Liminares garantem a contribuintes incluir valores maiores de dívidas em parcelamento
Por Marcela Villar e Beatriz Olivon — De São Paulo e Brasília
Contribuintes têm recorrido ao Judiciário para ampliar o alcance do novo programa de autorregularização incentivada, espécie de “Refis” lançado pela União em novembro, por meio da Lei nº 14.740. Liminares concedidas em São Paulo e no Paraná garantem a inclusão de dívidas com a Receita Federal constituídas até abril deste ano, e não somente até 30 de novembro de 2023, como defende o órgão.
As empresas alegam nos processos que esse seria o limite estabelecido pela lei e a Instrução Normativa (IN) nº 2168, de 2023, que a regulamenta. Porém, a Receita Federal, na seção “Perguntas e Respostas” do site do órgão, afirma que podem ser incluídos no parcelamento “tributos que ainda não tenham sido declarados cujo vencimento original seja até 30 de novembro de 2023”.
Para a uma fonte da equipe econômica ouvida pelo Valor, seria necessário “ser bem criativo” para autorregularizar o futuro. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vai recorrer das liminares. Para os procuradores, a tese dos contribuintes é muito agressiva e causa espanto e preocupação, uma vez que pode comprometer a arrecadação do primeiro trimestre. Eles afirmam que a lei, a IN e a cartilha não podem ser interpretadas isoladamente.
“O programa precisa ser visto como um instituto de aproximação entre a administração pública e os contribuintes. Ela não existiria se o contribuinte não estivesse devendo”, afirma procuradora-geral adjunta da Fazenda Nacional, Lana Borges, acrescentando que os tributos a serem regularizados são os vencidos até 30 de novembro de 2023 e que o prazo até 1º de abril é o período que o programa está aberto, que o contribuinte tem para confessar a dívida, retificar obrigações acessórias e aderir. “Não faz sentido um tributo ainda corrente ser objeto de autorregularização.”
O programa garante o pagamento de dívidas tributárias, em parcelas, sem multa ou juros. Metade do valor deve ser paga à vista. A outra em até 48 vezes, em parcelas mínimas de R$ 200 e R$ 500, corrigidas pela Selic. É possível quitar impostos com prejuízo fiscal e precatórios – inclusive de terceiros. Podem aderir ao programa pessoas físicas e jurídicas, exceto as do Simples Nacional. A adesão começou no dia 5.
Já obtiveram liminares a Leyard, uma das principais fabricantes de painéis de LED do mundo, a Dotseg, prestadora de serviços terceirizados, a rede de lanchonetes Madero e a BR Log Logística. Todas conseguiram o direito de pagar, por meio do programa, tributos devidos até abril deste ano.
“A instrução normativa [2168] é clara ao dizer que aqueles tributos não constituídos 90 dias após o prazo da publicação da regulamentação da lei poderiam entrar na autorregularização. O problema foi a cartilha da Receita que acabou com essa possibilidade. Por isso, a necessidade de entrar com as ações”, afirma o tributarista Lucas Simões de Andrade, do escritório Jorge Advogados.
Andrade afirma que se debruçou sobre o tema neste último mês e ajuizou mais de 30 mandados de segurança – dentre eles, os da Leyard e Dotseg. “Havia uma urgência enorme de entrar com as ações porque os tributos estavam para vencer. Não teria como ter uma resposta da Receita Federal sobre isso tão rápido e as empresas estavam com receio de ter a participação no programa indeferida”, diz.
Segundo ele, não pode um “perguntas e respostas”, que não tem status legal, restringir a lei. “A Receita poderia dizer que é uma questão de interpretação e a cartilha é complementar, mas a lei, em momento algum, fala em vencimento originário até 30 de novembro de 2023.”
O caso da Leyard foi analisado pela juíza Soraia Tullio, da 4ª Vara Federal de Curitiba (processo n º 5002122-58.2024.4.04.7000). Para ela, a informação do site da Receita “não possui respaldo na lei”. “Em atenção à legalidade tributária e à segurança jurídica, deve ser deferida a medida liminar para preventivamente assegurar o direito líquido e certo à adesão ao programa”, afirma. No caso da Dotserv, a decisão é da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo (processo nº 5001275-67.2024.4.03.6100).
Também é da 4ª Vara Federal de Curitiba a decisão obtida pela BR Log Logística. No pedido, a empresa diz que, apesar de a lei permitir a autorregularização de tributos até abril de 2024, “em total afronta aos dispositivos da lei e da própria instrução normativa”, a Receita Federal, em orientações, vedou a inclusão de débitos vencidos a partir de 30 de novembro de 2023.
“A informação constante do site não possui respaldo na lei instituidora do programa, tampouco na instrução normativa que o regulamentou”, afirma na decisão a juíza Soraia Tullio (processo nº 5001312-83.2024.4.04.7000). O mesmo entendimento foi aplicado pela 2ª Vara Federal de Ponta Grossa ao Madero Indústria e Comércio (processo nº 5000220-43.2024.4.04.7009).
Para Gabriel Paranaguá, sócio do Feslberg Advogados, o programa é uma espécie de “denúncia espontânea melhorada”. Para quem tem débitos constituídos após 30 de novembro de 2023, ele aconselha entrar com pedido preventivo de liminar. “É interessante porque a Receita pode alegar que é a sua interpretação, apesar de não constar na IN.”
A advogada Amanda Nadal Gazzaniga, do Buttini Moraes Advogados, também acredita que essa é a melhor opção. “A lei não traz a limitação”, afirma. O benefício de negociar essas dívidas em aberto, acrescenta, é justamente poder usar o estoque de prejuízo fiscal e precatórios, em um contexto de restrição das compensações fiscais, estabelecida pela Medida Provisória nº 1.202/2023. “Já existe essa vedação, então os contribuintes podem, estrategicamente, usar a autorregularização para usar o prejuízo fiscal e não pagar tudo em dinheiro.”
De acordo com Rafael Vega, sócio do Cascione Advogados, a lei não foi clara ao dizer se são débitos do passado ou também do presente e, por isso, as empresas já pensam em incluir o tributo devido no mês corrente – ou seja, não pagar com caixa, mas com prejuízo fiscal e de forma parcelada. “A Receita só falou que isso é proibido em um perguntas e respostas”, diz. “Não é a forma certa de se regulamentar”, conclui.
Por meio de nota, o Madero diz que decidiu propor a liminar porque, pelo princípio da legalidade tributária, o “Perguntas e Respostas da RFB” não pode impor uma limitação que não existe na legislação.
Procuradas pelo Valor, Leyard e Dotseg não deram retorno até o fechamento da edição. A reportagem não localizou algum porta-voz da BR Log Logística. (Colaborou Jéssica Sant’Ana)