AGU pretende majorar taxa de fiscalização do Ibama sem mudança na lei
Igor Mauler Santiago
No ano 2000 tivemos uma experiência profissional singular: após a invalidação pelo STF da Taxa de Fiscalização Ambiental (TFA), criada pela Lei 9.960/2000, que alterou a redação da Lei 6.938/81 (Pleno, ADI 2.178/MC-DF, relator ministro Ilmar Galvão, DJ 12/5/2000), fomos – juntamente com nossos então sócios – demandados pelo ministro do Meio Ambiente Zequinha Sarney e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) a conceber um tributo que garantisse o financiamento do Ibama sem incorrer nos graves vícios apontados pelo Supremo.
O projeto e a justificativa que elaboramos redundaram no texto e na exposição de motivos da Lei 10.165/2000, que também alterou a Lei 6.938/81, e em parecer subscrito por nós e por Eduardo Maneira e Sacha Calmon e juntado às ADI 2.422 e 2.423, ambas extintas por razões processuais, e ao RE 416.601/DF (Pleno, relator ministro Carlos Velloso, DJ 30/9/2005), no qual a nossa Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA) teve a sua constitucionalidade reconhecida.
Defeitos na TFA e correções
Em resumo, o STF opôs três reparos à TFA: eleição das atividades do particular, e não do exercício do poder de polícia estatal, como fato gerador; indeterminação do universo de contribuintes, pois a enumeração das atividades tributadas era delegada pela lei a meros atos administrativos; e indiferenciação do valor da taxa segundo o porte econômico e o potencial poluidor dos contribuintes (a crítica quanto ao porte econômico pareceu injusta, pois o valor padrão de R$ 3 mil por empresa era sujeito a generosos descontos para empresas de pequeno porte, microempresas e pessoas físicas).
A Lei 10.165/2000 corrigiu esses defeitos por meio (1) da correta definição do fato gerador do tributo (artigo 17-B); (2) da enumeração taxativa das atividades objeto da fiscalização do Ibama, com a indicação, para cada uma delas, do potencial de poluição ou utilização de recursos naturais (alto, médio ou baixo – artigo 17-C e Anexo VIII); e (3) da previsão de que “a TCFA é devida por estabelecimento” e tem os seus valores fixados numa tabela cujas linhas remetem aos potenciais de poluição de ou utilização de recursos naturais de cada estabelecimento e cujas colunas aludem ao seu porte (micro, pequena, média ou grande empresa), segundo padrões de faturamento estabelecidos na própria lei (artigo 17-D e Anexo IX). Sobre esse último ponto – alegada ofensa à proporcionalidade, que o STF dessa vez não reconheceu –, o acórdão do RE 416.601/DF transcreve largamente o nosso parecer:
“(…) No particular, duas objeções são lançadas contra a TCFA:
– a de que varia segundo a receita bruta do estabelecimento contribuinte, adotando critério de quantificação próprio dos impostos;
– a de que seria excessivamente onerosa.
É noção cediça que a base de cálculo das taxas deve mensurar o custo da atuação estatal que constitui o aspecto material de seu fato gerador (serviço público específico e divisível ou exercício do poder de polícia).
(…)
Ora, é razoável supor que a receita bruta de um estabelecimento varie segundo o seu tamanho e a intensidade de suas atividades.
É razoável ainda pretender que empreendimentos com maior grau de poluição potencial ou de utilização de recursos naturais requeiram controle e fiscalização mais rigorosos e demorados da parte do Ibama.” (Grifo do colunista)
“Acrescenta [o parecer] que, se ‘o valor da taxa varia segundo o tamanho do estabelecimento a fiscalizar’, o que implica maior ou menor trabalho por parte do poder público, ‘é mais do que razoável afirmar que acompanha de perto o custo da fiscalização que constitui sua hipótese de incidência’, com atendimento, em consequência, ‘na medida do humanamente possível’, dos ‘princípios da proporcionalidade e da retributividade’.” (Grifo do colunista)
O que o Ibama pretende
Por mais de duas décadas, o cálculo da TCFA considerando a receita de cada estabelecimento, chancelado pelo STF nos trechos acima, foi seguido de forma inalterável pelo Ibama, que agora pretende abandoná-lo com base no Parecer 00001/2023/DITRIB/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, datado de junho de 2023. O fundamento é simplório: o uso da expressão pessoa jurídica pelo artigo 17-D da lei instituidora, ao definir micro, pequena, média e grande empresa para efeito de quantificação do tributo [1].
