Imposto seletivo: um novo tributo ou o velho IPI “repaginado”?
Fernanda Drummond Parisi
Tema que vem dominando os holofotes da economoia, dos ambientes empresariais e acadêmicos e que, certamente, permanecerá em destaque por muito tempo é a reforma tributária.
E nem poderia ser diferente, já que a tentativa de uma reforma tributária foi idealizada há décadas e até agora não foi implementada. Dentre diversos projetos de reforma, a Proposta de Emenda Constitucional nº 45, popularmente conhecida como PEC 45, foi aprovada às pressas pela Câmara dos Deputados, com a inclusão de dispositivos e mudanças de preceitos sem o conhecimento prévio dessas mudanças sequer pelos seus redatores originais, tendo causado perplexidade na comunidade, que definiu tal trâmite como verdadeiro açodamento.
Fato é que a proposta aprovada pela Câmara seguiu para o Senado, e a expectativa em torno das promessas de simplificação, otimização e reconfiguração do modelo de incidência dos tributos sobre o consumo e o consequente crescimento econômico do país é enorme.
Com efeito, muitos acreditam que as benesses que advirão da reforma são mais relevantes do que o aumento de carga tributária para determinados setores econômicos, especialmente o dos serviços, e que as mudanças dos tributos atuais para a CBS, IBS e Imposto Seletivo são, de fato, profundas.
Mas será que essas mudanças são realmente tão significativas? É com pesar em frustrar expectativas tão otimistas que afirmamos que não. Tal assertiva longe de partir de uma visão preconceituosa quanto aos novos tributos, decorre de uma simples análise comparativa das normas de competência impositiva dos citados tributos previstas na PEC com as normas de competências impositivas do IPI, do ICMS, ISS, PIS e Cofins existentes na Carta da República.
Nesse breve estudo, focaremos toda a nossa atenção no Imposto Seletivo (IS), que em nossa percepção nada mais é do que o velho imposto sobre o consumo, que após sofrer uma primeira metamorfose e se transformar no IPI, passa agora por uma segunda metamorfose, recebendo o nome de imposto seletivo, quando, a nosso ver, nada mais é do que o IPI “repaginado”.
Explicamos. O atual IPI, originado a partir do imposto sobre o consumo disciplinado pela Lei nº 4.502/64, que estabelecia como seus fatos geradores a saída dos produtos industrializados dos estabelecimentos produtores para comercialização e a importação, vem se perpetuando ao longo dos anos, décadas, sempre gravando as mesmas operações de expressão econômica.
Significa dizer, conquanto mude de nome, o imposto é “um sobrevivente” que perdura há muitos anos e agora, muda de nome mais uma vez, mudança essa que pode passar desapercebidas pelos incautos, dado o grande destaque que vem sendo atribuído ao seu viés extrafiscal, o que não é suficiente para transformá-lo em um novo imposto substituto do velho IPI. É por essa razão que nos parece adequado lhe atribuir a alcunha do “IPI repaginado”.
Como já afirmado, o entendimento ora explanado lastreia-se em uma singela análise comparativa das normas de competências impositivas do IPI e do IS, a qual, de maneira o mais didática possível, passamos a demonstrar.
Na redação atual da CF, temos a atribuição da competência impositiva do IPI nos seguintes moldes:
“Artigo 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(…)
IV – produtos industrializados;
(…)
§3º O imposto previsto no inciso IV:
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;
III – não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior.
IV – terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital pelo contribuinte do imposto, na forma da lei.”
Agora vamos entender o significado de cada uma dessas cláusulas que delimitam o regime jurídico do IPI, já em conformidade com interpretação sistemática dessas normas com o Código Tributário Nacional e leis específicas para, após, o compararmos com o IS.
IPI — incide sobre produtos industrializados
Significa que os produtos industrializados vendidos pelas fábricas, os importados e os leiloados devem sofrer a incidência do IPI. Alguns varejistas, atacadistas, distribuidores e importadores, embora não façam a industrialização, são equiparados pela lei a industriais e, também pagam IPI na revenda desses produtos.
Será seletivo em função da essencialidade do produto
Determina que quanto mais essencial e necessário for o consumo do produto (mínimo vital), menor deverá ser a sua alíquota, para que fique menos caro em razão da incidência do imposto e, por conseguinte, mais acessível a todos. Exemplo: produtos da cesta básica. De outro lado, se o consumo do produto for um luxo, supérfluo e desnecessário, ou fizer mal para a saúde, a alíquota deve ser maior, e tornar o produto mais caro como mecanismo de desestimular seu consumo. É a expressão concreta da extrafiscalidade.
