Carf, voto de qualidade e os critérios para o desempate
Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli
A publicação da Lei nº 14.689/23 trouxe novas regras para o voto de qualidade no Carf, mas não tratou dos critérios para o desempate que é o que desejamos focar. O histórico a respeito deste voto demonstra que no desempate apenas reitera-se seu voto anterior [1], o que impõe considerar que a fundamentação é idêntica à empregada naquele voto.
Consultando os citados acórdãos nota-se que, embora haja o desempate, os votos contemplam somente o mérito propriamente dito. Os votos de qualidade são proferidos sem a necessária motivação específica do dissenso. Portanto, são nulos.
Faremos menção a voto de mérito, para o que trata das questões jurídicas expostas no recurso e, voto de desempate, para aquele produzido para eliminar o dissenso e finalizar o julgamento.
Com apoio nas lições de Dinamarco [2], diz-se que voto de mérito ou de qualidade, configura ato processual encartado no processo; são produto de procedimentos regrados; derivam de um “conjunto ordenado de atos mediantes os quais, no processo, o juiz exerce a jurisdição e as partes a defesa de seus interesses”.
Os votos são atos processuais componentes de outro ato processual, agora colegiado, que é o acórdão [3], também originário de procedimentos específicos que se distanciam daqueles necessários para a formulação de cada um destes votos.
O voto de mérito e o de qualidade, conquanto componentes do acórdão, são atos processuais diversos calcados em fatos e fundamentos jurídicos distintos que os enquadram em moldes jurídicos também distintos. Consoante Vilanova [4], o empate é fato jurídico pois previsto em regra jurídica. Se fato jurídico, então enseja efeitos jurídicos. Logo, voto de mérito e de qualidade não se identificam juridicamente, porque pressupõem fatos distintos, como também produzem efeitos jurídicos diversos.
Pensemos situação de julgamento de defesa que se insurge contra lançamento de ofício e legislação de regência do respectivo tributo. Com base no artigo 37 [5] da CF/88, inciso V [6] do artigo 50 da Lei nº 9.784/99, e inc. II do artigo 59 do Decreto nº 70.235/72 [7] e artigo 15[8] c/c artigo 489 [9] do CPC/15, o voto de mérito se funda:
1.a) na fundamentação jurídica [10] que prescreve o que fazer; o dever de votar no mérito;
2.b) na fundamentação jurídica [11] que estabelece como fazer este ato processual de votar;
1.c) no fato jurídico tributário propriamente dito [12], constante das provas colhidas pela fiscalização e pelo contribuinte; e
1.d) nos fundamentos de direito da norma tributária que qualifica aquele fato (tributário) como tal [13].
Por sua vez, no voto de qualidade está lastreado:
2.a) na fundamentação jurídica [14] que prescreve o dever de elaborar este novo ato processual de votar, agora para desempatar o julgamento;
2.b) nos fundamentos jurídicos [15] que determinam os procedimentos para se elaborar este novo voto de desempate; e
2.c) no fato jurídico atinente ao empate no julgamento; fato este que não é o tributário (i.c). Aqui, o fato jurídico é o empate de votos.
Esta segmentação que diferencia o voto de mérito do de qualidade permite visualizar a razão pela qual é nulo o de desempate baseado apenas na parte dispositiva para desempatar; é nulo porque desprovido de fundamentação específica [16] relacionada ao fato jurídico do empate de votos. Este é exatamente os casos dos acórdãos acima exemplificados, nos quais se decidiu pelo desempate, mas sem a motivação fática e jurídica para este ato ou voto para desempatar.
Outrossim, invocar a fundamentação apresentada no voto de mérito implica nova nulidade, porque se o fato jurídico é o empate de votos, a fundamentação tem que se relacionar a tal situação jurídica, porque é este o fato jurídico que desencadeia o ato processual que enseja o voto de desempate.
É incongruente argumentar que o desempate deverá ser em um determinado sentido porque há a subsunção dos critérios do fato gerador aos critérios da regra matriz tributária. Ora, isto serve para o voto de mérito, jamais para o voto de desempate.
Cristiano Carvalho, em prestigiada obra Teoria da Decisão Tributária [17] expõe com precisão o modus operandi do ato de julgar e, em particular, do julgador tributário, que em tudo pode ser aqui aplicado.