Spacca
Em suma, a lei usa três conceitos jurídicos: dois fracionários e desvinculados da ideia de personalidade jurídica – estabelecimento, que o artigo 1.142 do Código Civil define como “complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”; e empresa, que o artigo 996 define como “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” – e um (pessoa jurídica) totalizante porque ligado àquela ideia, que é naturalmente incindível. A primazia dos dois primeiros sobre o último salta aos olhos do texto da lei, já pelo critério quantitativo (duas menções contra uma), já pela natural precedência [2] do caput do artigo 17-D, segundo o qual “a TCFA é devida por estabelecimento”, sobre o seu parágrafo 1º, que recorre à expressão “pessoa jurídica” (ademais neutralizada pelo uso imediato termo “empresa”).
A conclusão se confirma pela interpretação histórica e sistemática da lei. De fato, foi para superar a censura de alheamento à realidade lançada contra a TFA, aproximando tanto quanto possível o valor da TCFA do custo da atuação estatal que lhe dá ensejo, que se adotaram os critérios conjugados da receita bruta e do potencial poluidor/utilizador de recursos naturais. É indiscutível que, mesmo se realizada remotamente, a fiscalização se dá por estabelecimento. E presume-se com base em quod plerumque accidit – providência aceita pelo STF na matéria [3] – que aquele custo é uma função direta dessas duas variáveis.
Deveras, careceria de razoabilidade impor-se a uma pequena filial, a única que exerce atividade de alto potencial poluidor, TCFA de R$ 5.796,73, em vez de R$ 128,80 (diferença de 45 vezes) ou de R$ 579,67 (diferença de dez vezes), apenas por integrar sociedade de grande porte cuja atividade é no mais pouco ofensiva [4]. O que importa nas taxas – mesmo que a sua quantificação se faça de modo aproximativo, em nome da praticabilidade – é a equivalência ao custo da atuação estatal, e não à riqueza manifestada pelo contribuinte (CF, artigo 145, incisos I e II e parágrafos 1º e 2º). Fundando-se na Constituição, a conclusão não se abala pelo acórdão do STJ no REsp. 1.661.547/PE (2ª Turma, relator ministro Herman Benjamin, DJe 19.06.2017), sendo ainda de notar que o único precedente do STF, também fracionário (2ª Turma, ARE 738.944 AgR/MG, relator ministro Ricardo Lewandowski, DJe 26.03.2014), versa taxa estadual similar, mas não idêntica à TCFA.
Além de ser a mais consentânea com o texto e o contexto da lei, a leitura cujo abandono ora se predica está consagrada pelo tempo. É fato que a interpretação pode evoluir, mas isso pressupõe alteração de monta no ambiente normativo circunstante ou na percepção social dos fatos regulados, o que não consta ter havido aqui.
A concessão da AGU à eficácia apenas prospectiva da nova exegese, com base no artigo 146 do CTN, é muito pouco, impondo-se a restauração do velho e bom entendimento original, na via administrativa ou em juízo.
[1] “Art. 17-D, § 1º. Para os fins desta Lei, consideram-se:
I – microempresa e empresa de pequeno porte, as pessoas jurídicas que se enquadrem, respectivamente, nas descrições dos incisos I e II do caput do art. 2º da Lei nº 9.841, de 5 de outubro de 1999;
II – empresa de médio porte, a pessoa jurídica que tiver receita bruta anual superior a R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) e igual ou inferior a R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais);
III – empresa de grande porte, a pessoa jurídica que tiver receita bruta anual superior a R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais). (…)”
[2] Positivada no artigo 11, inciso III, alínea “c”, da Lei Complementar 95/98.
[3] Como já demonstramos neste espaço: https://www.conjur.com.br/2023-fev-01/consultor-tributario-taxa-local-policia-atividades-regidas-uniao-modica/
[4] Estes os valores atuais da TCFA (https://www.gov.br/ibama/pt-br/servicos/taxas/tcfa/sobre-a-tcfa):
Microempresa Pequena Média Grande
Potencial/Grau Baixo Isenta R$ 289,84 R$ 579,67 R$ 1.159,35
Potencial/Grau Médio Isenta R$ 463,74 R$ 927,48 R$ 2.318,69
Potencial/Grau Alto R$ 128,80 R$ 579,67 R$ 1.159,35 R$ 5.796,73
Igor Mauler Santiago
sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Inst