Será não cumulativo — compensando o que já foi cobrado do devido
Prevê a não cumulatividade irrestrita, ou seja, o que foi cobrado nas etapas anteriores e nos insumos (com valores destacados nas notas fiscais) deve ser apropriado como crédito para abatimento do valor devido pelo contribuinte.
Não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior
É uma imunidade, que impede que o imposto incida nas exportações.
Terá impacto reduzido na aquisição de bens de capital na forma da lei
É uma norma que não foi regulada, apenas uma recomendação para que as alíquotas dos bens de capital (bens usados para a produção de outros bens, como máquinas para indústria) não sejam excessivamente oneradas, de forma que fiquem mais acessíveis, o que ajuda a indústria nacional a os adquirir e se desenvolver.
Vejamos agora a norma de competência impositiva do IS, caso o texto aprovado pela Câmara dos Deputados seja validado pelo Senado Federal sem alterações:
“Artigo 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(…)
VIII – produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei.
§3º O imposto previsto no inciso IV: (IPI)
V – não incidirá sobre produtos tributados pelo imposto previsto no inciso VIII. (IS)
§6º O imposto previsto no inciso VIII:
I – não incidirá sobre as exportações;
II – integrará a base de cálculo dos tributos previstos nos artigos 155, II, 156, III, 156-A e 195, V; e
III – poderá ter o mesmo fato gerador e a mesma base de cálculo de outros tributos.”
Agora vamos entender o significado de cada uma dessas cláusulas que delimitam o o regime jurídico do IS estabelecido pela Constituição.
IS incide sobre produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou meio ambiente
Significa que os produtos industrializados vendidos pelas fábricas, importados e os leiloados devem sofrer a incidência do IS. O texto dá a ideia de que somente os produtos prejudiciais à saúde ou meio ambiente serão alcançados.
O conceito de bens prejudiciais à saúde ou meio ambiente deverá ser disciplinado em lei complementar.
De toda forma, independentemente do superveniente conceito legal de bens prejudiciais ao meio ambiente e saúde, é possível afirmarmos, com base em uma concepção bem objetiva e restritiva, que somente os bens ecologicamente adequados e sustentáveis não são prejudiciais ao meio ambiente.
Além disso, há inúmeros produtos industrializados que são notoriamente prejudiciais à saúde, de forma que, aparentemente, quase todos os produtos atualmente onerados pelo IPI também serão onerados pelo IS!
A ideia de seletividade propagada sem a integração legislativa (lei complementar definindo o que é prejudicial à saúde e ao meio ambiente) dá a equivocada ideia de que apenas os prejudiciais serão alcançados pelo IS, o que o tornaria um imposto concretamente seletivo. Porém, enquanto não houver o aludido critério legal, não é possível afirmar, de forma categórica, que a esfera de incidência do IS não será, praticamente a mesma do IPI.
O IPI não incide sobre os produtos onerados pelo IS
Os fatos geradores do IPI e do IS são basicamente os mesmos, de maneira que a permissão de tributação por ambos configuraria bis in idem não admitido no texto constitucional proposto. Portanto, a vedação em comento, além de ser lógica e necessária, pode ser considerada um indício que comprova se tratar do mesmo imposto (IPI) repaginado.
Não incidirá sobre exportações
É uma imunidade, que impede que o imposto incida nas exportações, exatamente como ocorre com o IPI.
Integrará as bases de cálculo do ICMS, ISS, IBS e CBS
As bases de cálculo do ICMS e ISS no período de transição e, também, do IBS e da CBS durante o período de transição e após, serão majoradas [1] pela inclusão do IS.
Poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos
É uma permissão constitucional para o bis in idem com o IPI, IBS, e CBS.
Após traçarmos a comparação de todos os traços conotadores do IPI com os do IS, nos termos estabelecidos em suas respectivas normas constitucionais atribuidoras das suas competências impositivas, verificamos que a única possível diferença entre eles seria uma possível limitação da incidência do IS somente sobre os produtos prejudiciais à saúde e mio ambiente.
Contudo, e conforme explanado, nos parece que tal premissa somente poderá ser validada após a edição da legislação que o disciplinará, a qual terá a incumbência de definir quais produtos poderão ser alcançados pelo IS, fixando um critério disrcímen para a classificação dos produtos prejudiciais à saúde e ao ambiente.
Com base nessas reflexões, finalizamos nosso breve estudo reiterando nossa percepção de que o IS nada mais é do que o velho IPI, “repaginado”.
[1] Nos parece ferir os princípios constitucionais tributários da capacidade contributiva e vedação a tributação confiscatória. Também nos parece ter sido incluída na Constituição para evitar a formação de contencioso.
Fernanda Drummond Parisi
Doutora e mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), advogada, diretora da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e professora do IBMEC, do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).