O ilustre professor observa que, conquanto a atividade de julgar se caracterize pelo ato de subsumir fatos a determinadas normas, ela se realiza em atos que requerem legitimidade institucional e persuasão. A legitimidade dá-se na medida em que as partes em conflito reconhecem na pessoa que julga a qualidade de julgador pertencente ao aparato jurisdicional do Estado. É, portanto, autoridade competente para proferir este ato de julgar e a ele se submetem.
A persuasão, a seu turno, é técnica de convencimento destas mesmas partes e das demais pertencentes ao aparato decisório do Estado, sobre a correção daquele ato de julgar. Isto se faz pela argumentação.
Neste sentido, são perfeitas as palavras de Carvalho [18]: “As decisões dos julgadores precisam igualmente de argumentação. Importante perceber que, mesmo havendo simples subsunção de fato às normas, é necessário argumentar para persuadir todos de que a aplicação daquela norma é correta, revestindo-se de legitimidade institucional. Outrossim, como aponta Friedrich Müller (1999, p. 52), a fundamentação pública da decisão deve convencer os seus atingidos, assim como tornar a decisão controlável por meio de reexames de tribunais hierarquicamente superiores, de modo a possibilitar sua eventual reforma e também consonância com a Constituição”.
Mas argumentar requer estrutura que demonstre a necessária relação entre o argumento alegado, os dados ou fatos invocados para justificá-lo e as respectivas premissas ou garantias que autorizem o vínculo entre ambos (a alegação e os dados/fatos).
Apoiado na obra de Stephen E. Toulmin [19], Carvalho [20] propõe a seguinte estrutura para o ato de decidir:
“Há seis componentes inter-relacionados para serem verificados em um argumento: 1) Alegação (claim), ou seja, aquilo que se quer provar; 2) Dados (data), que são fatos e provas trazidos para sustentar a alegação; 3) Garantias (warrant), que são hipóteses ou premissas gerais e padrões e cânones argumentativos que funcionam como pontes entre os dados e a alegação. Estes três componentes são essenciais, devendo estar presentes em toda argumentação. Há outros três componentes que funcionam como complementares: 4) Apoio (backing), que serve de aval que legitima oficialmente as garantias. No contexto jurídico, a menção às leis e à jurisprudência, por exemplo; 5) Refutação (rebuttal), declarações que demonstram exceções à alegação; e 6) Qualificador (qualifier), modais que indicam o grau de força da alegação: possivelmente, certamente, presumivelmente.”
Pois bem, se a alegação/decisão (claim) se referir à subsunção dos critérios do fato gerador tributário àqueles da norma tributária ela terá que se reportar aos fatos (data) provados ao longo do processo que confirmem tratar-se então de um fato tipicamente tributário, assim considerado porque há um aparato normativo que o qualifica como tal — Constituição e demais normas infraconstitucionais (backing) — devidamente considerado em outras padrões teóricos ou jurisprudenciais de argumentação (warrant) que reconhecem a aplicação daquela norma tributária a este fato. Isto, se tal argumentação não for refutada (rebuttal) pela consideração de alguma regra de não incidência.
Todavia, há hipóteses em que a alegação (claim) não prevalecerá, porque outras alegações de mesmo nível (claim) lhe serão confrontadas. Estamos aqui no cenário das refutações a que se refere Toulmin e que se aplicam perfeitamente aos casos dos votos dissonantes de um colegiado. Vejamos:
“Suponhamos que façamos uma asserção e por ela nos comprometamos com a alegação que toda asserção envolve necessariamente. Se a alegação for desafiada, teremos de ser capazes de estabelecê-la — isto é, de prová-la e de mostrar que era justificável. Como isto deve ser feito? A menos que a asserção tenha sido feita de modo totalmente irrefletido e irresponsável, normalmente teremos alguns fatos que poderemos oferecer para apoiar nossa alegação; se a alegação é desafiada, cabe a nós recorrer àqueles fatos e apresentá-los como fundamento no qual se baseia nossa alegação.” [21]
É visível que neste contexto de nada adianta invocar os fatos e regras de direito já apontados no primeiro voto, porque justamente estes mesmos fatos e regras foram confrontados pelo voto dissonante.
