda está em curso ou suspenso. A maioria (16) envolve o setor de petróleo.
Em uma decisão recente, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) venceu uma disputa contra a Transnorte Energia S.A. (TNE), concessionária da Alupar e Eletronorte, sobre o contrato para construção do Linhão de Tucuruí, que vai interligar Roraima no Sistema Interligado Nacional (SIN). O tribunal arbitral afastou um aumento de R$ 13 bilhões no valor a ser pago à empresa, o que poderia causar um aumento na conta de luz de milhões de brasileiros (leia mais em Aneel vence disputa e impede aumento na conta de luz).
Essa foi a primeira arbitragem da qual a Aneel foi parte. Um dos motivos é que o uso desse instrumento fora da esfera privada ainda era incerto naquela época. Muitos juristas entendiam que o setor público não poderia participar. A dúvida, porém, foi sanada no fim de 2001, após o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que validou mecanismos da Lei da Arbitragem (nº 9.307/1996).
“Apesar de estar presente na legislação desde o Império, a arbitragem era impraticável até 1996, porque tinha uma série de travas”, afirma o advogado e árbitro Fernando Marcondes, sócio do MAMG Advogados. Um dos empecilhos era a necessidade de dupla homologação do laudo arbitral pelo Judiciário, o que dificultava a execução de uma sentença. “A partir da decisão do Supremo, o mercado começou a aderir em massa, mas ainda pairavam dúvidas a respeito da arbitrariedade do direito público, que, depois de 2015, não existem mais”, acrescenta Marcondes.
“Um processo complexo pode durar de 10 a 20 anos na Justiça, enquanto a duração média de uma arbitragem é de 18 a 19 meses”
— André Abbud
Em 2015, houve a reforma da legislação de 1996, que passou a permitir expressamente a arbitragem no direito público, impulsionando o uso pelo governo. Além do aspecto legal, o contexto econômico favoreceu: havia uma maior demanda do mercado, maior uso de concessões no Brasil e bancos de financiamento passaram a exigir nos contratos de investimento cláusulas que permitissem a solução de conflitos por essa via.
“Essa cultura começou no setor de petróleo, mas depois se espalhou para outros setores, não só por demanda, mas por estratégia do poder público de querer uma celeridade maior na decisão da controvérsia e dar mais segurança para investimento”, afirma o Procurador-Geral da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Gustavo Albuquerque, que atuou na remodelagem de alguns contratos públicos. “Hoje, todos os contratos têm cláusula arbitral. A exceção é não ter”.
Para o advogado André Abbud, sócio do BMA Advogados e presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), o procedimento arbitral é um caminho mais curto para resolver determinadas disputas. “Um processo complexo pode durar de 10 a 20 anos na Justiça, enquanto a duração média de uma arbitragem é de 18 a 19 meses”, afirma. Outro aspecto positivo é as discussões serem mais técnicas, o que aumenta a chance de uma decisão correta, acrescenta.
O setor petroleiro se destaca porque foi um dos primeiros a regulamentar o uso (Lei nº 9.478/1997) – inseriu a arbitragem como “cláusula essencial” nos contratos de concessão. Não à toa foi o primeiro caso do governo em um procedimento dessa natureza. Em 2006, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) estreou contra a Newfield, empresa de engenharia de óleo e gás, para discutir a rescisão do contrato de exploração da Bacia do Espírito Santo.
Hoje, todos os contratos têm cláusula arbitral. A exceção é não ter”
— Gustavo Albuquerque
A empresa disse não ter conseguido licenciamento ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A Corte Internacional de Arbitragem (CCI), que terminou de julgar o caso em 2008, entendeu que o contrato deveria ser extinto “por motivo de força maior, sem culpa de qualquer das partes”. Determinou apenas que a ANP pagasse o valor das custas processuais: U$ 240 mil, o equivalente a cerca de R$ 1 milhão (processo nº 14593).
Após as agências reguladoras, foi a vez da União ser parte em um processo, em 2017, contra o Grupo Libra. A empresa alegava que a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) devia indenização pela área arrendada no Porto de Santos.
Em 2019, a Câmara do Comércio Brasil-Canadá disse que “não houve qualquer descumprimento do contrato por parte da Codesp” e “não se caracterizou o desequilíbrio econômico-financeiro do arrendamento”. A União evitou desembolsar R$ 10 bilhões e o Grupo Libra foi condenado a pagar R$ 3,5 bilhões à Codesp, por valores não quitados, além de descumprimento de obrigações (processo nº 78/2016/SEC7).
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Mesmo com a decisão do STF do ano de 2001, o andamento de alguns processos ficou emperrado por falta de lei específica sobre o uso da arbitragem no setor. Isso foi visto no litígio com a termelétrica Proteus Power Brasil, iniciado em 2003, na Câmara FGV de Mediação e Arbitragem. A ação ficou cerca de 15 anos suspensa pela Justiça. A Proteus pediu indenização por supostos prejuízos causados pela rescisão de um contrato firmado em 2001.
A empresa deveria fornecer energia através de uma usina flutuante no Complexo de Pecém (CE), mas o terminal portuário estava em obras. Por isso, alegou que a União não deu condições ao funcionamento da usina. O tribunal, no entanto, entendeu que cabia à Proteus obter as autorizações e licenças. Os árbitros condenaram a usina a pagar R$ 190 milhões – valor atualizado de R$ 900 milhões (processo nº 01/2003).
No caso de maior montante envolvido o governo evitou condenação de R$ 166 bilhões. Acionistas minoritários da Petrobras pediam a responsabilidade da União pelos prejuízos causados à estatal após a Operação Lava-Jato. A AGU conseguiu ser excluída da arbitragem por decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que entendeu que o caso, de natureza extracontratual, não pode ser decidido nessa esfera.
A única derrota foi da ANP contra a Petra Energia S.A. Em sentença parcial, a CCI reconheceu o pedido de indenização da empresa por não ter conseguido cumprir com o contrato de exploração dos blocos de São Francisco (processo nº 25891).
As instâncias da administração pública que atuam nessas arbitragens são a Equipe Nacional de Arbitragens (Enarb), formada por 12 pessoas e vinculada à Procuradoria Geral Federal, e o Núcleo Especializado em Arbitragem (NEA), da Consultoria Geral da União (CGU), órgão da AGU. Enquanto o NEA, criado em 2018, assessora os órgãos de administração direta da União, a Enarb atua em casos de autarquias e fundações públicas federais.