Transpondo tais afirmações para o contexto de um julgamento colegiado, na medida em que um voto de mérito é confrontado por outro voto de mesmo nível, é inócuo argumentar como fundamento de resolução os mesmos fundamentos que serviram para qualquer um destes votos, porque eles justificam apenas e tão somente as afirmações que dizem respeito ao mérito examinado em cada voto. Eles não justificam, portanto, o dissenso estabelecido, tampouco amparam qualquer alegação que sirva de base para resolvê-lo.
É de rigor que se estabeleça novo argumento para dar base para o voto de desempate. A estruturação deste novo voto deverá referir-se ao dissenso já estabelecido (claim), adotando a alegação que deseja ver prevalecer a partir de doutrina e/ou outras decisões que confirmem este sentido desejado (warrant), fundada em dispositivos normativos que sustentem este sentido (backing).
Vale dizer, se em um julgamento há voto no sentido “A” e voto em “Não-A”, o voto de desempate deve fundamentar-se em normas que justifiquem o porquê prover “A” ou “Não-A”; deve produzir metalinguagem sobre a linguagem contida naqueles votos discordantes, justificando as razões pelas quais este ou aquele deverá prevalecer, refutando este ou aquele fundamento com base em novos fundamentos (backing) que autorizem afastar o voto vencido ou sustentar o voto vencedor.
Este cenário não se ocorre nos votos de desempate examinados em pesquisa na página da Internet do Carf, prejudicando a parte que teve seu pedido desprovido, pois lhe impede de combater os fundamentos que deveriam embasar o afastamento do voto vencido. Tal situação atenta contra o Direito de Defesa e deve ser combatida.
[1] A título de exemplo, Processos nº 10680.902700/2014-96 e nº 11070.722318/2011-07.
[2] Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Editora Malheiros. São Paulo. Vol. II, 2001, pág. 440.
[3] Nos termos do artigo 204 do NCPC/2015, “acórdão é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais”.
[4] Diz o Mestre que o “conceito de fato jurídico é conceito-limite. Fora do conjunto de fatos jurídicos, ali onde nenhuma norma alcance o fato para relacioná-lo com efeitos jurídicos, há fato juridicamente neutro, juridicamente irrelevante. (…). No interior do sistema de normas, todavia, o conceito de fato é relativo. Assim, uma relação jurídica entre os sujeitos A e B, a respeito do objeto C (prestação ou coisa) é factual: advém da manifestação de vontades concordantes, ou de manifestação unilateral de vontade de A em favor de B, que a desconhecia, ou de ato ilícito. A mesma relação R, que é efeito, pode advir de causas C, C, C, cumulativa ou alternativamente. Não há sempre relação de correspondência unívoca entre a causa e o efeito”. (Causalidade e Relação no Direito. Editora Saraiva. São Paulo. 2ª edição. 1989, pág, 144).
[5] Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte.
[6] “Artigo 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
V – decidam recursos administrativos;”.
[7] “Artigo 59. São nulos:
II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa”.
[8] “Artigo 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
[9] “Artigo 489. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão
§3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”.
[10] De acordo com o art. 37 do Decreto Federal nº 70.235/72, com suas alterações, c/c com os incisos I e IV do art. 58 do Regimento Interno do Carf (Portaria MF nº 343/15, com suas alterações).
[11] Também prevista no art. 37 do Decreto Federal nº 70.235/72, com suas alterações, c/c com os incisos I e IV do artigo 58 e respectivos parágrafos, do Regimento Interno do Carf (Portaria MF nº 343/15, com suas alterações).
[12] De acordo com os incisos III e IV do artigo 10 do Decreto Federal nº 70.235/72, com suas alterações.
[13] De acordo com os incisos III e IV do artigo 10 do Decreto Federal nº 70.235/72, com suas alterações.
[14] De acordo com o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72, com suas alterações, c/c com o artigo 54 do RI do Carf.
[15] São os mesmos fundamentos indicados para a elaboração do voto de mérito (Nota 11), porém aplicados para a formulação do voto de qualidade.
[16] Assim determina a citada Lei ordinária Federal nº 9.784/99:
“Artigo 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;”.
[17] Editora Malheiros. São Paulo. 2013, pág. 306 e segs.
[18] Idem, pág. 306.
[19] Os usos do argumento. Martins Fontes. São Paulo, 2006.
[20] Idem, pág. 307.
[21] Idem, pág. 139.
Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli
Advogado, mestre e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).